quarta-feira, 5 de abril de 2017

SERÕES DE ARTE NO MOSTEIRO E AFONSO LOPES VIEIRA. OS SERÔES NA PROVÍNCIA-

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O meio político e social alcobacense do início do século XX, foi marcado por disputas entre republicanos e monárquicos, cada um a defender e tentar impor as suas conceções contraditórias.
O ideário republicano (mesmo ou apesar da cisterciense Alcobaça), afirmava a necessidade de implantar a democracia, se necessário contra Reis e Igreja.
Em Alcobaça (vivia-se, por vezes), um ambiente histórico e artístico de exceção, ao qual figuras como o poeta e monárquico leiriense Afonso Lopes Vieira procuraram conferir dimensão nacional e internacional a par de alguns republicanos. M. Vieira Natividade relacionava-se com importantes figuras da época e, ao serão, como um cenáculo, debatiam-se no seu escritório temas artísticos, científicos e políticos.
Pela iniciativa do poeta, realizaram-se no mosteiro vários serões de arte. À sombra tutelar do Mosteiro, Lopes Vieira viveu mais de 30 anos perseguido pelo objetivo de defender o património cultural português e fazer chegar ao maior número possível de pessoas, não apenas alcobacenses, a sua ímpar dimensão estética. Afonso Lopes de Vieira, precetor da alma portuguesa, embora natural de Leiria, passou grande parte da vida em Lisboa, onde aliás viria a falecer. Visitando regularmente o Distrito, especialmente no verão, instalava-se na sua casa de S. Pedro de Moel ou exilava-se nas Cortes (Era admirador de Paiva Couceiro), onde também tinha uma casa. Lopes Vieira, nas suas deslocações à Alta Estremadura, visitava com frequência Alcobaça que lhe merecia particular atenção e carinho (expressos em textos e conferências) e os seus amigos, com destaque para Manuel Natividade.
A campanha de divulgação da obra de Gil Vicente foi reunida em 1914 no livro Campanha Vicentina.
Realizou-se no redenominado Teatro República em janeiro de 1912 um Serão Vicentino. De acordo com o Semana Alcobacense (que condescendia com Lopes Vieira, a quem não arriscava beliscar), poucas vezes a nossa sensibilidade espiritual terá sido mais fortemente impressionada e o nosso sentimento português mais experimentado de emoção e de infinito orgulho, do que o foi nessa noite a tantos títulos notável e de tão inapagáveis recordações. As belezas da nossa literatura quinhentista, verdadeiramente surpreendentes, inéditas para o grande número dos que assistiam, ressaltavam em pródiga profusão da correta e superior dicção dos intérpretes .
Começou o Sarau com uma conferência de Afonso Lopes Vieira, sobre Gil Vicente, realçando a personalidade do fundador do teatro português, da qual ressalta a sua feição popular e irreverente, o sarcasmo e os conceitos com que impiedosamente castigava os excessos, a corrução dos grandes e as virtudes do povo. Durante a conferência Aura Abranches, Ângela Pinto, Adelina Abranches, Augusto Rosa, Ferreira da Silva, Brazão e Chabi Pinheiro declamaram trechos vicentinos, de Luís de Camões, Rodrigues Lobo e outros autores.
Seguiu-se a representação de O Pranto de Maria Parda, monólogo interpretado por Adelina Abranches, no qual o autor apresenta, cheio de verdade e graça, um tipo de mulher da rua, que lamenta a carestia de vinho (é curioso como ela apreciava o vinho de Alcobaça… o que não impediu alguns assobios por parte de assistentes mais virtuosos).
Todo o Mundo e Ninguém, trecho do Auto da Lusitânia, que constitui uma crítica impiedosa à sociedade do século XVI, simbolizada na personagem viciosa Todo o Mundo, foi interpretado por Augusto Rosa, Alexandre Azevedo, Chabi Pinheiro e Henrique Alves acompanhado de alguns sorrisos e terminado com uma boa ovação.
O Monólogo do Vaqueiro, um dos trechos vicentinos mais conhecidos, foi interpretado pela famosa Adelina Abranches.
Por último, foi dado apreciar o Auto da Barca do Inferno, uma das mais belas peças vicentinas. As figuras, fortemente desenhadas e acentuadas, a crítica caindo como ferro em brasa sobre as chagas sociais do tempo, são ainda, com ligeiras variantes, as do nosso tempo. No fim, vem a apoteose do Povo e o elogio moralista da virtude dos simples. No Serão foi, talvez este, o momento que recolheu mais ovação.
Em suma, foi uma bela noite para os cultores da nossa rica arte portuguesa. O País que possue uma arte tão própria e tradições tão características, pratica um crime gravíssimo ao permitir o abastardamento das manifestações da nossa civilização.
Por isso, admitia o articulista, que a tarefa a que se impôs Lopes Vieira é, apesar de tudo, um ato de patriotismo e, sobretudo, uma afirmação de consciência cívica.
A 17 de agosto de 1913, realizou-se mais um Serão de Arte, iniciativa alegadamente inserida nessa missão de reaportuguesar Portugal, tornando-o europeu, que o poeta monárquico fez questão de organizar, com ajuda do seu amigo republicano M. Vieira Natividade.
Este Serão da Arte, incluiu versos declamados por Augusto Rosa, dança, música e poesia pelas irmãs Alice e Maria Rey Colaço.
Em agosto de 1914, Lopes Vieira voltou a organizar novo Serão de Arte, desta vez com a presença da soprano Berta de Bívar, do pianista Vianna da Motta e dos coros de Mme. Bensaúde.  

Estas romagens artísticas foram interrompidas pela Guerra, e só retomadas em julho de 1929, aquando da recuperação da Sala do Refeitório do Mosteiro.
A partir de 1935, as romagens adquiram uma caraterística específica em ligação com obras do Mosteiro. Nesse ano, Lopes Vieira levou à cena, no claustro do Mosteiro, o Auto da Mofina Mendes pela empresa Rey Colaço-Robles Monteiro, num espetáculo a que terão assistido mais de 1.000 pessoas que se aglomeravam e chegaram a discutir com vivacidade, por falta de espaço.
Augusto Rosa (amigo de Lopes Vieira e Natividade) fez a estreia como ator no Porto, em 31 de janeiro de 1872. Com o irmão João Rosa e Eduardo Brasão fundou a companhia Rosas & Brasão, de que foi o impulsionador, não só pelos conhecimentos culturais, mas também pelo talento como ensaiador. Interpretou todos os géneros, mas destacou-se na comédia e drama moderno. Foi também um aclamado declamador. Publicou Recordação da cena e de fora de cena/1915 e Memórias e estudos /1917. O ator morreu, a 2 de maio de 1918, no número 50 da rua com o seu nome, em Lisboa, onde existe uma inscrição com os dizeres: Nesta Casa Faleceu Em 2 De maio De 1918 O Eminente Artista Augusto Rosa Filho De João Anastácio Rosa E Irmão De João Rosa Todos Êles Grandes Atores. No serão de 1913, no Claustro de D. Dinis, Augusto Rosa, que vinha de vez em quando a Alcobaça conversar com M. V. Natividade, nomeadamente sempre que sabia que também se podia encontrar com Lopes Vieira, recitou sonetos de Camões, bem como o Ato V de A Castro, de António Ferreira. Augusto Rosa, em Memórias e Estudos, deixou notas, sobre esse Serão de Arte (que passamos a transcrever). Às nove horas da noite, na Igreja e no Claustro, tudo estava concluído e os que iam assistir ao Serão ficaram deslumbrados com a beleza do Mosteiro, realçada pela sumptuosidade da iluminação. O Serão começou pela admirável conferência feita por Afonso Lopes Vieira Inês da Castro na Poesia e na Lenda. Um dos pontos interessantes e novos dessa conferência é a evocação e a aproximação dos amores de Tristão e Isolda, os namorados imortais, dos amores de D. Pedro e Inês, Afonso Lopes Vieira trabalha num pequeno poema em prosa em que o conto medieval é singelamente narrado, no género do célebre livro de Bedier, La Roman de Tristan et Iseult. Há em toda a conferência um encanto, uma poesia, uma saudade, uma tal profusão de sentimentos finos, subtis, delicados, que o público que assistiu à leitura, comovido e delicado, aplaudiu entusiasticamente o grande poeta quando ele terminou (…). Estava terminado o Serão. A maior parte das pessoas que assistiram à festa retirou-se, ficando apenas umas quarenta, mais íntimas, que foram convidadas para assistir a uma piedosa romaria. Distribuíram brandões acesos a todas essas pessoas que, atravessando o templo, se dirigiram à Sala dos Túmulos, onde repousam Pedro e Inês. Aí, eu, no alto piso da ogiva que domina os dois sarcófagos, recitei à luz das tochas, dominado por uma íntima comoção, o magnífico e impressionante soneto de Afonso Lopes Vieira, escrito para esta solenidade, trabalhado sobre o tema do adeus esculpido na rosácea do túmulo de D. Pedro e que vou transcrever:
Até ao fim do mundo! A grande amada
Escuta o adeus da grande voz sentida
Santa e Rainha, aguarda aquela vida
Que só depois do fim é começada.

Pedra de sonho e cor, foste lavrada
Pela saudade imensa aqui vivida; 
Guarda a saudade, pois, da despedida
É a esperança da hora desejada.

Guarda a saudade que jamais acaba
Que o dia há de vir, de amor contente
Os que dormem aqui vão esperando.

E no fragor dum mundo que desaba
Hão de acordar, sorrindo eternamente
Os olhos um no outro enfim pousando.
Na verdade, um dia haverá o reencontro, um dia soarão as trombetas para o Julgamento Final e anjos pressurosos irão ajudá-los a soerguer-se dos leitos de pedra.

Sem dúvida, estes serões nada tinham a ver com a denominação genérica que é atribuída às reuniões nas vilas e aldeias de Portugal, ainda por essa altura. Está presente na memória da Alta Estremadura (concretamente no Concelho de Alcobaça), as reuniões em roda do fogo que ardia confortavelmente em lareiras ou fogões de lenha nas longas noites de inverno, que ajudavam a sedimentar os afetos e a transmitir os conhecimentos que vinham dos pais e dos pais dos pais.
Júlio Diniz, em meados do século XIX, escreveu que um dia Pedro foi convidado para um serão, o que aceitou sem grande alegria. Porém, divertiu-se mais do que supunha, pelo que tendo voltado contente, dormiu a sono salto depois. Assim, não voltou a faltar a nenhuma dessas assembleias campestres. Passou a ir com a sua viola, traste indispensável aos dandies da localidade .
Na província, os serões eram ocupados com atividades lúdicas ou mesmo económicas, como tecer, costurar ou fiar.
Gervásio Lobato, de uma maneira muito assertiva, escreveu que, ao anoitecer vemos por estas estradas fora, através das janelas abertas de par em par, homens e mulheres, lendo e costurando, em redor de uma mesa, sobre a qual a luz avermelhada do petróleo, é obrigada a convergir sobre o imenso abat-jour.
As classes médias, também não dispensavam o serão, se possível no jardim, fumando os homens um cigarro, as mulheres costurando à luz de petróleo, tomando um chá com fatias de pão ou bolinhos com compota caseira.
Bem visto, cada um fazia os serões na medida dos seus hábitos e disponibilidade.

Também havia os serões políticos, onde se conversava sobre as intrigas locais ou nacionais, os grandes objetivos ou acontecimentos, os malefícios da monarquia e as virtudes da república. Mas isso é outra história…









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