terça-feira, 26 de fevereiro de 2019



BOLO-REI OU BOLO-PRESIDENTE?

FLeming de OLiveira


O Avô do meu Pai que, tal como a sua família, vivia em Matosinhos, era um republicano assumido, embora não propriamente militante. Saudou com entusiasmo a implantação da República, pois como muitos pensava que o mal do país advinha de um regime monárquico corrupto e decadente, que o progresso viria com a mudança para uma república democrática, parlamentar, anticlerical e socializante. O filho, o meu Avô Augusto, tendo herdado alguns destes valores, já não os levou tão a risca e assim aceitou que a Esposa, a muito religiosa minha Avó Lícia, repartisse o tempo entre a lida doméstica e a colaboração com uma instituição de apoio a meninas desvalidas. No caso do meu Pai, a inclinação politica era um republicanismo quase limitado à não aceitação do regime monárquico.
Contava o meu Pai que, em plena euforia decorrente da implantação da República, o Natal de 1910 foi celebrado em casa de seus avós apenas com uma pequena expressão de carácter cristão e algum jacobinismo republicano. Tanto assim que estava arredada a ideia de montar um Presépio ou cantar loas ao Menino Jesus. Mas mesmo nos meios anticlericais, era de todo impossível esquecer certos usos e costumes centenários e tradicionais. Contava o meu Pai que, nesse Natal de 1910, o seu avô terá encomendado o tradicional “Bolo-Rei”.

A gastronomia também pode ser vítima das revoluções. Em Portugal, após a implantação da República, o alvo foi o inofensivo e gostoso “Bolo-Rei”. A impudente sanha dos revolucionários na sua ânsia de criar fraturas com o anterior regime, abateu-se sobre esta muito portuguesa iguaria natalícia, que não podia mais continuar a usar a palavra "Rei ". Se tinham acabado os Reis em Portugal, também tinham de acabar na doçaria. Os fabricantes, que queriam continuar a cozinhar, vender ou defender o velho “Bolo-Rei”, teriam de encontrar nomes alternativos e politicamente aceitáveis ou corretos. Uns optaram por o rebatizar de Bolo de Natal, Bolo das Festas ou Bolo de Ano Novo. Houve ainda quem adiantasse que a melhor e mais consensual designação seria a de Bolo Nacional.
Mas isto não satisfez alguns republicanos, que entenderam chamar-lhe “Bolo-Presidente”, como terá sido o caso dos avós de meu Pai.

Em Alcobaça, segundo me contaram, terá havido um ou outro caso de repúdio pelo nome tradicional, o que acarretou que, por via de dúvidas, o doce que essas famílias importavam de Lisboa e chegava pela carreira do Valado fosse vendido ao público (na maior parte das famílias era feito em casa) com a designação de Bolo de Natal.

Este ano de 2019 mais uma vez recriei a tradição que herdei da casa dos meus Pais.
No dia 6 de janeiro (Dia de Reis) ao almoço, os meus Pais encerravam as comemorações do período natalício, que passavam por desmontar os enfeites, a Árvore de Natal e o Presépio que existia ao lado iluminado, dia e noite, por uma pequena lamparina a azeite. A minha Mãe trazia para a mesa o muito tradicional “Bolo-Rei” e uma vela que apagávamos e procedia ao corte do Bolo, distribuído em fatias iguais pelos oito filhos e os pais. Em casa dos meus Pais nunca se pôs a questão de se saber se era “Bolo-Rei” ou não e quando contei pela primeira vez o episódio aos meus netos, eles olharam-me com um misto de espanto e incompreensão, algo inacreditável que seriam incapazes de contar aos amigos e na escola.
Mas é mesmo verdade caros leitores e agora que Natal é só para dezembro, “e não quando um homem quiser”, aqui vão mais uma vez os meus melhores votos de um ano de 2019.