quarta-feira, 30 de abril de 2014

JUSTIÇA PORTUGUESA NOS TEMPOS DO PREC. -O CASO ZÉ DIOGO (julgamento popular/condenado o morto!). -DESOCUPAÇÃO EM JULGAMENTO POPULAR (Lisboa/Boa-hora). -JÁ NEM SE RECORDAVAM DA LUA DE MEL. -Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária. -Tribunal Cívico Humberto Delgado. -Tribunal Russel.


JUSTIÇA PORTUGUESA NOS TEMPOS DO PREC.
-O CASO ZÉ DIOGO (julgamento popular/condenado o morto!).
-DESOCUPAÇÃO EM JULGAMENTO POPULAR (Lisboa/Boa-hora).
-JÁ NEM SE RECORDAVAM DA LUA DE MEL.
-Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária.
-Tribunal Cívico Humberto Delgado.
-Tribunal Russel.


Fleming de Oliveira

José Diogo, assalariado rural, foi acusado de ter morto à facada em Castro Verde, Columbano Monteiro, um latifundiário de 78 anos, seu antigo patrão, que o havia despedido e ameaçara.
Em sua defesa, o réu invocou a provocação da vítima e um longo rol de ações prepotentes ao longo do “tempo da outra senhora”.
Depois de peripécias algo rocambolescas que o caso provocou, dada a atenção (política) de que foi objeto, o réu foi julgado e condenado regularmente. De uma das vezes em que o julgamento esteva agendado quando o processo corria no Tribunal de Tomar (os advogados de defesa eram José Augusto Rocha, Amadeu Lopes Sabino e Luís Filipe Sabino e de acusação Proença de Carvalho), o Coletivo presidido pelo Corregedor Soares Caramujo, que lhe havia imposto uma caução de 50.000$00, marcou nova data (adiou) para outubro.
No exterior (na escadaria do edifício), organizou-se um Tribunal Popular, composto por 20 elementos selecionados entre a assistência (operários da cintura industrial de Lisboa e assalariados rurais do sul).
José Diogo (homicida confesso), foi absolvido, apesar de o “tribunal” ter reconhecido que, a ação, sendo um ato de violência individual não podia ser considerada revolucionária, enquanto que a vítima foi “condenada postumamente”, pela “opressão e exploração que exerceu sobre o povo” !
A fiança foi paga por Américo Duarte (o telecomandado deputado da UDP na Assembleia Constituinte, como diz Melo Biscaia e refiro noutro local), e à noite, José Diogo, compareceu num comício do partido no Campo Pequeno, que o vitoriou como herói da revolução proletária.

Este caso é interessante, pois põe em confronto diferentes graus de regulação das formas de direito. Para o direito segundo o Tribunal Popular, isto é a legalidade revolucionária, a ação da vítima e réu, eram eticamente semelhantes.
Se a ação do acusado não era considerada como revolucionária, estava todavia isenta de culpa, como resposta ao comportamento provocatório da vítima.

Em novembro de 1975, no Tribunal da Boa-Hora, estava marcado o julgamento de Maria Rodrigues, acusada de ter ocupado uma casa clandestina, melhor dizendo, um cubículo clandestino pertencente a Viúva Rodrigues & Rodrigues, Ldª.
Perante a decisão do Juiz em realizar o julgamento na Sala de Audiências, as cerca de 400 pessoas que haviam comparecido para demonstrar a sua solidariedade com a acusada, convocaram um Tribunal Popular com Júri, que realizou o julgamento no pátio, e decidiu que “a senhoria era especuladora, exploradora e opressora do povo e, como tal, sua inimiga”.
As denunciantes, eram “fascistas criminosas, inimigas do povo”, pelo que iriam ser levadas a tribunal popular, quando o povo assumisse o poder. A inquilina/ocupante foi absolvida, com o reconhecido direito a permanecer na casa, enquanto precisasse.
Ainda foi decidido criar uma equipa de vigilantes para defender a Maria Rodrigues, do “capital e dos provocadores”.

E o caso do taxista pouco escrupuloso que prestava serviço no aeroporto de Lisboa, e que tentou enganar dois pombinhos que regressavam da lua de mel de Maiorca?
Na viagem de regresso a casa, o taxista teve pouca sorte, porque a recém casada apercebeu-se de que a tarifa que lhes estava a ser cobrada, era imprópria. O caso envolveu a polícia e acabou no tribunal, cerca de dois anos depois, pois que a justiça portuguesa é normalmente lenta, muito lenta.
Menos normal foi o tom dissonante dos depoimentos dos antigos noivos. Não foram rigorosos e nada esclarecedores.
“Não se lembram?”, perguntava o juiz surpreso, “era a vossa lua de mel. Concerteza que se recordam daquele dia!”

Pois é, a vida moderna e a morosidade da justiça têm consequências estranhas.
Os noivos, entretanto, divorciados, tinham varrido das respetivas memórias as recordações que importavam para o caso.

No dia 6 de julho de 1979, pelas 22 horas, iniciou-se na Voz do Operário, em Lisboa, a primeira sessão do “Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária”.
A comissão promotora deste singular tribunal cívico, era integrada por nomes como Rui Luís Gomes, Paulo Quintela, Teixeira Ribeiro, Bernardo Santareno, Ary dos Santos, Carlos Paredes, Carlos do Carmo, Fernando Lopes Graça, João de Freitas Branco, Luís Albuquerque, Rui Polónio de Sampaio, Helena Cidade Moura, Alexandre Cabral, Urbano Tavares Rodrigues, Óscar Lopes, Avelãs Nunes, Mário Murteira, Luís Francisco Rebelo, César Oliveira, Miriam Halpern Pereira, José Gomes Ferreira, António Hespanha, Gomes Canotilho, Boaventura Sousa Santos, Jorge Leite e Xencora Camotim.
O processo, alegadamente, obedeceria aos rituais próprios de um julgamento regular, sendo o tribunal presidido pelo juiz desembargador Aníbal de Castro e contava, na qualidade de juízes, nomes como o historiador Armando de Castro, o escritor Manuel da Fonseca ou os professores universitários Maria Lúcia Lepecki, Orlando de Carvalho e Vital Moreira. Perante uma assistência variada, que integrava trabalhadores rurais alentejanos e convidados estrangeiros, o advogado comunista Fernando Luso Soares desempenhou, com facilidade, o papel de acusador público, sendo ouvidos, como testemunhas, José Saramago, Lino de Carvalho ou Carlos Carvalhas, entre outros.
Feitas as alegações da acusação, o acórdão decidiu “condenar o latifúndio, reconhecer a legitimidade da reforma agrária” e, enfim, “condenar a ofensiva contra a reforma agrária”.

Tudo se passaria ali como se de um julgamento normal se tratasse, não fora a circunstância de só existir uma parte.
O princípio do contraditório não teve lugar. No “Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária”, apenas existiu uma acusação e um acusador, não se prevendo que os réus apresentassem defesa ou sequer comparecessem. Do extenso Rol de Testemunhas, donde constavam muitos funcionários do PC (nenhuma fora chamada para contestar a legitimidade da reforma agrária, criticar alguns excessos, abusos ou referir aspetos menos conseguidos, constrangedores, do processo de ocupações levado a cabo).

À distância de 40 anos, é difícil ajuizar o motivo pelo qual se realizou esta encenação político-judiciária, o que levou pessoas, a oferecerem o prestígio de seus nomes, a um simulacro de processo judicial que não passava de uma manifestação puramente política. Se o desfecho era conhecido à partida, chamar tribunal não passava de uma figura de estilo, duvidosa quanto à forma, inútil quanto aos resultados e, acima de tudo, questionável quanto à ética dos procedimentos.
Por esse tempo, outras organizações levaram a cabo iniciativas semelhantes, como o “Tribunal Cívico Humberto Delgado”, promovido pela Associação dos Ex-Presos Políticos Antifascistas. É certo também que existiram precedentes estrangeiros, com destaque para o “Tribunal Russell”, em Estocolmo, sobre a participação dos EUA no Vietname.
O verdadeiro réu na Voz do Operário, condenado “in absentia”, era com efeito, o processo histórico, para recorrer à fraseologia marxista que esteve presente nas sessões e depoimentos.
Se a incapacidade de reverter o Rumo da História, como diria Sartre, é sintoma de independência, poder-se-á dizer que o Tribunal da Voz do Operário, pese ter ouvido apenas uma das partes, sem se preocupar em assegurar o contraditório, foi mesmo assim, uma instância independente.
Mas de uma independência que resulta tão-só da impotência dos julgadores em alterarem a Marcha da História.



Rosa Coutinho, “o Almirante Vermelho, mas de riso branco” e Sá Carneiro.

 

Rosa Coutinho, “o Almirante Vermelho, mas de riso branco” e Sá Carneiro.

Fleming de OLiveira



Num comício do PPD realizado em Aveiro, em setembro de 1975, Sá Carneiro afirmou que era preciso apurar a responsabilidade de Rosa Coutinho, “o Almirante Vermelho, mas de riso branco”, na libertação de 150 PIDES.
Numa resposta que remeteu ao “Diário de Lisboa”, Rosa Coutinho justificou a decisão, pela pouca importância político-profissional dos libertados  (motoristas, datilógrafos, escriturários, de culpabilidade reduzida, decisão essa ratificada em Decreto-Lei).
Rosa Coutinho terminava a carta-aberta, afirmando que o que Sá Carneiro disse é a “lucubração lírica de uma mente imaginosa e doentia”.
Dois dias depois, Sá Carneiro respondeu no Diário Popular com o título “O Almirante e o Aviário ou o Depenador Depenado”, de onde se destaca que “o sr. Almirante, na linguagem de aviário, foi buscar um provérbio popular do MPLA. É lá com eles. Mas é sintomático. Falar em plumagem, é que talvez não seja para o sr. Almirante de muito bom gosto”.

Pouco depois, num comício do PPD em Viseu, que correu em ordem, apesar da muita tensão, os presentes repetiram “Rosa Coutinho levas no focinho com toucinho e um copo de vinho”.



RETORNADOS DE ANGOLA. AFRICANOS DE PELE CLARA.

 


RETORNADOS DE ANGOLA.
AFRICANOS DE PELE CLARA.

Fleming de Oliveira



João Ribeiro da Ponte, a residir em Albarraque desde 1975, é um um poeta (de textos na gaveta da secretária, incapaz de publicitar).
Falando de Angola e “sua” Luanda, aonde viveu muitos anos (os melhores da vida como me diz), emociona-se ao dizer que ter saudade é dizer pouco, “quando se recorda de um quinhão de vida espraiado por imensas paragens, de sol e mar, como que prometendo a eternidade sobre a face da terra”. Afirma, com a sabedoria e segurança dos seus muitos anos que “quem não conhece África, não pode imaginar a que me refiro”.

Nascido em Oeiras, a 13 de outubro de 1930, José da Ponte tinha cerca de 20 anos quando acabou o curso comercial e, pouco depois, partiu para Angola. E foi esta a terra que lhe deu a conhecer a esposa, Maria da Conceição, a quem dedicou mais de 50 anos de vida.
Na década de 1950, José da Ponte observava os passeios de uma bonita rapariga, num jardim de Luanda e, um dia, enchendo-se de coragem, abordou-a e, gaguejando, pediu-lhe namoro.
Resultado?
Em 1958, casaram e seguiram-se mais de 50 anos de uma vida de partilha, sendo que, ao longo de muitos anos trabalharam até 1975 no mesmo local, o Banco de Angola.
Nessas mais de duas décadas, fizeram amigos, tiveram duas filhas e viveram um tempo feliz. Então podiam dizer que tanto a vida era boa, quanto bom era viver.

José da Ponte, não esquece o Jorge, servente de limpeza que falava mal português, aprendeu ao mesmo tempo a ler, com vinte anos e ele com sete, e por isso chegou a contínuo, no Banco de Angola, um africano  que queria ser “assimilado”.
No fim da tarde, depois do serviço no Banco, o Jorge tomava um duche e ia apanhar o maximbombo, para voltar para casa, no musseque. Vestia, com capricho, um fato que lhe fora oferecido e seguia pela rua fora, de livros debaixo do braço, de óculos e uma caneta à mostra no bolso de cima do casaco.
José da Ponte  lembra-se de, por vezes, o ouvir cantarolar, uma letra que vinha no livro da primeira classe.

Mas há muitas mais coisas interessantes a registar, pois não, José da Ponte?
Nos seus seis ou sete anos de idade, quando aprendeu a ler, o Jorge não foi o seu único colega. Uma outra empregada, a Bela, uma jovem de uns vinte e cinco anos, vinda de Moledo, que era quase tão analfabeta como o Jorge  também andava a estudar pelo livro da primeira classe. Mas ela, por ser branca, ganhava mais do que o Jorge. Ambos trataram de si, ambos lhe pegaram ao colo e ambos, são afinal, seus compatriotas.
Já que me refero à língua dos pretos (como a que o Jorge  falava melhor), parece-me interessante registar que Maria Kandimba era das canções mais antigas, ouvidas na rádio em Luanda.
Tocava no rádio da cozinha da casa, e José da Ponte lembra-se de “Ó Tempo Volta P´ra Trás”! (António Mourão) e “E Que Tudo o Mais Vá p´ró Inferno”,  (Roberto Carlos).
Maria Kandimba, assim como outras canções de autores angolanos, só começou a tocar na Emissora Nacional de Angola, entre 1967/1968. Antes, era proibido passar “música de pretos”, pois apenas eram tolerados os “Ngola Ritmos” e o “Ouro Negro”, agrupamentos considerados mulatos.
Cantores que cantavam em kimbundu (alguns  vindos do musseque), só chegaram à rádio por essa altura ou mais tarde, por influência de um jornalista português que conseguiu que o governo provincial/colonial autorizasse a passar a música, por recear que os angolanos ouvissem a rádio clandestina, que a UPA/FNLA e o MPLA, emitiam a partir do Zaire.

Uma das filhas de José da Ponte, Amélia, recorda quando ao domingo a mãe, Maria da Conceição, preparava uma caixa térmica cheia de sanduíches e bebidas “e a gente passava o dia inteiro na Ilha, no Mussulo ou no Morro dos Veados. Porque só ali”, interrompe o poeta José da Ponte, “sob a sombra da palma da mão aberta em toldo, com o oceano atrás do ângulo de visão e, em frente dos olhos, o areal frondoso a perder de vista, é que é possível imaginar como o mundo é grande. Só ali, abrindo os braços ao vento e correndo até ao limite do cansaço, se pode assegurar, sem desmentido possível, que Deus criou a terra com generosidade e uma imaginação tão grandes que nunca, nunca mesmo, alguém poderá merecê-la”.

Amélia também lembra as balas tracejantes que, em 1975, cruzavam os céus de Luanda e que de noite lhe pareciam muito bonitas e de chorar quando atravessou a cidade a fugir, aninhada à mãe, no jeep.
E da bicicleta que teve de deixar para trás? “Meu Deus, o quanto chorei por saber que não a poderia trazer comigo no avião…”
Dizer saudade é, portanto, pouco para José da Ponte, e sem receio de ser tido por velho lamechas, “só quem nunca viu esta terra pode ter desistido desse sentimento que resta, comum a todos os que viram a transição do seu próprio mundo”.

A família de Laura Benevides, estava há três gerações em Angola.
Não tinha interesses, salvo algum dinheiro, parentes ou amigos em Portugal. Sentia-se bem naquela terra. Era a sua, não tinha nem queria outra.
No ano de 1973, Laura com dez anos entrou para o liceu D. Guiomar de Lencastre (vulgo liceu feminino), estabelecimento que se orgulhava da educação que proporcionara a jovens e futuras mulheres durante duas décadas (fora criado em 1954).
Em 1973, no liceu já se podiam usar as batas curtinhas, e as suas eram tão curtas, que “minha mãe mandava fazer uns calções, para estar em condições quando fosse chamada ao quadro ou estivesse no recreio”.
Mas Laura calcula que era a mãe que não gostava de a ver de bata pelos joelhos, apesar das suas perninhas, se parecerem como dois pauzinhos de vassoura.

Em 1974, começaram os confrontos em Luanda e o liceu, que devia ser um espaço de formação e estudo, transformou-se em acampamento de desalojados e feridos.
Foi o tempo de alguns amigos começarem a partir (bruscamente) para Portugal. De fugas, perdas e lutos. Mas para outros, em contrapartida, de sonhos, alegrias, esperanças e celebrações de vida. Misturaram-se prazeres e dores, nascimentos e despedidas, despiram-se as vestes da ingenuidade trazida da infância e das ilusões exponencialmente romanceadas pelo sonho vivido quente e intensamente. Os que ficaram tiveram de ajudar no que fosse preciso. E era muito.
Laura, continuava a ir todos os dias ao liceu, sempre que possível levada pelo pai, apesar dos tiros e do risco que isso comportava.
Não queria faltar.

Em junho de 1975, o liceu abriu portas para servir de abrigo a quem vinha fugido da guerra.
Nas salas de aulas, passaram a escutar-se gemidos, outras línguas e viram-se panos de todas as cores. Na cerca, nos jardins interiores, na Sala de Lavores e até perto do tanque onde se podia espreitar os jacarés, ao pé da sala de Canto Coral, cuidava-se de pessoas. E procurava-se cuidar por inteiro, apesar de faltar tudo.
Dividir tarefas era a operação principal e mais difícil. Era preciso dividir espaços, horas, até pensamentos e os pouquíssimos alimentos disponíveis. Dividir sem apenas subtrair, fazendo os restos virar ganhos. Nos muitos nadas que enchiam os bolsos, era sempre possível descobrir-se alguma coisa mais e partir para novas operações.

Com 12 anos, Laura foi encaminhada para ajudar numa enfermaria.
Um dia, puseram-lhe um frasco de álcool numa mão e um rolo de gaze com uma tesoura na outra. Enquanto, o enfermeiro limpava a ferida de uma mulher, com ar desesperado e olhos vítreos, ia-lhe dizendo para por álcool no algodão “enquanto vou ver se encontro a bala nas costas”.
Laura sentiu, nesse momento, que não aguentava, (podia desmaiar a todo o tempo), pelo que pediu que a colocassem noutro lugar e, assim, foi parar à cozinha, a descascar batatas.
Mas como era uma menina-família, branca e sem prática, os encarregados não ficaram satisfeitos com o trabalho, pelo que foi recambiada, dessa vez, para a secção das crianças.
Levava-as para a cantina e, depois de comerem, brincavam e cantavam, faziam jogos até adormecerem, entretendo-as para não pensarem nas mães ou pais feridos, estropiados, mortos ou desaparecidos.
Em tão pouco tempo, viu o que os seus pais sempre a haviam poupado. Mas mesmo assim não queria ou não podia vir embora.
No caso afirmativo, para onde?
No largo em frente ao liceu, já não paravam os carros dos papás e as motos dos rapazes a ver o “santo sacrifício da saída”, mas ainda havia quitandeiras a vender mangas, abacaxi, abacates, micates e vendedores ambulantes. Os ardinas deixaram de passar.
Quem iria comprar jornal?

No liceu, com os seus 12 anos a amadurecer rapidamente, Laura aprendeu que a vida pode mudar rapidamente de cenário.
Mais um ano decorrido, ao sábado passou a haver campanhas de limpeza, onde todos participavam. Não, não era obrigatório, mas Laura e outros rapazes e raparigas, brancos havia cada vez menos, gostavam da função e acreditavam que o país precisava que se arregaçasse as mangas.
O ambiente era definitivamente diferente. Tão diferente dos tempos em que menina pequena ia com o pai ou a mãe de ou para as aulas. Parecia ter passado tanto tempo...
Morava perto do liceu. Por isso, tendo vindo para Portugal em 1980 para continuar os estudos, ainda assistiu à sua morte, lenta por degradação. Depois da “dipanda”, o Guiomar de Lencastre deu lugar ao Nzinga Mbandi.

Hoje, nas suas instalações recuperadas em 2000, partilham-se outros saberes, falam-se de outros reis e rainhas. Laura Benevides, já voltou a Luanda duas vezes, mas vive em Lisboa, onde é professora de história, no ensino secundário onde ensina os reis e rainhas de Portugal.


EM QUE SE FALA DA REFORMA AGRÁRIA E DE OCUPAÇÕES. EM ALCOBAÇA NÃO HOUVE OCUPAÇÕES, POIS CLARO!


 


EM QUE SE FALA DA REFORMA AGRÁRIA E DE OCUPAÇÕES.
EM ALCOBAÇA NÃO HOUVE OCUPAÇÕES, POIS CLARO!

Fleming de Oliveira


Em 9 de fevereiro de 1975, o PC realizou, em Évora, a I Conferência dos Trabalhadores Agrícolas do Sul.
Milhares de trabalhadores, provenientes dos distritos de Évora, Beja, Portalegre, Setúbal e Santarém, participaram na conferência e no comício de encerramento.
A Conferência e as decisões nela tomadas, entre as quais se destacava a de avançar para uma Reforma Agrária que entregasse a “terra a quem a trabalha”, constituíram o primeiro passo no caminho da construção concreta da Reforma Agrária, alegadamente substituindo o desemprego e a miséria, pela produção, o trabalho e o pão.

Aquele acontecimento parecia coroar a difícil e persistente luta, na qual esteve sempre presente o PC, organizando-a e dirigindo-a.
Levada a cabo pelo proletariado agrícola do Sul, sob o lema “A Terra a quem a Trabalha”, que foi parte do combate travado contra o salazarismo que, por isso, a reprimiu com perseguições, prisões e torturas, onde se destacam os assassinatos dos militantes comunistas como Alfredo Lima (Alpiarça, 1950), Catarina Eufémia (Baleizão, 1954) e José Adelino dos Santos (Montemor-o-Novo, 1958).
A “grande” História da Reforma Agrária, tal como a do PREC, pode ser contada, sob mais do um ângulo. Em comum, só talvez o de não ser propriamente uma situação nova, pois na I República, em 1912 e 1917, houve levantamentos de trabalhadores no Alentejo a que se seguiram ocupações de propriedades. Um dado adquirido, é que em geral os camponeses viviam muito mal até ao 25 de abril e, que os proprietários das grandes herdades, praticavam uma agricultura de baixo nível, quando comparado com a dimensão da terra, que só uma minoria as geria pessoalmente e que a maioria, na cidade, apenas retirava a cortiça de sete em sete anos.

Passados cerca de 40 anos, a ocupação de terras no Alentejo e Ribatejo é um processo fechado, embora com cicatrizes.
O PC faz questão de não esquecer essa página “heroica”. Partidos como o PSD ou o CDS não têm interesse especial (se não memorialista), em retomarem a questão, e o Bloco de Esquerda ainda não existia.
Quanto ao PS, um dos primeiros impulsionadores da Reforma Agrária, a mudança de orientação política poucos meses após as primeiras ocupações e a promulgação da Lei Barreto, é tema que não aprecia comentar.
“A terra a quem a trabalha!” foi a frase mais ouvida no Alentejo e temida no resto do País.

Em Alcobaça creio que não, se bem que em boa parte do Ribatejo e uma parcela de Castelo Branco foi replicada na prática. Os que viveram aqueles tempos, como Joaquim “Barbeiro”, contam que, ao fim de semana “era um mar gente a ver como é que era isso no Alentejo! E a fazer perguntas! E a querer respostas!”

No Oeste, o PC nunca se aventurou a defender expressa e publicamente ocupações de terras ou casas.
O meio era-lhe hostil.
Os agricultores de Alcobaça, não estavam preparados para esse processo, mesmo os que viviam com maiores dificuldades, nada tinham de proletários, pelo que a ação de agitação do PC, abordava outros temas, mais soft.

Por iniciativa do partido de Cunhal, realizou-se no domingo 9 de março de 1975 no ginásio da Escola Secundária de Alcobaça, a I Conferência de Camponeses do Distrito de Leiria que reuniu cerca de 250 camponeses em discussão sobre os seus problemas principais (que não a ocupação de terras).
A conferência iniciou-se de manhã com a presença de Joaquim Gomes, do CC do PC, estando dividida em secções que englobavam os problemas mais prementes da classe.
Das conclusões da reunião, destaca-se a que propõe “que as propriedades do Estado, hoje na mão do Instituto de Reorganização Agrária e outras, sejam entregues aos trabalhadores rurais e pequenos agricultores para formas avançadas de exploração da terra, bem como a criação de centros de investigação agrícola a serem utilizados como escolas do ensino agrícola”.
Mas isto nada tinha a ver com o Oeste.

Piedade Neto, tem presente que na Freguesia de Coz, certos ativistas, como o Barbosa Rodrigues, (truculento articulista de o VOZ DE ALCOBAÇA a quem já me referi doutras vezes) anunciavam, para breve, a ocupação de casas de habitação, caso os proprietários possuíssem mais do que uma, pois era necessário “repartir a riqueza, uma casa, é mais que suficiente”.
O sogro de Piedade Neto, pessoa de idade, ficou intimidado com a perspetiva de perder uma (o que aliás não se concretizou).

Mas isso não passava de inconsequente agitação verbal.
António Barbosa, de Coz, disse-me que ”nunca ninguém se atreveu a ameaçar-me neste sentido, pois, se o fizesse…”
E quem o conhece, admite que não era só conversa, se o fizesse.

Os camponeses, que ocuparam mais de milhão e meio de hectares no Alentejo, avançaram cedo para esta solução.
Álvaro Cunhal, especialista na questão agrária  considerava o levantamento popular do Alentejo como uma das principais alavancas para derrubar o regime de Salazar.
Se antes do 25 de Abril, os movimentos de massas camponeses no Alentejo deram ao PC vitórias e prestígio, depois foi obrigado a correr atrás de milhares de trabalhadores que supunham ter chegado a sua hora, a de ter um salário mínimo e trabalho durante todo o ano e, principalmente, terras para cultivar.

Logo a 5 de julho de 1974, aconteceram fenómenos de ocupação no Distrito de Beja.
A ocupação que assinala o início do processo da Reforma Agrária foi a da herdade do Monte do Outeiro, a 10 de dezembro de 1974. Pela primeira vez, ocorreu a convergência entre os fatores que caracterizaram as ocupações, terras abandonadas, trabalhadores sem emprego, sindicatos agrícolas a dar apoio e militares do MFA a impor e legalizar a nova ordem.

Na noite de 9 para 10 de dezembro, uma comissão composta por sindicatos, um representante dos agricultores e outro do Ministério da Agricultura, deslocou-se às proximidades da herdade do Monte do Outeiro e, perante os trabalhadores, definiu que havia condições para criar mais emprego.
Foi invocado, por analogia, a aplicação do Dec. 670/74, que permitia intervir em empresas industriais, caso houvesse situação de sabotagem económica. No dia seguinte, um plenário na herdade inaugurou o processo de ocupações e abriu caminho para um dos momentos do PREC que mais controvérsia suscitou. 40 anos depois da ocupação da herdade do Monte do Outeiro, o panorama é de triste abandono, um pouco como na agricultura de outras áreas do país.

Os que ocuparam a terra para trabalhar, entretanto reformaram-se ou morreram. Os filhos abandonaram o interior e os netos vêm com mais agrado a vida na cidade, ainda que com muitas dificuldades, que o cabo de uma enxada ou um trator.

Para Manuel Joaquim, vulgo “Cabreiro”, nos seus mais de oitenta anos, residente perto de Sousel, entende que “não compensou a canseira enorme esforço que tivemos em 1974/1975. As propriedades voltaram para os donos, as cooperativas faliram fecharam, os pequenos agricultores que tinham os terrenos atribuídos pelo Estado, voltaram ao ponto zero, pois foram obrigados a assinar um contrato com os proprietários, válido por apenas dez anos. O grande problema que se verificou, teve origem na pressão por parte dos latifundiários que exigiram que a gente comprasse as terras”.
Manuel “Cabreiro” desiludiu-se com o PC, revoltou-se com o rumo da Reforma Agrária e o atual estado da pequena agricultura, “porque o setor está em perfeito descalabro, graças à CEE e ao português Durão Barroso”.

António Barreto, Ministro da Agricultura, autor da célebre e contestada pelo PC, Lei Barreto, declarou que “nunca concordou com a Reforma Agrária, como a que foi feita em 1975, nunca! Nem um dia! Tudo foi feito ilegalmente e com um destino político. Muita gente era contra, inclusivamente, por exemplo, o velho Professor Henrique de Barros, antigo defensor das ideias de reforma agrária e que nunca se reconheceu naquilo”.




 

PROFESSORES NA ESCOLA NO TEMPO DO PREC.
Histórias em Alcobaça (prof. António Ventura) e Alenquer.

Fleming de Oliveira



O Prof. António Ventura, de Alcobaça, diz que é por natureza e formação um idealista que entrou com entusiasmo para o ensino, ainda antes do 25 de Abril.
Sendo a sua área, a Filosofia e esta intrínseca da liberdade, o 25 de Abril no se dizer surgiu-lhe como um rasgar de horizontes, sentindo que podia daí em diante transmitir aos alunos, valores que trouxera aprisionados.
Com o passar dos meses, esse entusiasmo foi arrefecendo, pois viu entrar na escola, “não uma lufada de ar puro, mas uma tendência para o facilitismo, o desprezo pela disciplina e exigência”. Os professores eram incentivados a explicar os quarenta anos da governação salazarista, “ditadura fascista”, e a necessidade de acabar com o capitalismo, explorador das massas e especialmente do operariado.
Sentia ódio no ar.

Apesar de permitir, nas aulas, liberdade de expressão, António Ventura não condescendia com a falta de respeito ou indisciplina, e punha na rua quem as quisesse perturbar.
“Os meus alunos (contou-me) aprendiam que, juntamente com a liberdade, tem que existir o respeito e que não há liberdade sem esse respeito mútuo”.

Um aluno que é hoje o Dr. António Valério Maduro, muito entusiasmado com o programa político do MRPP um dia, na aula, pediu a palavra.
António Ventura deixou-o falar, valorizou a intervenção e soube, mais tarde, que ele ficou tão satisfeito com a atitude que, em casa, falou do  professor, em termos bastante elogiosos.
“E foi a sua mãe que um dia contou à minha mulher as suas palavras: O professor é um gajo porreiro; ele é das direitas, mas ouve-nos a todos muito bem. A nossa amizade nasceu aí.”

A propósito do preconceito anticapitalismo, Ventura recordou-me que, “pouco tempo após abril apareceram os delegados sindicais por todo o lado e também nas escolas. Eu possuía então na Cruz da Légua uma olaria de barro vermelho, com 5 trabalhadores e produzíamos louça doméstica. Geria o negócio a minha mulher”.
Pois o delegado sindical veio ter consigo, dizendo do alto da sua arrogância:
“Olha, Ventura, como sabes o capitalismo vai acabar e por isso tu vais ter de escolher”.
A resposta foi pronta e clara, “amigo, não sejas parvo. Não sou capitalista, nem o capitalismo vai acabar. Não me aborreças”.
Aqueles eram, mesmo, tempos de utópicas esperanças.

Na Escola Secundária de Alcobaça, tal como outras congéneres do País e até mesmo no Ensino Universitário, depois do 25 de Abril, passou a ser considerado desajustado/impróprio que os professores, que chegando pontualmente às aulas, exigissem que os alunos fizessem o mesmo, se levantassem quando entrassem ou descobrissem a cabeça. Luís Marinho de Matos, ao tempo aluno e hoje da Comissão de Pais, considera que “isto é apenas uma questão de respeito e educação”.

Em Alenquer, o prof. Joaquim Franco, quando dava a sua aula de apresentação anunciava, para que não houvesse dúvidas “sou de esquerda, com as quotas em dia e no pleno uso dos direitos de militante do PC e do Benfica”.
Em certa ocasião, ele que por vezes, fumava um cigarrito na aula, o que era proibido, surpreendeu os colegas, ao trautear na sala de professores, o refrão de “A Internacional”.
Explicou que era uma música de que muito lhe dizia e fazia parte da sua formação familiar e social.

Com um professor da Escola Secundária de Alenquer, ocorreu no início do ano de 1975, um acontecimento que, na altura, deu azo a muita galhofa. Um caniche denunciou a infidelidade de um marido e acarretou um divórcio.
Como assim?
Ele encontrava-se envolvido, num “tête-à-tête”, num café/pastelaria, tendo deixado o animal à porta, preso a um candeeiro ou uma árvore. Aconteceu, porém, que por ali passou perto a esposa e um filho pequeno. A ladrar, cheio de alegria, o cão chamou-lhes a atenção e indicou onde estava o dono, que foi apanhado em flagrante e não fora a presença de outras pessoas que os apartaram, teria também havido uma cena onde, para além de mimos verbais, também ocorreriam alguns físicos.

Os alunos da Escola Secundária de Alcobaça, no dia 25 de fevereiro de 1975, entraram em greve de zelo, por discordarem das disposições do MEC quanto às novas regras de classificação/limite para a dispensa de exames.
Entretanto, fora eleita e homologada a Comissão Diretiva da Escola, que substituiu a precária comissão de gestão.
Do elenco da nova equipa de esquerda, faziam ainda parte, Carlos Maldonado, Mário Sá, Manuel Frade, Hermínia Salgueiro Marques e José António da Silva. Os alunos foram representados por António Matias, Luís Cândido, Venâncio Bernardes e Salvador Inácio. O pessoal menor (expressão que se utilizava sem conteúdo pejorativo), estava representado por João Augusto Coelho.


OTELO, ”O CAVALO DO PODER” E OUTRAS TIRADAS “EXEMPLARES”.

 


OTELO, ”O CAVALO DO PODER” E OUTRAS TIRADAS “EXEMPLARES”.

Fleming de Oliveira


Otelo, para a pequena história e anedotário político-nacional, assumiu comportamentos e expressões que lhe ficaram indelevelmente associados.
Numa manifestação da FUR, que exigia a desocupação da RTP e emissoras de rádios, Otelo foi apelidado de “social-democrata” e “fascista”, o que muito o irritou.
”Fascista” eu?
Em resposta assegurou que não tinha ambição de poder, pois que “se tivesse conhecimentos livrescos e estrutura política, podia ser um Fidel Castro da Europa”. Para reforçar o seu desapego pelo poder  “que pertencia ao povo”, afirmou ainda, mais tarde, que “o cavalo do poder lhe tinha passado ao pé, mas que ele não o tinha querido montar”.
Esta tirada ridícula teve repercussão no PPD de Alcobaça e, assim, de aí em diante quando alguém se candidatava ou ia ocupar um lugar político, perguntava-se-lhe se ia montar o cavalo…

O cap. Álvaro Fernandes, parente do tenente “traído” (de quem já tratei noutro local), com a colaboração de militares ligados ao CPCON, aonde estava colocado, numa entrevista para a rádio, assumiu a 24 de setembro de 1975 o desvio de mais de 1000 G3, do Depósito Geral do Material de Guerra, em Beirolas, pois “o que tive de fazer não é mais que um passo lógico e consequente de um oficial que esteja realmente interessado em fazer avançar o processo”.
Este oficial encontrava-se ausente sem licença, pelo que foram dadas ordens para ser preso, caso não se apresentasse, até ao dia seguinte, em qualquer unidade militar, sendo pois considerado desertor.

Regressado da Suécia e confrontado no aeroporto com esta situação , Otelo disse aos jornalistas que o “desvio foi um erro, mas estava tranquilo, pois as amas estavam à esquerda, em boas mãos”.

Dizia-se que “Portugal parecia um parque de diversões, pois a política e os acontecimentos, tal como numa roda gigante, andavam à procura do nunca que ninguém sabia o que era ou onde era”.

As eleições para a Assembleia Constituinte tiveram um significado político ímpar (não é demais sublinhar), simbolizaram a vitória de valores da democracia sobre o processo revolucionário de cariz autoritário e arbitrário, se não mesmo totalitário.
Ao darem a palavra ao Povo, os Capitães de abril, acabariam por resistir, pelo menos nesse aspeto, aos cantos de sereia de umas franjas que os queriam empurrar para as mais imprevisíveis aventuras.
A mobilização cívica levada a cabo pelo PPD e outras forças democráticas como o PS e o CDS durante meses pelo País fora, e concretamente no Concelho de Alcobaça, assentava no reconhecimento do significado do momento que se vivia, a afirmação dos direitos de cidadania face aos que aceitavam conquistar o poder por quaisquer meios.
O verão Quente, assumiu-se como o corolário lógico das eleições para a Assembleia Constituinte, que pareciam pouco ter mudado.
Pela primeira vez, em 50 anos, homens e mulheres, mais ou menos letrados, com mais ou menos posses, em Alcobaça, como em qualquer ponto do País, sentiram com orgulho que podiam influenciar os destinos nacionais e, portanto, uma parte não irrelevante do seu destino.
Sobre este assunto, Otelo também opinava com desenvoltura pois “perante o Povo Português, a responsabilidade que o MFA assumiu em 25 de abril, mantém e não pretende alienar, implica necessariamente uma vigilância atenta e uma participação ativa em tudo quanto disser respeito à Democracia que tem de defender e ajudar a construir. É neste contexto que o problema da Constituinte deve ser encarado; falta apenas definir a forma pela qual essa vigilância deverá ser exercida uma vez que a vontade política do Movimento é inabalável quanto à defesa dos interesses democráticos. Entretanto, aguardamos latada ainda que a decisão suba das bases do MFA até à CCP, como aliás tem vindo sempre a ser feito desde que a ideia da Revolução nasceu”.


MÚSICA EM ALCOBAÇA NO TEMPO DO PREC. ZECA AFONSO, OS ESPANHÓIS “AGUAVIVA” E OUTROS.


 
MÚSICA EM ALCOBAÇA NO TEMPO DO PREC.
ZECA AFONSO, OS ESPANHÓIS “AGUAVIVA” E OUTROS.

Fleming de Oliveira

Portugal viveu no PREC dias conturbados, mas onde a música acabaria por não desempenhar papel muito duradouro.
Num período que se manteve quase inalterado, o facto de os mais reputados agrupamentos portugueses do pop/rock verem o seu papel limitado, em termos de espetáculos ao vivo a atuações em bailes de finalistas (segundo José Alberto Vasco) “Alcobaça teve, em 1975, aquele que terá sido o seu melhor baile na Escola Secundária, com a atuação da banda portuense Smoog, que incluía António Pinho Vargas e Miguel Graça Moura nos teclados, o baixista Alberto Abreu e o baterista Álvaro Azevedo. Na primeira parte do espetáculo, atuou uma das bandas que marcou a época em Alcobaça, na área pop/rock, Os Jamha, da Maiorga”.

Nesse campo, será de recordar os vestiarienses  “Solredo”, que atingiram alguma relevância local embora de curta duração, e a sua atividade se centrasse mais na participação em eventos de cariz popular, como festas de aldeia e afins, o papel em 1971, do I Concurso de Música Pop de Alcobaça, apresentado no Cineteatro, pedrada no charco da monotonia local, a exemplo do que foi, no mesmo ano, a nível nacional, a primeira edição do Festival de Vilar dos Mouros. 

Em 7 de junho de 1975, assistiu-se ao I Ciclo de Música de Alcobaça, cuja importância poderia ter sido marcante noutros contexto e objetivo.
Nessa noite, atuou o conhecido agrupamento espanhol Aguaviva, no Pavilhão Gimnodesportivo.
O Aguaviva foi um agrupamento fundado no início da década, que sob a direção e produção do cantor e compositor Manolo Diaz, se dedicava a composições, em que se aliavam a música popular rural, especialmente andaluza, e a música popular urbana, utilizando poetas como Blas de Otero e Garcia Lorca. Um dos elementos do grupo dinamizador da iniciativa (cujo nome não apurei), deu conta ao esquerdista “Voz de Alcobaça”, dos objetivos pedagógicos que se pretendiam atingir com a presença deste grupo e iniciativas.
“(…) Fazendo a música parte integrante do espírito popular e havendo em Alcobaça raízes de tradições musicais, um grupo interessado em arrancar esta terra ao seu adormecido de largos anos, está tentando realizar nesta vila um ciclo de musica que responda às necessidades atuais. A arte deve estar ao serviço do povo e deixar os seus restritos círculos de elite”.
“(…) Também tem de se consciencializar das suas necessidades e participar, pois que poderemos ter grandes espetáculos que se o povo não aderir, não participar, não comparecer, os artistas não poderão transmitir a sua mensagem. Ao tentarmos organizar este Ciclo preocuparam-nos questões como: Música para quem? De quem? Em Alcobaça há um ano a música servia interesses comerciais, sendo a que normalmente chegava ao povo e sobretudo aos jovens, música alienante, que nada dizia. Havia, sem duvida, música não abastardada e música com uma mensagem a transmitir, mas nem uma, nem outra cumpriam a sua missão, pois que uma estava encerrada em grupos restritos de privilegiados e a outra impedida de chegar ao povo que, sem dúvida a saberia entender. Era necessário que o povo não pensasse. (…)”
Os espetáculos, redundaram num enorme fracasso de bilheteira, pois apesar da propaganda feita pelos organizadores, o público não correspondeu.
A assistência, maioritariamente composta por pessoas de fora, apenas chegou para preencher alguns lugares da bancada central do pavilhão.

José Alberto Vasco evocou-me uma sessão da LUAR, realizada num dos salões da ala norte do Mosteiro, com a presença de Palma Inácio e Camilo Mortágua, e ainda o advogado radical Pessanha Gonçalves, que a organizou.
Esteve presente José (Zeca) Afonso (aliás tinha sido professor liceal em Alcobaça), que cantou algumas canções, começando por “Venham Mais Cinco” e encerrando com o inevitável “Grândola Vila Morena”, entoado em pelos cerca de 50 presentes.

Ainda nesse ano, Alcobaça colheria alguns sopros do vento que agitava o país, tendo Ermelinda Duarte, intérprete de “Uma Gaivota, Voava, Voava”, e José Viana, ator de revista, atuado nas comemorações locais do 1º de maio.
Esse espetáculo do Dia do Trabalhador, foi concluído com a estreia da Orquestra Típica da Maiorga, sob a direção do maestro Ricardo Cunha.
Em 1 de junho de 1975, o público alcobacense teve a oportunidade de assistir a um concerto do Ensemble Convivium Musicum, que, incluindo no seu elenco o tenor alcobacense Fernando Serafim, bem como a compositora e pianista Constança Capdeville, inseriu no repertório composições de Luís de Freitas Branco, Cláudio Carneyro e Lopes-Graça (Canções Heroicas).
A 10 de julho, o Ballet Gulbenkian apresentou-se no Cine-Teatro de Alcobaça e a 25 atuou no Mosteiro de Alcobaça, os Petits Chanteurs de Paris, ambos com muito agrado e boa afluência, como recorda Fleming de Oliveira que antigo intérprete de um grupo coral esteve presente neste último.

Sobre José Afonso, e a música antes e depois de abril, José Alberto Vasco é autor de alguns apontamentos.
Entre os discos editados em Portugal nos primeiros meses após o 25 de Abril, um muito esperado foi o primeiro LP de José Afonso. Com uma vida marcada pela luta contra o regime de Salazar e Caetano, José Afonso era um símbolo vivo da resistência contra o regime, vindo a ser também da Revolução. Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, José Afonso exerceu o professorado em várias localidades, entre as quais Alcobaça, acabando por ser expulso do ensino oficial em 1968, por motivos políticos. A sua carreira artística iniciou-se no final da década de 1940, quando frequentava o 6º Ano liceal, começando por cantar em serenatas e outras deambulações boémias e académicas. Fez parte do Orfeon Académico, com o qual ainda gravou um disco, dedicou-se ao Fado de Coimbra, evoluindo posteriormente para a balada e daí para a canção de intervenção.
“Coro dos Tribunais” foi o título do primeiro disco editado por José Afonso após o 25 de abril, gravado em Londres, durante os meses de novembro e dezembro de 1974, com arranjos e direção musical de Fausto. Nessa produção, José Afonso voltava a enveredar pelo surrealismo, opção artística iniciada em 1971, no álbum “Cantigas do maio”, e aprofundada dois anos mais tarde em “Venham Mais Cinco”, atitude que lhe mereceu mordazes críticas de setores mais puristas e conservadores da música popular urbana. “Tenho Um Primo Convexo” é, segundo José Alberto Vasco “um dos mais preciosos temas” incluídos por José Afonso em “Coro dos Tribunais”, sendo marcado pela opção estética surrealista e pelo facto de os seus primeiros 4 compassos serem baseados num tema musical de Phototi.

José Afonso e a sua arte são (passe a vulgaridade do comentário) indissociáveis do “Espírito de abril”.
“Grândola Vila Morena”, foi uma canção gravada em França, em 1971, editada no ano seguinte, integrando o álbum “Cantigas do maio”, ainda hoje por alguns considerado um dos melhores discos da música popular portuguesa, realizados até então. Nesse disco (de acordo com José Alberto Vasco), José Afonso começou a enveredar por uma instrumentação conotada com a pop e pelo surrealismo no respeitante às letras, revelando preocupação e cuidado na pesquisa e manipulação de temas tradicionais, construída a partir de um refrão popular e beneficiada por um arranjo musical de José Mário Branco, que conhecera dois anos antes, em Paris.
Paulo de Carvalho também figura da Revolução de abril, dado que “E Depois do Adeus”, foi a senha utilizada aos microfones dos EAL-Emissores Associados de Lisboa, para o início das operações do MFA.
O tema foi gravado e editado em 1970, quando Paulo de Carvalho iniciou a carreira a solo, depois de ter passado como baterista e vocalista de agrupamentos, como os Sheiks, o Thilo’s Combo e o Fluído, chamava-se “Waiting For The Bus” e é a face B de um single, em que Paulo de Carvalho cantava, em inglês, temas de autoria do espanhol Manolo Diaz, uma trave-mestra do espanhol “Aguaviva”.
A melancolia da canção é, segundo o referido crítico, um retrato marcante do ambiente tristonho que se vivia no país, numa época em que além da ditadura e da repressão política e social, se encontrava forçado a viver praticamente isolado do mundo. Em “Waiting For The Bus”, um amargurado Paulo de Carvalho espera sombriamente por um autocarro e por uma vida melhor...



O 25 DE NOVEMBRO DE 1975 NA RTP. UM “BOBO PORTUGUÊS” POR OUTRO AMERICANO…


 
O 25 DE NOVEMBRO DE 1975 NA RTP.
UM “BOBO PORTUGUÊS” POR OUTRO AMERICANO…

Fleming de Oliveira

O episódio da mudança na correlação de forças, tal como o País percebeu, é quase anedótico.
No dia 25 de novembro de 1975, o jovem bem penteado, bonitão e barbudo cap. Durand Clemente, segundo-comandante da EPAM/Escola Prática de Administração Militar, que tinha ocupado a RTP, falava em direto na televisão, defendendo as teses da fação mais radical do MFA.
À entrada nos estúdios, havia anunciado que “aqui não há meias-tintas, não tenho mais tempo para conversa (…). Isto é tudo muito desagradável, mas, se for necessário matar, eu tenho de matar”.
E, depois de ter trancado o diretor da RTP num gabinete, avançou para o estúdio, onde iniciou um discurso sobre as virtudes do poder popular. Mas, às 21h10m, os telespectadores viram um Clemente começar a esbracejar, em protesto contra os sinais que o técnico lhe fazia, anunciando que voltará ao ar quando tudo estiver resolvido. De seguida surgirão no ecrã as imagens do filme The Man From the Diner's Club, de Danny Kaye, que já seria emitido a partir dos estúdios do Porto.
Com surpresa dos telespetadores foi a substituição de um bobo por outro…

A JSD-Juventude Social-Democrata (que ainda se apresentava como Juventude Social-Democrática)  comunicou, em 26 de novembro de 1975:
“(…) Graças à pronta resposta dos militares progressistas e das massas populares, conseguiu-se cortar o caminho a forças contrarrevolucionárias sociais-fascistas, sendo de realçar a atuação dos militantes do PPD e da Juventude Social-Democrática em toda a movimentação de massas populares, que levou à libertação de Monte Real dos inimigos da democracia e do socialismo.
A JSD não pode deixar de saudar o Regimento de Comandos, e todas as unidades que, fiéis à causa da democracia, do pluralismo e da liberdade se têm vindo bater com coragem e tenacidade louváveis contra os que desde há já uns meses a esta parte, põem em causa sistematicamente as conquistas do 25 de Abril. Os inimigos da revolução, os fascistas, os sociais-fascistas e a pseudo-esquerda radical-verbalista têm vindo a pôr em prática um plano contrarrevolucionário, que as forças democráticas já desmascararam. (…)”