terça-feira, 21 de janeiro de 2020

NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.

NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL
CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.
(10)


UM ALCOBACENSE QUE VIROU BÓER
ÍNDICE

Para se poder ajuizar as condições da estadia dos exilados em Portugal, é conveniente compará-las com a dos prisioneiros em campos da África do Sul e noutros locais de detenção como, por exemplo, a Índia.[1]

Hendrik Adolf Smit (bisavô de Laetittia Smit), nasceu no dia 23 de setembro 1846, na Quinta Aasvogelfontein, no distrito de Harrismith/África do Sul, no meio de gado bovino, ovino e cavalos.
No dia 9 de outubro de 1871, casou-se com Susanna Germina Lourens, tendo ele 25 anos e ela 15 anos. Depois do nascimento de cinco filhos, Susanna com 26 anos, morreu durante o trabalho de parto.
Viúvo, com seis crianças, Hendrik, procurou esposa e voltou a casar com Cornélia Susanna Sauerman.
Com a guerra, Hendrik A. Smit, proprietário da Quinta Höningklip, onde vivia com a família, cedeu o gado caprino e ovino, bem como a maioria dos cavalos ao irmão Barend, residente na Colónia do Cabo, para a luta contra os britânicos.
Entre 1900-1902, com o Gen. Horatio Herbert Kitchener, foi implementada a política de terra queimada, em que as quintas eram destruídas pelo fogo, incluindo a produção pecuária e as mulheres, crianças e idosos levados para campos de concentração sem condições, com o objetivo de forçar os guerrilheiros bóeres a capitular. Os bóeres capturados eram enviados para campos de prisioneiros como a Ilha de Santa Helena, Bermudas, Ceilão, Índia e Portugal. Com a invasão de Kimberley, depois de Mafeking, Bloemfontein, Johannesburg e finalmente Pretória, os bóeres não tiveram alternativa a renderem-se. Mas já tinham morrido nos campos de concentração mais pessoas que nos campos da batalha.
Para salvar mulheres, crianças e idosos, os bóeres decidiram entregar-se na noite de 27 de fevereiro de 1902, na Quinta Strathnairn, onde mais de 600 homens e jovens foram capturados. Pelo menos 14 dos familiares de Laeticia Smit foram presos nessa noite, incluindo o seu bisavô Hendrik Adolf Smit, de 56 anos, o filho mais novo Barend Smit, de 15 anos e o sogro daquele Hendrik Herman Adolf Sauerman, de 77 anos. Transportados de comboio, em vagões para o gado, até Greenpoint, Cidade do Cabo, aí chegaram a 7 de março de 1902, para depois serem levados no navio Aurania até Bombaim. Daqui foram encaminhados sob custódia para um campo, até serem transportados ao campo de concentração de Shahjahanpur, nas planícies e várzeas do Rio Ganges. Era uma área de doenças, infestada de mosquitos, elevada temperatura e humidade, e chuvas torrenciais na monção. Ao fim de poucas semanas, Hendrik A. Sauerman não resistiu e faleceu.
No dia 31 de maio de 1902, os bóeres assinaram o Tratado de Paz que pôs fim à guerra, mas com milhares de exilados ainda espalhados pelo mundo a aguardar o regresso a uma terra que não sabiam em que estado se encontrava. Entretanto, Hendricks Adolf Smit, teve conhecimento de que a sua quinta tinha sido destruída, os animais mortos e o filho, cuja mãe morrera durante o parto, fora fuzilado, na presença de familiares. As mulheres e crianças foram transportadas para um campo de concentração em Harrismith. Hendricks A. Smit faleceu na Índia, no dia 30 de novembro 1902, de problemas de coração, sem nunca ter voltado à terra.
O filho Barend, com 16 anos, voltou da Índia e ajudou a família a reconstruir a quinta. O seu filho também chamado Barend, com 27 anos veio a casar e ser o pai de Laetitia Smit.

Em contraste com a miséria que muitas vezes prevaleceu nos transportes britânicos, as condições a bordo dos cargueiros portugueses eram relativamente melhores e aceitáveis.[2]
O tratamento que receberam da tripulação no transporte de e para Portugal, foi mais atencioso do que o dos britânicos, aliás como registou também o Prof. Malherbe, no seu manuscrito não editado.
Da forma como foram recebidos pelo povo português, aquando da chegada com gritos Viva os Bóeres e a emocionante maneira como se despediram, não deixou dúvidas sobre os sentimentos e simpatia que existiram entre os portugueses e concretamente dos habitantes dos locais de detenção.

 O London Times, de 21 de julho de 1902, reportou que no dia 19 de julho, após se reunirem em Lisboa, vindos dos vários pontos de acolhimento em Portugal, pelas 18h cerca de 900 bóeres embarcaram no Baviera, em direção à Cidade do Cabo.
Os internados em  Alcobaça, antes de regressarem a África fizeram como os demais nos outros locais, o juramento de fidelidade à Coroa, em 8 de Julho de 1902, perante Errai Mac-Donnell, o consul geral britânico em Moçambique que, por coincidência, se encontrava de férias em Portugal.
Em 18 de julho de 1902 Errai Mac-Donnell chegou a Alcobaça para acertar pormenores para a partida dos internados. Estes foram para a estação de Valado, onde às 22h:00 um comboio especial partiu para Lisboa. Muitos portugueses foram acaompanhá-los à estação, porque boas amizades foram feitas. Nos meios comerciais deixaram pesar, porque ajudaram a economia local.[3]
No dia 18 de julho de 1902, por sua vez os de Caldas da Rainha partiram para Lisboa. Apesar de ter sido a meio da noite, compareceram na estação muitos caldenses a saudá-los e despedirem-se.  As lágrimas saltaram dos olhos, tanto de uns como de outros, numa manifestação de salutar e sincera amizade.
O Baviera partiu de Lisboa a 19 de julho de 1902 e viajou pela costa oeste da África, com mar calmo e bom tempo. Os passageiros desfrutaram de jogos de convés e estavam expectantes e animados com a perspetiva de voltar para casa e retomarem a vida interrompida. Aportando à Cidade do Cabo no dia 4 de agosto, os homens foram enviados para a prisão de Tokai, enquanto as mulheres e crianças ficaram a aguardar no navio e chegaram a Port Elizabeth em 7 de agosto de 1902, sendo levadas por 20 dias para um campo, alojadas em cabanas de ferro, e com uma alta cerca de arame farpado.

A relação entre os bóeres e os portugueses fora muito cordial, sendo natural que amizades próximas fossem formadas.
Três bóeres alojados em Caldas da Rainha casaram-se com mulheres caldenses e um em Vestiaria/Alcobaça, com Amélia Coelho que acabou por ir viver para a África do Sul, como se referiu.
Um deles, comentou que a vida que nos foi determinada nas Caldas da Rainha foi agradável e os que ousaram reclamar, reclamaram sem ter razão.

Escrevia-se na imprensa de Alcobaça/Semana Alcobacense, que a situação era dramática.
A grande massa dos trabalhadores, não queria saber de políticos, de liberdades fictícias, outrossim reclamava paz, trabalho e pão. A redenção do País, haveria de se alicerçar na organização do trabalho pois, enquanto não se obtiver o equilíbrio entre a importação e exportação, os portugueses terão uma vida angustiada, a cada passo pautada por crises e pavores.
Os partidos monárquicos continuavam a desgastar-se em querelas e divisões, enquanto o Partido Republicano ia ganhando terreno, apesar de as eleições serem frequentemente viciadas, tendo em conta os votos comprados, a chapelada, a fraude recorrente. As eleições, não motivavam interesse popular. No Círculo Eleitoral de Leiria, particularmente no Concelho de Alcobaça, os eleitores não sabiam se existia acordo entre os grupos políticos concorrentes, muito menos isso era explicado pelos caciques. Sabia-se que existia paz, mais do que isso, uma completa e absoluta indiferença. Denunciavam os republicanos que dos candidatos que se propunham ao sufrágio, frequentemente nenhum era da terra, afinal desconhecidos, mas que, mesmo assim, eram eleitos com o apoio dos caciques.
Esta indiferença perante a política era sinal de decadência, explicavam os republicanos, fruto dos desenganos e que um dia iriam ser remediados. Esta quimera provou ser irrealizável.

O século XX português, tal como o anterior, ficou marcado por sucessivas vagas de emigração, sonho de muitos que não encontravam trabalho e que queriam fugir das condições adversas onde tinham nascido.
O primeiro local foi o Brasil, que exercia um enorme fascínio, com uma riqueza supostamente ao alcance de todos.
Seguiu-se a América do Norte (Estados Unidos e Canadá), considerada a terra das oportunidades, destino eleito nomeadamente por açorianos.
A África do Sul foi muito procurada por madeirenses.
Em 1978, Vitorino Magalhães Godinho considerou a emigração uma constante estrutural da demografia portuguesa, cujo volume terá atingido níveis sem precedentes entre meados do século XIX e a década de 1970.

António Miguel de Oliveira, segundo Jorge Araújo, procurou um novo rumo de vida fora da terra natal, como tem sido a sina de muitos portugueses que nascem marcados pela inevitabilidade da emigração, pois nascemos já preparados para a partida.
Dificuldades económicas, escassez de terra, estão na origem desta fatalidade que tem associada, frequentemente, a ideia de regresso. Partida e regresso fazem, normalmente, parte das narrativas ou pressupostos dos que vão.
Uma vez na diáspora, o regresso (ou o desejo de regressar) permanece. Ricos ou desiludidos pretendem voltar. O ideal do português emigrante é formar um pecúlio e vir depois gozá-lo na terra.
Muito frequentemente, o regresso acaba por não se concretizar, principalmente por razões familiares. A adaptação cultural que ela obriga, desencadeia processos complexos de adaptação.
As informações dos internados, como o caso do Prof. Malherbe, com os quais A. M. Miguel convivia, de quando em vez, na Tipografia Oliveira/Semana Alcobacense, apesar da diferença de idades, mostraram que existiam outras soluções, interessantes e que apresentavam diferentes modos de estar, enfim, uma outra visão do mundo.

O Partido Republicano não tinha delegação em Alcobaça, o que não impedia ação política por parte de membros ou dirigentes.
O Centro Democrático Republicano apenas seria constituído em 1907, pelo que até aí os republicanos reuniam-se informalmente, na farmácia ou em casa de Manuel V. Natividade, ou na tipografia Oliveira. A chegada dos Bóeres a Alcobaça foi como uma lufada de ar fresco, numa sociedade rural, mas sedenta de novidades, que olhou como um virar de página, uma oportunidade, de escapar a um status quo que parecia inevitável, como os seus descendentes reconhecem.
As necessidades materiais de António M. de Oliveira, não seriam tão graves como as da maioria dos Alcobacenses, pelo que a decisão de emigrar terá sido estimulada pela aventura, sem se saber, se quando partiu, tinha intenção de um dia regressar. A perceção sobre o anterior conforto económico dos bóeres, as potencialidades da região em que viviam, e a animosidade em relação a Inglaterra, terão feito o resto. O contacto com novas ideias já ocorria no estabelecimento da família Oliveira, Tipografia Oliveira e ali fervilhavam ideias veiculadas pelo Semana Alcobacense, jornal incómodo para o poder local, dado o ostensivo e acentuado pendor republicano.
Se o povo vivia mal, assim continuava a viver. Se era pouco ou nada letrado, embora fizesse reclamações, tinha que contar com políticos que em Alcobaça, Leiria ou Lisboa, faziam diagnósticos, mas não tinham ideias das monumentais tarefas que lhes competia atacar. Foram anos que levaram ao descrédito das instituições monárquicas, e mais grave que isso afetaram de certa forma a sanidade mental das pessoas.
Na opinião veiculada pelo Semana Alcobacense, as questões económicas assumiam enorme gravidade e predominavam sobre as questões políticas. Se é correto dizer que nem só de pão vive o homem, também o é que a liberdade pode alimentar os espíritos, mas não pode nutrir o corpo. A grande massa dos trabalhadores, não queria saber de políticos, de políticas, de liberdades fictícias, outrossim reclamava trabalho e pão.
A redenção do País, na ótica desta imprensa combativa, haveria de se alicerçar na organização do trabalho pois enquanto não se obtiver o equilíbrio entre a importação e exportação, os portugueses terão uma vida angustiada, a cada passo pautada por crises e pavores.
A consciência da debilidade da economia e da sociedade, foi provavelmente potenciada pelas opiniões desses estrangeiros, que comparavam as mulheres de Alcobaça a africanas por andarem descalças e transportarem cargas à cabeça, se admiravam pelo número de pessoas que vinham pedir o pão que sobrou do disponibilizado aos internados e militares do quartel, no que parecia reviver a distribuição da antiga micha, os transportes em burros ou mulas, o ritual das procissões ou o carnaval com os homens travestidos de mulher.[4]
Pode-se imaginar o interesse pelos Bóeres, reportando a riqueza agrícola da África do Sul, acentuada com a descoberta de importantes jazidas de ouro e diamantes, por oposição ao minifúndio de Alcobaça e as convicções mesquinhas, numa altura em que tudo se punha em causa.
Neste ambiente de desconforto, passou a ser relativamente frequente, pelo menos em meios, supostamente mais politizados, encarar a sociedade portuguesa como não tendo futuro, quer a nível coletivo, quer a nível individual. O epitáfio estava traçado e germinava a ideia de que os portugueses constituem uma sociedade em empobrecimento, sem perspetiva de empregar produtivamente os membros ativos, proporcionar pensões condignas, salvo mudando o regime.
Sim, essa mudança era a panaceia. A curiosidade de um jovem de um velho país, terá sido atraída pela liberdade da outra região, ainda que por definir. Uma solução diferente para problemas antigos que pareciam não ter fim, remata Jorge Araújo.

Portugal para defender as colónias, tinha por vezes de evocar a Aliança com a Inglaterra, para conter os seus interesses e de outros países, mas por outro lado simpatizava com os Bóeres que não representavam ameaça, e estavam a defender-se de uma mesma voracidade que nos poderia atingir.
A ambiguidade dessa política parecia subserviência, pelo que à Monarquia associava-se uma imagem fortemente debilitada, a ponto de precipitar o seu fim a muito curto prazo.[5]

António M. Oliveira, nascido numa família de pequena classe média, dedicada aos serviços e a uma atividade agrícola residual, pesou provavelmente que os riscos de ficar em Alcobaça, seriam maiores que os de partir.
Não se sabe se foi com o espírito de torna-viagem. Assim se admite a anuência constrangida dos pais com a saída do filho varão, ainda que admitindo que um dia poderia voltar.
Quando se pensa num emigrante com 18 anos de idade, há que ter em conta o processo de adaptação e integração. Pode-se imaginar como se terá sentido deslocado do ambiente natal, e sem a possibilidade de contribuir, como idealizava, para a sociedade nova sul-africana, ainda em forte crise e incerteza pós-guerra.
A primeira geração é, em regra, a que mais dificuldade sente no processo de integração. O drama dos emigrantes não passa só pela jornada que os conduz aos países de destino, mas também pelos desafios e adversidades que encontram quando procuram construir uma nova vida. Passou muitos anos sem o conforto da família e amigos que deixara em Alcobaça, mas que não esquecera de todo, tal como veio a acontecer ao neto Myles Rennie e família, que encontraram em Alcobaça, em outubro de 2018 os parentes que não conheciam, quase 60 anos depois da última visita de António. Este só veio a Portugal vencidas as dificuldades iniciais, e com a fortuna consolidada.
Outras razões terão contribuído, segundo o que Myles Rennie transmitiu a Jorge Araújo, para justificar a tardia visita.

Entre os bóeres de Alcobaça, encontrava-se Andries Francois Nel, de 18 anos de idade.
Como os demais, tinha livre passe para andar por Alcobaça, visitar lojas, frequentar tabernas ou mesmo namoriscar, pelo que em 1901 conheceu António Miguel de Oliveira, também com 18 anos e se tornaram amigos. António M. de Oliveira, era filho de Miguel Gonçalves de Oliveira, tido como proprietário da Tipografia e Papelaria Oliveira, a única do ramo em Alcobaça, empresa de natureza familiar, irmão de Maria Cristina e, portanto, futuro cunhado de Eurico Pereira de Araújo Rosa, avô de Jorge Araújo, que colaborava regularmente no jornal e era republicano assumido.[6]
Um dia, António M. de Oliveira transmitiu a Andries Nel, a vontade de o acompanhar no retorno para a África do Sul, assumir-se bóer.
Andries Nel, a partir daí, elaborou um plano de fuga, que consistia na passagem pela Holanda, onde embarcariam num navio alemão rumo a África, e se juntariam aos combatentes bóeres, com ou sem armas, contra os britânicos. Foram numa carruagem de cavalos até Torres Novas e aí embarcaram à noite num comboio, de modo a garantir, assim supunham, que estariam em Espanha de dia feito. Quando chegaram a Torres Novas, o comboio havia partido, pelo que se puseram a caminho, percorrendo a pé mais de 30 quilómetros. O sol já estava a nascer quando chegarem a outra estação, tendo aí aguardado toda a manhã por transporte, aliás como também regista Jorge Araújo, que se socorreu das mesmas fontes.
Andries Nel, temendo ser reconhecido como fugitivo, e em resultado poder ser capturado e devolvido à procedência, a S. Julião da Barra ou Peniche, aceitou a sugestão para que se fizesse passar por louco e nunca falasse.
No comboio, quando o revisor perguntou a António para onde estavam a ir, ele contou-lhe uma fantasiosa história sobre um especialista francês em doenças mentais que iria observar e tratar o Nel. O revisor aconselhou que cuidasse bem do rapaz, pois era bem capaz de se atirar para debaixo do comboio.
Em Espanha estavam seguros e livres e quando chegaram Valência, dirigiram-se ao Consulado do Transval (ainda não encerrado), que lhes deu dinheiro para adquirirem duas passagens de comboio em segunda classe com destino a Amsterdão onde teriam apoio, e ficaram até outubro de 1902.[7]
O Semana Alcobacense noticiou que fugiu esta semana de Alcobaça (18 de janeiro de 1902) mais um refugiado do Transval, levando em sua companhia um rapaz daqui.[8]Era filho da casa, o dono ou o filho do dono….
Mas há aqui uma questão por esclarecer, como aponta Araújo. No cabeçalho do jornal, aparece como proprietário António Miguel de Oliveira, o que parece não ter sentido, não se compreende, pois, o proprietário, localmente reconhecido, era Miguel Gonçalves de Oliveira, pai de António Miguel de Oliveira, este de 18 anos, e assim se manteve depois de este ter ido para África. António M. Oliveira, ao que se saiba, jamais se arrogou dono de jornal, como corria na família de Jorge Araújo.

Chegaram à África do Sul, quase cinco meses após a paz ter sido assinada, atracando na Cidade do Cabo. António embarcou num comboio para Vryburg tendo deixado Andries Nel, enquanto este tentava arranjar dinheiro para pagar uma passagem de comboio a um amigo do Cabo.
Com apenas meia coroa no bolso, António chegou à estação de Vryburg, meio perdido e desorientado, falando uma péssima mistura de português e afrikaans gestual. Depois de esperar dois dias por Andries, decidiu procurar um lugar para ficar na cidade, embora apenas tivesse seis penys no bolso. Nel chegou e imediatamente partiram para a fazenda dos pais deste, tendo António ficado muito satisfeito ao saber que o irmão de Nel, Christiaan Stephanus Nel se havia casado na Vestiaria, com uma rapariga que aí conheceu em Alcobaça, a Amélia Faria Coelho.
A fazenda não era grande para dar trabalho a todos e António foi forçado a encontrar trabalho em Vryburg. Depois de um mês, veio a ser demitido por não saber falar a língua já que, alegadamente assim, não tinha real utilidade…
Tempos depois, Oliveira encontrou um rapaz com quem privara em Alcobaça, um tal Knoetze, e lhe ofereceu emprego a 4 cent. por dia, o estritamente necessário para custear alojamento e alimentação. A vida não era fácil pelo que só começou a economizar quando passou a ganhar diariamente 5 cent.
Cerca de um ano depois, foi para Tiger Kloof, onde trabalhou na construção civil para a London Mission Society até 1907, altura em que houve uma forte recessão no setor. Perante uma economia em recessão e sofrendo os efeitos de uma guerra brutal, embarcou para a Austrália, mas tendo-se, entretanto, enamorado de uma jovem de Vryburg, não perdeu tempo em regressar no primeiro navio, tanto mais que a London Mission Society o voltara a contratar.
António, industrial da construção, mudou o nome para Antonie Migiel Olivier e casou-se em Vryburg com a bóer Elizabeth Johanna Higgs, em 7 de maio de 1912, com quem teve 5 filhos. A foto de um prato de louça, refere-se a um aniversário de casamento de A. M. Oliveira com Elizabeth, oferecido pelos filhos do casal sendo conservado por Milles Rennie.
António M. Oliveira encontrou-se muitas vezes com Andries Nel até à morte deste em 7 de setembro de 1915, numa escaramuça com britânicos.[9]

António Miguel ao casar-se com Elizabeth, converteu-se à Igreja Reformada Holandesa? Não foi possível apurar se isso ocorreu mesmo ou se é apenas uma simples maneira de dizer.
Em Alcobaça fora batizado e nunca manifestara preocupações místicas, integrado numa família republicana, de tradicional pendor anticlerical, se não mesmo antirreligioso. Não consta na memória da família que constituiu em África, que tenha sido rebatizado protestante calvinista, embora se saiba que, ao longo do tempo, passou a acompanhar certas práticas correntes, por força de convenções a que não se podia furtar.
Tanya Maree, informou que António adotou a Igreja Reformada Holandesa, depois do casamento, frequentando ocasionalmente os ofícios ao domingo de manhã.[10]
Em termos religiosos, não terá sido praticante convicto ou assíduo, aceitando o protestantismo/calvinista por mera força das convenções e relações sociais. Não é crível que ainda que não sendo um católico muito praticante ou convicto, tivesse vindo a assumir nova religião.
Quando começou a namorar com Elizabeth e decidiram casar, o assunto da religião terá sido suscitado muito provavelmente. António não tinha de se converter ao protestantismo calvinista, mas teria de apresentar disponibilidade para acompanhar a noiva na sociedade em que estavam inseridos. Não era um ultimato, mas sim uma certeza pois, se não existisse abertura, a relação a dois seria muito difícil, o que não foi, tal como o percurso de vida de mais de 39 anos que estava a iniciar.
O pai de António era um ativo republicano, que se expressava inequívoca e truculentamente no Semana Alcobacense. O futuro cunhado Eurico Araújo, também o era, embora utilizando linguagem mais elaborada.[11]
Myles Rennie, que em menino frequentou aulas de português, informou a Jorge Araújo que o avô, falava pouco do seu passado em Alcobaça, talvez por este não ter sido muito impressivo (saiu com 18 anos), assumia-se como homem de negócios astuto e honesto, bem relacionado e afável, pagando imediatamente pelos tijolos e não apenas no momento da entrega, vestido no seu terno e usando chapéu, e que chegava à empresa num Buick preto de 8 cilindros.
A imagem pessoal de António Oliveira foi, em suma, e segundo o neto, de um europeu cuidado, bem vestido, fazendo-se transportar em bons veículos, reservando para si a supervisão nos negócios, deixando para os colaboradores, os pormenores e os trabalhos menores. O negócio ocupava-lhe o tempo, ainda que com prejuízo de contactos com amigos ou familiares.[12]
De acordo com Mylles Rennie, que se orgulha da sua origem portuguesa, se considera português, embora hoje em dia perceba mal a língua, António não dedicava muto tempo aos netos que eram avisados que era um homem ocupado e não devia nem gostava de ser interrompido.
António não recebia em regra cartas da família e Tanya esclareceu que, todavia, recebia regularmente um jornal, talvez de Alcobaça. Se manteve hábitos portugueses (ou quais), não pode asseverar, mas pelo que a família recorda, ele e esposa viveram da forma mais ou menos corrente entre os Bóeres. A esposa era bóer, vestia, cozinhava pratos típicos e falava o africâner, embora o dele fosse deficiente. Não tinha facilidade com línguas, como recorda a família.
Eram cristãos e assumiam a Igreja Reformada Holandesa, acompanhando o Natal, a Páscoa e outros momentos religiosos com os respetivos usos e costumes locais. Antes de se reformar em 1956 em Kimberley, entretanto casado pela terceira vez, constituiu uma sociedade com os filhos, A. M. Olivier & Sons. A primeira esposa Elizabeth tinha morrido após 32 anos de casamento, e a segunda decorridos 16 meses.

Em 13 de junho de 1950, António M. de Oliveira veio a Portugal pela primeira vez em 49 anos, passar o seu aniversário acompanhado pela terceira esposa e dois filhos, tendo voltado em 1955 e 1960 para visitar a Europa e passar algum tempo em Amsterdão, onde tinha alguns contactos. Aquando da visita em 1950 foi-lhe oferecido em Alcobaça um prato em faiança por Manuel Sousa Gama, Elias Matos Branco, José Pereira de Campos, entre outros que nele quiseram deixar gravado os nomes. O prato é conservado por Myles Rennie.
Segundo aquele, a ausência por tantos anos do avô não terá sido devida à falta de vontade ou recursos, mas porque as viagens de barco demoravam muitos dias, em 1908 ter iniciado a atividade empresarial na construção civil, em 1912 ter casado, entretanto terem ocorrido duas guerras mundiais, com a Grande Depressão pelo meio.
António M. de Oliveira tornou-se bóer, pelo menos exteriormente, assumindo o africânder/afrikaans como língua corrente, embora com dificuldade.
António Oliveira faleceu em 22 de julho de 1966 em Kimberley. Os bens que possuía em Alcobaça, duas pequenas propriedades rurais, deixou-as à irmã Maria Cristina, avó paterna de Jorge Araújo. [13]




ÍNDICE



-NOTAS INTRODUTÓRIAS
-António Miguel de Oliveira/Jorge Gonçalves Araújo-Ockert Jacobus Olivier Ferreira-Darius de Klerk-Laetitia Smit-Silvestre Campos-Imprensa Local.
-OS BÓERES
-Bóeres-Guerra-Gandhy-Deneys Reitz-Fransjohan Pretorius
-OS BÓERES EM PORTUGAL      
PORTUGAL 1900
-A generosidade portuguesa-Bóeres na Humpata/Angola.
CALDAS DA RAINHA
-A vila/cidade-Depositados em Caldas da Rainha-Círculo das Caldas, Gazeta das Caldas e Caldas da Rainha 1887-1927: expansão e modernidade/Terra de Águas-Rafael Bordalo Pinheiro-A misteriosa morte do Paiva-Os alemães também estiveram depositados-Andando pela vila-Namoros, nascimentos e óbitos-Educação, religião e alimentação-Touradas e râguebi-O mau vinho e os castigos-O pesar da partida
ALCOBAÇA
-Manuel Vieira Natividade-Maria Rattazi visita Alcobaça-Pedro e Inês e os túmulos-A viragem do século-D. Miguel II em visita semiclandestina a Portugal e Alcobaça, a Questão Calmon e João Franco-Perspetiva demográfica e económica-A emigração-Andando, com liberdade, pela vila-A educação-O tédio, o lazer, tarefas quotidianas, uma religião puritana, a doença e os óbitos-Casamentos-Festas populares-A alimentação-Um adeus, com pesar e agradecimentos sinceros e merecidos-O Culto e elegante Prof. J.P.Malherbe-Miguel Unamuno em Alcobaça.
TOMAR-As Bandas de Música-Ouro no Poço Redondo-Publicidade fantasiosa-O Gen. Piennar.
PENICHE
-A vila e o Forte-Tinham medo de água fria-Fugas bem e malsucedidas
ABRANTES
-O Convento da Esperança e condições de depósito-A alimentação-O Hospital.
S. JULIÃO da BARRA
-O Forte de S. Julião-Um Comandante que não tinha poder-Os Bóeres, perigosos agitadores, mostraram a soldados portugueses como usar bem uma espingarda.
-UM ALCOBACENSE QUE VIROU BÓER
-Exilados em Portugal e noutros locais-Bisavô de Laetitia Smit-Regresso a África-António Miguel Oliveira virou bóer?



142-Smit, Laetitia.

[2]-Ferreira, O. J..
De Klerk, Darius.

[3]-Semana Alcobacense

[4]-Ferreira, O. J..
Fleming de Oliveira, in No Tempo de Reis, Republicanos  & Outros.

[5]-Fleming de Oliveira, in No Tempo de Reis, Republicanos & Outros.
Micha, era um pão redondo e grosseiro, feito com farinha de 3ª categoria, dado aos pobres à porta do Mosteiro.


[6]-Jorge Araújo, entende que a Tipografia Oliveira era explorada de forma familiar.

[7]-António M. Oliveira quando saiu de Alcobaça levava no bolso, para si e companheiro, apenas 16 libras, como por vezes gostava de recordar. Informação de Myles Rennie.

[8]-Semana Alcobacense.


[9]-Esta descrição corresponde fundamentalmente à entrevista de António Miguel Oliveira ao jornal Die Lewe, de novembro de 1956, facultada por Myles Rennie a Jorge Araújo.

[10]-Tanya Mari Maree é casada com Shawn Evan Rennie, bisneto de António Oliveira e ao dizer que este adotou o calvinismo terá de ser entendida em termos hábeis. As suas informações decorrem do que o sogro Myles Rennie lhe tem contado e da tradição familiar. Segundo Tanya, em casa de António, conforme a tradição bóer, por causa de sua mulher, confecionavam-se, entre outros, os seguintes pratos regionais:
Biltong, semelhante a uma carne seca salgada, podendo ser de diferentes tipos de antílope.
Boerewors (salsicha grelhada).
Frikkadelle (almôndegas).
Gesmoorde vis, bacalhau salgado ou snoek com batatas e tomate, por vezes servido com doce de damasco ou moskonfyt (mosto de uva).
Hertzoggie, um tartlet com recheio de damasco e cobertura de merengue de coco desidratado.
Hoenderpastei, torta de frango, à maneira afrikaans.
Kaiings, uma especialidade gourmet bóer, muitas vezes servida como uma cobertura sobre pap. Kaiings é feito de pequenos cubos de carne de porco numa panela de ferro fundido, em fogo lento, e são os restos de carne de porco que restam depois de se extrair a gordura. A pele não é muito crocante, e um pequeno pedaço de carne é normalmente deixado na pele e gordura.
Koeksisters serve-se de duas formas e é uma iguaria doce. Afrikaans koeksisters são tortas fritas e muito adoçadas. Koeksisters no Cape Flats são doces e picantes, em forma de ovos grandes e fritos.
Pudim de malva, um doce de damasco de origem holandesa.
António M. Oliveira, não prescindia de beber vinho às refeições, sem prejuízo de, fora delas, consumir whisky ou cerveja.
Veja-se foto de António M. Oliveira e família.

[11]-Eurico Pereira de Araújo nasceu em Alcobaça, a 23 de outubro de 1880. Ainda estudante, começou a destacar-se através da participação em círculos político-republicanos de Alcobaça, bem como pela escrita em o Semana Alcobacense, onde redigia editoriais e artigos. Em 1914, foi eleito Presidente da Comissão Executiva da Câmara de Alcobaça, cargo que ocupou até 1917. Cessado o mandato continuou ligado ao Município como Chefe da Secretaria entre13 de junho de 1922 e 27 de agosto de 1948. Também integrou o Senado Municipal. Eurico Araújo, foi agraciado a 28 de junho de 1919, como Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, tendo sido o Presidente da República António José de Almeida, quem em Alcobaça lhe impôs a condecoração. Jorge Araújo tentou apurar, sem sucesso até hoje, os fundamentos concretos desta alta distinção, pois o respetivo processo ter-se-á perdido na Presidência da República.


[12]-Myles Rennie, antes de em 2018 ter vindo a Alcobaça, sabia vagamente da existência da avó de Jorge Araújo. Myles Rennie, é português, portador de C.C. e passaporte portugueses, aguardando o reconhecimento da nacionalidade portuguesa originária.
Veja-se foto de A. M. Oliveira aqui junta.

[13]-Entendia que pronunciá-lo em português era difícil, mas manteve o nome em termos oficiais.
Jorge Araújo, nasceu em Alcobaça a 11.6.1954, tendo aí exercido medicina até se reformar do S.N.S. Reparte o tempo entre Alcobaça e Lisboa e exerce medicina em estabelecimentos de saúde particulares. É um apaixonado pela terra natal, cuja História estuda e conhece, bem como colecionador de cerâmica. Publicou na revista Anais Leirienses/março 2019, um apontamento sobre o seu parente António Miguel Oliveira.

NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.

NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL
CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.
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-FORTE DE S. JULIÃO DA BARRA-
 

            
  Construído em local que domina a entrada da Barra de Lisboa, S. Julião foi uma importante construção militar. Vejam-se fotos aqui juntas.
Embora não seja possível precisar a época em que se iniciaram as obras, as opiniões dividem-se entre 1553 e 1556, sendo a traça atribuída a Miguel de Arruda. Na construção estiveram envolvidos os mais conhecidos militares e engenheiros ao serviço País, como Leonardo Turriano ou o Capitão Fratino.
Partindo de um núcleo de reduzidas dimensões, a fortificação foi-se modificando, ampliada e adaptada a novas exigências.
Como outras fortificações, S. Julião da Barra serviu de prisão militar e política.
  
Os internados no Forte de S. Julião da Barra, não deixaram marcas da passagem como em Alcobaça ou Caldas da Rainha, mas reconhecidos pela forma como foram assistidos, fizeram um agradecimento, que divulgaram pela imprensa:
Às senhoras e cavalheiros desta fortaleza, assim como os de Lisboa e seus arredores, nós, Bóeres aqui refugiados, tomamos a liberdade de expressar os nossos sentimentos de gratidão - embora não nós conheçamos - pela simpatia que nos tem manifestado, não só em palavras, mas também em ações, o que é, para quem vive como nós, com o coração cheio de penas, uma grande ajuda e um grande lenitivo. No antepenúltimo domingo, tivemos o prazer de receber 9 cavalheiros ingleses, com quem passamos uma hora que nos pareceu um quarto de hora apenas, de tal modo a nossa mútua conversação foi aprazível. Na terça-feira seguinte fizeram-nos a surpresa de nos mandar livros ingleses, jornais e tabaco. Ontem, vieram novamente cavalheiros da mesma nacionalidade, que depois de algum tempo de conversa nos ofereceram também tabaco, e nos prometeram mais livros para hoje.
Aqui deixamos, pois, todos unidos, os nossos votos de reconhecimento por tanta bondade.
Tremn e 11 companheiros .[1]
Este reconhecimento é interessante, tendo em conta a animosidade que, em geral, os bóeres revelavam face aos Britânicos que os derrotaram e exilaram.

Após a chegada a Lisboa, nove adultos e o totalmente inocente J. E. Smit, de 14 anos,[2]foram conduzidos de pronto por soldados portugueses ao Forte de S. Julião. Estes refugiados não vieram conjuntamente com os demais, mas num outro vapor. O Governo Português, por indicação dos britânicos, havia-os considerado perigosos agitadores em Moçambique, onde tinham estado presos, pelo que não devem ser internados conjuntamente com os outros. Chegou mesmo a correr em Lourenço Marques uma petição com 250 assinaturas, para estes não serem enviados para Portugal.
Durante 3 dias ficaram em isolamento na Torre do Forte, e depois só lhes foi permitido vaguear no interior, tendo como limite as 20h.
Em Oeiras, o verão é morno, seco e de céu quase sem nuvens, o inverno é ameno, com precipitação e de céu parcialmente encoberto. Durante o ano inteiro, o tempo é de ventos fortes. Ao longo do ano, em geral a temperatura varia de 10 °C a 27 °C e raramente é inferior a 6 °C ou superior a 33 °C.
Segundo W. J. Geerling, os dez internados no Forte de São Julião da Barra não foram tratados, propriamente, como presos malfeitores e até receberam uma mesada mensal pelo que não estavam totalmente insatisfeitos com o tratamento. É certo que a sua condição, nomeadamente por força da limitação de movimentos, era pior que os demais internados noutros locais, e por isso suspiravam atrás das altas muralhas do Forte o rápido regresso à Pátria.
Ferreira regista que o comandante do Forte (Cor. Artª. Gonçalves Brandão), pessoa de grande humanidade, mas sem poder, descobriu rapidamente que os detidos eram pessoas amigáveis, confiáveis ​​e não perigosos criminosos no verdadeiro sentido da palavra. Enquanto isso, ganharam a sua confiança e até foi permitido que visitassem Oeiras e Caxias.
Gonçalves Brandão facultou a dois internados espingardas e cartuchos para mostrarem e ensinarem aos seus soldados como uma arma de fogo é manipulada de forma eficaz. Os experientes bóeres não dececionaram o comandante.[3]

P. Mareck, que foi castigado e transferido de Peniche, alegava encontrar-se no Forte de S. Julião sem acusação, mas na verdade ele e outro estiveram envolvidos numa briga violenta, quando numa noite se encontravam embriagados nos Pavilhões do Parque, em Caldas da Rainha.
Não é possível apurar o número de detidos que por um período mais curto ou mais longo, passaram pelo Forte de S. Julião da Barra.
Quando o Pastor Stofberg fez aí uma visita pastoral, referiu no relatório ter encontrado entre os 13 indivíduos, alguns rufias e que a condição dos detidos não é agradável pelo que suspiram atrás das grandes paredes do Forte, resumindo, deste modo, a situação e o seu estado de espírito.
Conforme lista dos Arquivos do Transval, havia no Forte de S. Julião, em 7 de abril de 1902, 24 detidos. Esta discrepância numérica é admissível, visto que os números variavam em função dos presos, antes e depois libertados.
Quando membros da Comissão de Deportados visitaram a prisão, em 30 de junho de 1901, sugeriram que estes fizessem uma petição ao Ministro da Guerra solicitando a transferência para outro local. Gonçalves Brandão apoiou a ideia, mas veio a recusar o seu encaminhamento, porque alegadamente a fórmula e o texto eram muito incorretos.
No início de 1902, o Ministro da Guerra considerou a possibilidade de os transferir para Elvas, mas isso nunca se concretizou. Os detidos eram da opinião de que não era culpa das autoridades portuguesas que eles tivessem ido para esta prisão, outrossim do Gen. Pienaar e Cmd. Mostert.
Este último rejeitou responsabilidades e alegou não saber exatamente por que foram presos.
Os presos enviaram uma missiva à secretária do Christian National Farmers Committee/Holanda sob o título Desprotegidos, que veio a ser publicada no Handelsblad, de 1 de fevereiro de 1902, em que se descreviam as condições de internamento. A missiva incomodou, porque o título gerou a impressão de que nada estava a ser feito em proveito dos Bóeres. Em breve um outro jornal holandês, noticiou que se encontravam em gaiolas de ferro e foram transportados de Moçambique acorrentados para Portugal.
Os detidos escreveram ao Gen. P. Pienaar para apresentar o seu caso ao Ministro da Guerra. Piennar pediu-lhes para redigirem uma petição a este, mas eles não o fizeram pois, entretanto, foram de opinião de que as autoridades portuguesas não ouviam mais Pienaar, que não tinham em conta. Os presos ainda disseram a Pienaar que havia provas sobejas de que ele fora responsável pelo seu encarceramento ainda em Moçambique, pela má fama que lhes foi injustamente imputada e que os portugueses também o reconheceram.
Geral. Pienaar respondeu que as autoridades portuguesas o informaram que os presos do Forte de São Julião da Barra eram tratados como os demais e que ele não precisava se preocupar com a situação.
À imputação que era responsável por seu encarceramento, respondeu que era tão irrisória, que não se sentiu chamado a responder, mas que se fosse responsável por isso, teria boas razões…
A falta de confiabilidade levou que os presos decidissem terminar relações com ele. Até aqui Pienaar teve um comportamento eventualmente equívoco.

O Forte, dispunha de cozinha que preparava as refeições tendo em conta o paladar dos internados, mas que não raras vezes motivou reclamações.
Os doentes eram enviados para o Hospital Militar, e no que diz respeito a comida e bebida, tiveram uma excelente vida e muita liberdade, pelo que alguns tentaram ficar lá mais tempo que o necessário ou como pretexto para ensaiar uma fuga. O exemplo de Spadoni ao fugir durante o tratamento foi seguido por outros dois depositados.[4]

No Forte de São Julião da Barra morreram dois internados, que vieram a ser sepultados no cemitério de Oeiras em vala comum, pois não podiam ser inumados na parte reservada aos católicos, sendo um John Andrew Odman, sueco de 47 anos, que cometeu suicídio às 4h00 de 16 de junho de 1902. O outro faleceu devido a doença que rapidamente o vitimou.
Em 3 de novembro de 1901, um internado intentou escapar da fortaleza utilizando uma corda velha para um salto de 12 metros, que a correr mal poderia ser-lhe fatal. Logo que chegou ao exterior foi capturado sem oferecer resistência. Os companheiros aproveitaram para organizaram uma manifestação para se oporem ao facto de terem menos liberdade que os demais noutros lugares de depósito em Portugal. Outras tentativas ocorreram, embora sem resultado, não obstante haver falta de guardas.
De acordo com o Pastor Stofberg não havia grupo que desejasse mais a liberdade, quisesse regressar à África do Sul e prosseguir o combate contra os usurpadores, do que os homens de Oeiras. Um combatente pela liberdade, quando entra numa prisão, a primeira coisa a pensar deve ser: como ou quando é que eu vou sair daqui?

Durante um jantar em Caldas da Rainha, no final de março de 1902, foi anunciado que as negociações de paz decorriam em bom andamento.
Em 2 de junho de 1902, a notícia da paz, chegou a Caldas da Rainha e aos demais locais de detenção e foi recebida com emoção contida. Como a maioria aspirava o regresso à Terra, mais que tudo no caso de Oeiras, aguardaram o repatriamento com sentimentos que combinavam a saudade ansiosa e o receio de represálias britânicas. Havia felicidade porque a miséria, o derramamento de sangue e o exílio acabaram, mas também tristeza porque retornariam a um país que não era mais independente. Contudo as autoridades portuguesas não deixaram os refugiados entregues à sua sorte e de acordo com as disposições da Convenção de Haia, auxiliaram-nos psicológica e materialmente, dentro do possível.
Para regressarem com proteção, tinham de prestar prévio juramento à Coroa, o que os incomodava muito e desejavam recusar, se pudessem. Os que não estivessem dispostos a fazê-lo, seriam entregues ao seu destino em Portugal e a expensas próprias, e se quisessem regressar não poderiam reivindicar a cidadania britânica.
O Gen. Louis Botha enviou Gen. Pienaar o telegrama: A paz assinada. Informe os refugiados que eu os aconselho a aceitar os termos que foram acordados. Assim que for feito isso, podem regressar ao Transval.
A maioria dos internados desejava recusar o juramento de fidelidade, mas em Portugal assim não podiam ficar, pelo que foram obrigados a prestar um juramento amargo a Errol Mac-Donnell.[5]
Houve problemas com bóeres holandeses, que não puderam retornar à África do Sul e tiveram de comparecer perante o cônsul geral holandês em Lisboa. Os problemas surgiram porque, de acordo com a lei holandesa, já haviam perdido a nacionalidade pela Bóer.
Os detidos no Forte de São Julião da Barra, feitas as contas, ficaram muito reconfortados quando foram repatriados com os demais a bordo do Bavarian/Baviera. Os bóeres de Peniche, foram transportados para Lisboa em dois vapores.



[1]-Biblioteca Municipal de Cascais.

[2]-Ferreira, O. J.
O rapaz veio a ser transferido para Caldas da Rainha em 17 de setembro de 1901, de modo a poder frequentar a escola.

[3]-Ferreira, O. J. Em mais nenhum local, os bóeres tiveram acesso a armas de fogo por parte de autoridades portuguesas.

[4] -Ferreira, O. J..

[5]-Ferreira, O. J..