segunda-feira, 26 de abril de 2021

MIGUEL TORGA (I) A Guerra Civil de Espanha e Alcobaça - Fleming de Oliveira

 

MIGUEL TORGA

(I)

A Guerra Civil de Espanha e Alcobaça


1)-A Guerra Civil em Espanha foi acompanhada com atenção e preocupação em Alcobaça, onde havia apoiantes de um lado e do outro da barricada.

Em agosto de 1936, os Sindicatos Nacionais de Operários Portugueses, controlados pelo governo, realizaram em Lisboa um grande comício anti bolchevista que foi difundido em direto pela Emissora Nacional. A Câmara Municipal de Alcobaça, por iniciativa do presidente o indefetível nacionalista Manuel da Silva Carolino, providenciou para que um altifalante fosse colocado numa janela do edifício, a fim de transmitir os discursos. O alegado objetivo deste comício e sua difusão, consistia em “desmontar a informação canalizada pelos colossos da propaganda internacional que têm provocado uma justificada repulsa”.

A 29 de Novembro seguinte, uma comissão composta pelo Presidente da Câmara, Dr. Joaquim Nascimento e Sousa, Dr. José Nascimento e Sousa, Dr. Rodolfo Bacelar Begonha, Prof. Bernardo Correia de Almeida e Alberto dos Santos Carvalho, organizaram uma manifestação anticomunista que, segundo o “Ecos do Alcoa”, juntou muita gente, num “consolador repúdio pelas doutrinas marxistas, apoio aos nacionalistas espanhóis, numa lição de civismo que a nossa terra deu a todo o País e dum modo especial a todas as terras do nosso lindo distrito”.

A imprensa de Alcobaça, o único semanário que em maio de 1937 se publicava, o referido “Ecos do Alcoa”, destacava a “grande ofensiva lançada pelas pseudodemocracias europeias contra as forças de Franco que mercê, da sua indómita bravura, alcançaram retumbantes vitórias na região da Biscaia, ocupando alguns dos seus principais centros mineiros. O motivo aparente de tão injustificado clamor é a anunciada destruição da cidade de Guernica, pátria das liberdades…bascas, mas muito especialmente a de uma simbólica àrvore, a cuja sombra se reuniam os legisladores do Euzkadi. Esse o motivo aparente que já não ilude ninguém, pois à nossa consciência repugna acreditar que os homens vocifrem imprecações contra a destruição de uma árvore, por muito respeitável que ela seja e não tenham feito ouvir os seus mais clamorosos protestos perante o furor encandescido que revelaram os espantosos bombardeamentos do Alcazar de Toledo, sagrada relíquia que, além do seu alto valor material, encerrava épocas inteiras da maravilhosa História de Espanha, do Convento de Guadalupe, da Catedral de Córdoba, de dezenas de monumentos de maravilha e, muito recentemente do Santuário de Santa Maria de La Cabeza onde se encontravam cerca de 800 mulheres e crianças que a falsa caridade dos demo-bolchevistas internacionais deixou durante perto de dez infindáveis meses, à mercê das granadas e bombas de aviação que há mais de um mês, atingiam a espantosa cifra de três mil e quinhentas (…). Fora Tartufos…”

2)-Miguel Torga, um dos mais representativos escritores contemporâneos portugueses, foi uma voz de peso, que se ergueu em Portugal contra alguns episódios da Guerra Civil de Espanha. Em 1975, pouco antes da morte de Francisco Franco, voltou a verberar o fuzilamento de dois “etarras”, no que foi um dos últimos actos sanguinários do regime.


Atravessou, a Espanha em plena guerra civil, dando conta das impressões que lhe causou o conflito em livros como A Exposição de Paris de 1937.

Participou na campanha de Humberto Delgado, em 1958, não obstante ser avesso à militância política e não apreciar os políticos como tal, por nunca os considerar como figuras intocáveis, como por vezes “se gostam de autorrever”. Talvez, assim, se compreenda esta passagem no Diário VIII, “estes trinta anos de poder pessoal acostumaram-nos de tal maneira à canga que só através de outro poder individual sonhamos, quando sonhamos, a libertação”. Sempre se mostrou pronto para tomar posição contra medidas que privavam os portugueses de liberdades cívico-políticas, sendo que a “liberdade é uma penosa conquista da solidão”.

Quando Caetano sucedeu a Salazar, escreveu no Diário XI: “A rádio acaba de transmitir a notícia de que Salazar, em coma foi exonerado e substituído na Presidência do Conselho. Na história do Mundo nada aconteceu, mas na de Portugal acabou o reinado, uma época-trágica como se há-de ver- uma maneira específica de governar, qualquer que seja a vontade do sucessor. As circunstâncias, uma inteligência impassível, um certo sentimento de grandeza pessoal, o conhecimento satânico do preço dos homens, a obstinação, o oportunismo, a ousadia, a crueldade e o desprezo podem num dado momento fazer do mais apagado individuo um chefe providencial. Mas quando o ídolo ou o déspota, obrigado pela força ou pela erosão do tempo, é removido do pedestal, leva anos, às vezes séculos, a surgir outro.

E em julho de 1970, no mesmo Diário, registou que “morreu Salazar. Mas tarde demais para ele e para nós, os que o combatíamos”. Conheceu e foi amigo de alguns políticos. O Presidente Ramalho Eanes foi, mais que uma vez, visitá-lo a S. Martinho de Anta, e quando Samora Machel se deslocou a Portugal, foi Torga o cicerone na visita ao Douro.

(continua) 

 

MIGUEL TORGA

(II)

A DEMOCRACIA E OS PARTIDOS

FLeming de OLiveira

 

1)- Foi proposto, em 1960 com Aquilino Ribeiro, ao Prémio Nobel da Literatura, sendo a sua candidatura subscrita pelo reputado professor da Universidade de Montpellier, Jean-Baptiste Aquarone.

Recusou, em 1969, o Grande Prémio Nacional de Literatura, por ser atribuído pelo Regime e subscreveu o Manifesto dos Escritores ao País, pela restituição da liberdade, contra a máquina repressiva e as prisões políticas. Mas aceitou receber nesse ano o Prémio Literário Diário de Notícias, entregue pelo Diretor Dr. Augusto de Castro. Um PIDE informou em julho de 1947 que Adolfo Correia Rocha, “conhecido literariamente por Miguel Torga” (a própria mulher também o tratava por Miguel…), era “anti situacionista, de ideias avançadas, mas moralmente nada consta”. Torga quis “ser de todos, em vez de camarada de poucos”, na sua poesia de resistente e cântico à liberdade.



2)-O Pompeu dos Frangos, na Malaposta, foi local de muitos jantares, encontros – por exemplo com Jorge Amado – e tertúlias.

Aquando do seu aniversário reuniu em 1993, entre outros, Mário Soares, a quem deu a direita à mesa. Ouvi contar que o bolo comemorativo representava o seu livro “Nihil Sibit”, reproduzia alguns versos e o encontro foi tanto mais emocionante, quanto Torga sabia que o seu fim estava próximo.

Já bastante doente, sofria de cancro, foi “outra vez hospitalizado. Pode-se enganar a vida. A morte é que não”. Em Dezembro de 1993, escreveu que “Aproxima-se o fim//E tenho pena de acabar assim//Em vez a natureza consumada//Ruína humana, //Inválido do corpo,//E tolhido da alma//Morto em todos os órgãos e sentidos (…)”.

2)-O 25 de Abril não lhe granjeou, de início, grande entusiasmo. Escreveu no Diário XII, “Golpe militar: Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada”.

Sobre o processo de descolonização, pronunciou-se em julho de 1974, no sentido que “vamos finalmente dar independência aos povos colonizados. Uma independência que sem dúvida lhes irá custar caro, mas não há nenhuma que seja barata”. Ainda sobre este tema, um dos pontos de divergência com o PS, escreveu que “fomos descobrir o mundo em caravelas e regressamos dele em traineiras. A fanfarronice de uns, a incapacidade de outros e a irresponsabilidade de todos deu este resultado: o fim sem a grandeza de uma grande aventura. Metade de Portugal a ser o remorso da outra metade”.

No Verão Quente, publicou no jornal A Luta (pró PS), o poema Lamento, “ah, meu povo traído//Mansa colmeia//A quem ninguém colhe o mel (…) e num outro, Liberdade, Liberdade, que estais em mim//Santificado seja o vosso nome (…)”.

Nunca se inscreveu em nenhum partido, pois “o meu partido é o Mapa de Portugal”.


Torga assumindo a responsabilidade cívica, para que “uma ditadura não desse lugar a outra ditadura”, participou em comícios socialistas e presidiu em Coimbra ao primeiro celebrado por este partido, em 1 de junho de 1974, graças ao empenho de Manuel Alegre.

A propósito das eleições para a Assembleia Constituinte, escreveu no Diário XII, “eleições sérias, finalmente. E foi nestes cinquenta anos de exílio na Pátria, a maior consolação cívica que tive”. Nesta campanha eleitoral, discursou num comício do PS em Coimbra.

Os responsáveis do PS, manifestaram em geral grande apreço e respeito por Miguel Torga, que nunca nele se filiou, “sem nome possível numa ficha partidária”, embora se identificasse com os seus grandes princípios ideológicos e programáticos. A sua conceção de socialismo, radicava na “sabedoria ancestral do comunitarismo agrário e pastoril”. Combateu, pela a escrita e palavra, os que antepunham a construção do socialismo à edificação da democracia, pelo que em 6 de março de 1975, note-se antes do golpe pró-comunista de 11 de março, registou no jornal A Capital, que “é necessário interromper, sem demora, esta corrida leviana que nos leva à perdição”.

Em novembro de 1985, escreveu no seu Diário IV que “há uma coisa que nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança”. A grande divergência com o PS, terá estado relacionada com a adesão de Portugal à CEE pelo que, Soares chegou a deslocar-se a Coimbra para lhe refrear o euroceticismo. Inútil, já que Torga repudiou a militância europeia, como fizera com as outras, inclusive a Socialista/PS.

Disse, numa entrevista ao jornal francês “Liberation”, na edição de 11 de fevereiro de 1988, que “quis sempre manter-me um homem independente. Sentimentalmente, sou socialista, mas, no fundo, permaneço um anarquista. Um rebelde”.

3)-A poesia foi e será sempre universal. Transversal, atravessou de forma imparável todos os tempos e sociedades, as ideologias e as correntes de opinião, como se fosse a voz dos deuses. Ela foi o suporte dos grandes anseios e dúvidas da Humanidade. Nenhum Hino capaz de mobilizar as energias de um Povo, utilizou tão bem outra arma para o exaltar na alma coletiva. A poesia tem a vitalidade das situações eternas, acompanhou os homens nos momentos de desalento, na solidão das trincheiras, das grades de uma prisão, na subversão e claro… no amor. Torga SEMPRE!

 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Almada Negreiros, Morra o Dantas, morra! Pim! Zip, Zip - Fleming de Oliveira


José Almada Negreiros, filho de um tenente de cavalaria, Administrador de Concelho em São Tomé, terra natal de sua mãe, aí nasceu e passou parte da infância.

Depois da morte da mãe, em 1986 veio com o pai viver para Portugal, o qual em 1900 foi nomeado encarregado do Pavilhão das Colónias, na Exposição Universal de Paris. Os filhos ficaram no Colégio dos Jesuítas, em Campolide.

Em 1911, com a República, o Colégio foi extinto, pelo que José entrou para a Escola Internacional de Lisboa onde irá desenvolver o seu trabalho, publicando nesse ano, o primeiro desenho, n’ “A Sátira”, bem como o jornal manuscrito “A Paródia”, do qual foi o único redator e ilustrador.

Por alturas de 1913 conheceu Fernando Pessoa, com quem veio a editar a “Orpheu, juntamente com Mário de Sá-Carneiro e outros.

Júlio Dantasmédicopoetajornalista e dramaturgo, tido em certos meios como a maior figura da intelectualidade portuguesa da época, afirmou que a Orfeu era feita por “gente sem juízo”. Irónico, mordaz e provocador, Almada respondeu-lhe com o “Manifesto Anti-Dantas”, onde escreveu que “uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim!”

Em Portugal, já Salazar ocupava o poder, Almada, começou a ser solicitado para colaborar com as grandes obras do Estado. O Secretariada da Propaganda Nacional/S.P.N., encomendou-lhe o cartaz a apelar ao voto na Constituição de 1933. O mesmo, irá organizou mais tarde a exposição “Almada-Trinta Anos de Desenho”, e convidou-o a apresentar-se na “Exposição Artistas Portugueses”, realizada no Rio de Janeiro em 1942. O S.P.N., viria a atribuir-lhe o “Prémio Columbano” pela tela “Mulher”.

A partir daqui, Almada dedicou-se, principalmente, ao desenho e à pintura. Pintou, os vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima/Lisboa, que o público mais tradicionalista não apreciou, o renomado retrato de Fernando Pessoa, os painéis das Gares Marítimas de Alcântara e da Rocha Conde de Óbidos, os frescos na Escola Patrício Prazeres, as fachadas dos edifícios da Cidade Universitária, os cartões para as tapeçarias do Tribunal de Contas e do Palácio da Justiça, de Aveiro.

Tendo colaborado muitas vezes com o Estado Novo, Almada, não deixou todavia de registar que “as construções do Estado multiplicam-se, porém, as paredes estão nuas como os seus muros, como um livro aberto sem nenhuma história para o povo ver e fixar”.

Os seus últimos trabalhos, então com 75 anos, são o painel “Começar”, na Fundação Calouste Gulbenkian e os frescos da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra.

O único registo televisivo que dele existe, é a entrevista aquando da sua ida ao ZIP-ZIP, gravado ao vivo, sem a intervenção da censura prévia, no Teatro Vilaret. Almada, nunca tinha ido à televisão e não voltou a ir. No Zip-Zip, foi ele a revelação para inúmeros portugueses, que nem de nome o conheciam, e um bom teste foi ver que os seus livros ou sobre ele, se esgotaram na Feira do Livro. Fialho Gouveia lembrava que não foi fácil convencê-lo a ir ao programa, mas que, “depois de lá estar se sentiu bem e foi muito comunicativo”. Cerca de um mês mais tarde, Natália Correia mostrava-se “surpreendida com o suculento prato de espírito, finalmente servido pela TV”. Segundo alguns, nunca antes um programa de televisão havia conseguido impacto semelhante.

 

Corria o mês de abril de 1969. Coimbra começava a estar em polvorosa com a crise académica. Salazar tinha caído da cadeira, e o governo era chefiado por Marcelo Caetano. A censura não abrandava o cerco à liberdade de expressão. Ramiro Valadão era o homem a conduzir os destinos da RTP, de braço dado com o poder. Perante a estagnação que se vivia em Portugal, Raúl Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia propunham a realização de um programa diário, de estúdio e porta abertos. Ramiro Valadão foi perentório, “era complicado..., mas… porque não o fazer semanalmente?”

Daí a pouco nascia o Zip-Zip e lá estava Almada Negreiros. Pela primeira vez, o artista estava na televisão, para uma conversa que deixaria os portugueses suspensos. Um homem culto, especial e inteligente em poucas palavras dava respostas que faziam eclodir palmas do público. Na rua, onde muitos dos seus quadros estavam expost
os, Fialho Gouveia fazia uma reportagem percorrendo falando com os transeuntes. No estúdio, Almada assistia atento e curioso. 

As orientações de busca e criação de Almada Negreiros foram a beleza e a sabedoria, “pois a beleza não podia ser ignorante e idiota, tal como a sabedoria não podia ser feia e triste”. Mestre Almada, foi um pintor-pensador, executante de uma arte elaborada que pressupõe uma aprendizagem que não se esgota nas escolas tradicionais. Outrossim, uma aprendizagem que implica um percurso introspectivo e universal. Vulto cimeiro da vida cultural portuguesa durante quase meio século, contribuiu para a criação, prestígio e triunfo do modernismo artístico em Portugal. Na sua evolução como pintor, passou do figurativismo e da representação convencional, para a abstração geométrica, matemática e numérica que caracteriza as últimas obras.