quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O MEU NATAL E O PERU

Vem aí o Natal de Jesus e dos Homens, o Natal das Crianças, o

Natal dos Sorrisos, o Natal das Lareiras Íntimas e Acolhedoras e… o

Natal do Peru.

Vem aí o Natal de 2022, e eu vejo-me, sentado na berma de uma

longuíssima estrada, fatigante como as recriminações duma mulher

despeitada, estrada por onde o destino me impele subjugando-me

inexoravelmente, mas que a bendita cegueira da infância me

ocultou misericordiosamente.

Vejo-me de novo a esperar o Natal com o peru caseiro, do rico peru

velho e duro a quem, com os meus irmãos, assobiava ameaçando

casá-lo com uma velha que o havia de matar.

Durante os distantes anos em casa de meus Pais, lambi-lhe o

molho, lambuzei-me com suas enxundias, saboreei-lhe o recheio de

picado, a febra, gozei-o em êxtases e habituei-me à ideia de que

nunca me faltaria nesta época.

Mas “nunca” é uma expressão que “nunca” se deve utilizar.

Na guerra de África e no mato da Guiné na década de 1970, longe

esteve para mim a mesa de Natal dos anos de rapaz. Era agora o

porco do mato, o javali, que estava perto, não era a ave digna que

tão familiarmente conhecera e tratara, não a igualando bem se

sabe, não podendo ser considerado como sucedâneo de hierarquia

limpa, de sangue propicio a suportar saudáveis cabidelas.

Com o porco do mato ao alcance do meu garfo reparti o meu Natal,

ao preço de um animal que os muçulmanos recusam.

No entonto, caros Amigos, o que me preocupa não é, obviamente,

esse Natal longe da Terra, mas a lembrança daquilo que poderei

comer no Natal do próximo ano.

MELÃO NA NOITE DA CONSOADA

Em 1972, casado, pai de duas filhas, licenciado em Direito, Delegado do Procurador da

República em exercício, fui mobilizado como Alferes Miliciano de Infantaria para prestar

serviço militar na Guiné.

Tendo conseguido graças às habilitações académicas e o passado profissional ser

transferido para os Serviços de Justiça do Quartel-General do CTIG, isso permitiu-me

ter comigo a família, para o que arrendei uma casa. A minha Mulher foi colocada como

professora no Liceu de Bissau, dando aulas a alunos que não falavam português e

utilizavam os manuais e programas em uso em Portugal!

Aproximava-se o Natal de 1972, sendo que no dia 24 de dezembro fazia 2 anos a

minha filha mais velha. Longe da Terra, em ambiente estranho, com muito calor e sem

a demais família por perto, o Natal afigurava-se-nos como algo que gostaríamos de

manter tanto quanto possível à nossa maneira do Porto ou de Alcobaça. Preparamos o

jantar da Consoada sem esquecer um nosso imprescindível bacalhau cozido com todos,

um tinto especial comprado amorosamente na Messe, um bolo de anos com velas e

um melão. Não houve bolo-rei, o bacalhau foi enviado do Porto por meus Pais e o

melão de Alcobaça pelos meus Sogros, através de um embarcadiço das suas relações

que fazia a carreira Lisboa-Bissau.

O melão chegou uns dias antes e foi amorosa e cautelosamente guardado no frigorífico

da casa movido a petróleo.

E lá fomos jantar. Comemos o bacalhau regado com azeite aquecido, cantamos os

parabéns à Raquelinha e no fim abrimos o melão.

52 anos passaram, mas minha Mulher e eu não mais esquecemos esse melão.

Era diferente do que conhecíamos? Cremos que não, mas tivemos uma sensação

irrepetível e inolvidável.

Desde então, temos comido melão muitas vezes, na época própria e no contexto

corrente, mas nunca, nunca mais esquecemos a sensação de na noite de Consoada de

1972 em Bissau, comermos o melhor melão do mundo. A partir daí passei a ter

também com ele uma relação muito especial, pelo que muitas vezes que tenho uma

talhada de melão no prato, me vem à memória este prosaico incidente à lembrança.