quinta-feira, 14 de setembro de 2017

O CONSELHEIRO ACÁCIO E EÇA DE QUEIROZ

O CONSELHEIRO ACÁCIO E
EÇA DE QUEIROZ

Fleming de OLiveira

(I)

Os “Homens do Foro”, tidos por juridicamente ignorantes, mas com afetada erudição, pedantes no formalismo e dados a transigências éticas, foram, na obra de Eça de Queiroz, alvo de vigorosas caricaturas.
Este é um tema que me interessa particularmente, seguramente por deformação profissional.
Eça criticava a solenidade forense, que obrigava os advogados a discutir e tentar convencer gente vulgar, para além de acompanhar o andamento do processo no Tribunal, num ambiente mais parecido com uma feira, onde não faltavam testemunhas profissionais, confusão e tumulto.
Na verdade, Eça não era pessonlidade que, com a sua inteligência e finura, descesse a falar de igual para igual para convencer o padeiro ou jornaleiro que se sentava na bancada de jurados, enfim, incapaz de discutir ou de raciocinar com quem estivesse muito longe do seu talento e cultura.
Eça, encarnava, outrossim, a cultura, a elegância, a arte e a vida civilizada, pelo que tendo em conta as suas amplas relações, utilizava na ironia uma poderosa arma de ataque e de defesa.
Não admira pois que tivesse feito de juízes, advogados, escrivães, meirinhos e delegados seres venais e ridículos, incomparáveis caricaturas. Mas, salvo melhor opinião, a ideia de Eça não era tanto atacar a classe, mas ir ao fundo deste ou daquele tipo, abordar um caso patológico.
Coloca os “Bacharéis” requisitados pelos conflitos da intriga amorosa, pelos “embargos de terceiros”, pelo jogo das palavras e da malícia, venerando o direito com ironia e desdém.
O “Bacharel” era o molusco adaptável, contemplativo, videirinho, a alma torpedo do Silveirinha formada por um misticismo ridículo, entre catadupas de imbecilidade, nas mais conspícuas senhoras devotas com a lubrificação do unto das batinas.
O “Bacharel” cumpria a carreira, com um estágio conquistando o diploma, para depois ingressar, logo que possível, na magistratura. Com o diploma de bacharel, quem não fosse capaz de fazer carreira na advocacia, por falta de talento ou outras qualidades para a dura luta do dia-a-dia no foro, ia para a magistratura, que conferia uma vida com um mínimo de existência garantido, mais tranquila e cómoda, mais acessível a fazer e receber favores e onde os disparates eram, afinal, doutos erros. Instalado nessa vida, o “Bacharel” virava “Meritíssimo” ou “Digníssimo Juiz”.
Outro caminho, era a política pelas mãos de um sogro influente ou de um parente ministro.
O Conselheiro Acácio, a quem deu um relevo especial em  O Primo Basílio, e eu aqui (é de certo modo o núcleo, básico, deste apontamento), é descrito como um homem “alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo, ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto. Tingia os cabelos, que de uma orelha à outra lhe faziam colar para trás da nuca; e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, maior brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas muito grandes, muito despegadas do crânio”.
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O CONSELHEIRO ACÁCIO E
EÇA DE QUEIROZ

Fleming de OLiveira

(II)


Perante a sociedade, o Conselheiro Acácio era um moralista, com constantes declarações a favor da sã moral e dos bons costumes, que faziam dele um público paladino da família e das virtudes cristãs. Esse moralismo contrastava com a curiosidade que se desperta em torno desse personagem, que Eça assemelha ao próprio ridículo, cuja vida particular e íntima sugere uma fonte inesgotável de taras e de superstições. A resistência para com as investidas de Dona Felicidade e o romance subterrâneo mantido com a criada, sugerem essa dubiedade que antepõe pautas morais internas e externas.
O Conselheiro Acácio também pode ser o exemplo do “Bacharel”, que muito fala, pouco diz, nada pensa, tudo reproduz.
Nascido e criado em Lisboa, Acácio era um solteirão sem família, aposentado do cargo de Director-geral do Ministério do Reino, que vivia num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, que de suas coisas cuidava, mas que entretanto o atraiçoava. O Conselheiro resistia ao mesmo tempo às investidas de Dona Felicidade, por ele apaixonada. Senhor de gestos medidos, calculava, inclusive, o modo como inalava o inseparável rapé.
Expressava-se o Conselheiro Acácio, com chavões e elaboradas frases vazias e muitas citações. Com gestos medidos e cerimoniosos, jamais usava palavras triviais. Não dizia “vomitar”, antes fazia um gesto indicativo e empregava o termo “restituir”.
Assinante do S. Carlos havia dezoito anos, conhecia a sociedade frequentadora da ópera e a intelectualidade da moda. Nas suas constantes citações, dizia “o nosso Garret”, “o nosso Herculano” e falava incessantemente das “nossas virtudes pátrias”. Despedia-se das pessoas sempre com o mesmo tratamento, “Al rivedere, como dizem os italianos” ou, então, à simples menção de Lisboa, disparava “cidade de mármore e de granito, na frase sublime de nosso grande historiador”. Toda vez que o nome do Rei era pronunciado, o Conselheiro erguia-se da cadeira.
Tinha sido feito Cavaleiro da Ordem de Santiago, em atenção “aos seus grandes merecimentos literários e às obras publicadas, de reconhecida utilidade”, no campo da economia política. Era autor das seguintes obras: “Elementos Genéricos da Ciência da Riqueza e Sua Distribuição”, com o subtítulo “Segundo os Melhores Autores e Leituras do Serão”, da “Relação de Todos os Ministros do Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos Dias com Datas Cuidadosamente Averiguadas de Seus Nascimentos e Óbitos”, e de uma volumosa “Descrição Pitoresca das Principais Cidades de Portugal e Seus Mais Famosos Estabelecimentos”. É um burocrata, que adora carimbos, despachos, fichas e relatórios que não servem para nada.
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O CONSELHEIRO ACÁCIO E
EÇA DE QUEIROZ


Fleming de OLiveira

(III)




Personagem, aparentemente, menor no contexto de “O Primo Basílio”, o Conselheiro Acácio foi elevado pelo tempo. É mais citado e lembrado do que o próprio Basílio (patife e aproveitador), do que (o bem-comportado) Jorge, do que a (ingénua) Luísa, do que Juliana (a empregada amargurada, velhaca, que chantageou a patroa).
É de seu nome próprio, Acácio,  que se construiu o adjetivo, “acaciano”, identificador de tautologias e redundâncias. O Conselheiro Acácio é o próprio cerne do bacharelismo oco.
O Conselheiro Acácio, que sempre foi censurado, criticado, e de quem se riu, não passa todavia, além dos limites de uma criação literária, da síntese identificadora das frustrações e ressentimentos que todos temos e vivemos.
É uma abatida figura que pede ajuda, compreensão e carinho.
É um homem triste, como por vezes triste foi também Eça, como triste foi às vezes o Portugal do século XIX, e como tristes somos na inutilidade dos bons conhecimentos que pensamos possuirmos.  A obra de Eça não foi um conjunto de odes elegíacas sobre Portugal, não é uma escrita “com a tinta azul clara  qual Júlio Diniz”.
Encontrando-me nas lides forenses há mais de quarenta anos (como antigo Magistrado do MP e Advogado), vejo e revejo, esse “personagem acaciano”, ora na figura de um Advogado, ora entre Procuradores e Juízes.
Nos escritos, sejam requerimentos, arrazoados ou sentenças, a forma “acaciana” apropria-se do texto e das reduzidas ideias, através da repetição de frases e expressões que julga conferir distinção mas que, geralmente, é um deserto de lógica ou de conteúdo. O estilo é deplorável, tanto pelo exagero, como pela falta de erudição, supostamente suprida pela verborragia e  citações, preferencialmente em latim.
É verdade que uma classe desses profissionais está ainda em franca atividade, pelo que não houve dia em que não me deparasse com um “acaciano” a repetir chavões e lugares comuns, aparentando sabedoria, quando não passava de criatura medíocre, que vivia a repetir frases e expressões banais, ocas e triviais, e, às vezes, até ridículas, proferidas em tom catedrático.
Um consolo, entretanto, relevo aqui.
É quase impossível que qualquer um não se tenha cruzado, alguma vez, com um tipo género Conselheiro Acácio. Eles estão por todos os lados, na vida privada e na pública, enchendo os nossos ouvidos com clichês que, às vezes, beiram o ridículo.
O Acácio “original” fazia de tudo para se mostrar educado, de fácil trato, simpático.
Reencarnado, perde a graça.

Resta nele, apenas, o vazio.

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