terça-feira, 21 de janeiro de 2020

NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.

NO TEMPO DOS BÓERES EM PORTUGAL
CALDAS DA RAINHA, ALCOBAÇA, TOMAR, PENICHE, ABRANTES E S. JULIÃO da BARRA.
(4)
-CALDAS DA RAINHA-
 
    O desenvolvimento das Caldas da Rainha iniciou-se, verdadeiramente segundo se diz, com D. Afonso VI, ao mandar reconstruir e ampliar o Hospital Termal.
Apesar do desenvolvimento e prosperidade que conheceu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o Concelho das Caldas da Rainha foi criado, apenas, em 1821 e a elevação a cidade no mês de agosto de 1927, por decreto assinado pelo Presidente da República, Marechal Óscar Carmona.
Durante o século XIX, com a voga das estâncias termais, a vila passou a ser frequentada pelas classes mais abastadas, para tratamentos de algumas doenças da civilização. O progresso registado nos meios de transporte, a viação acelerada, como se chamava ao comboio, esse assombro de modernidade, colocou Caldas da Rainha a pouco mais de três horas de Lisboa, aproximou-a do resto do País e acarretou uma revolução na vila e concelho que cresceram em riqueza e população, muito para além de mero de hospital termal. A segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, assistiram ao fomento turístico em território nacional continental. As termas, então em moda, foram locais privilegiados para o seu desenvolvimento. No panorama termal nacional do período, Caldas da Rainha afirmou-se como uma das mais populares e concorridas estâncias do país, ao mesmo tempo que vivia um período de assinalável progresso em várias áreas. O século XX trouxe a consolidação do termalismo em Caldas da Rainha, complementado com outras ofertas como o turismo pela zona ou a praia.
As práticas turísticas em Portugal ganharam expressão especialmente a partir da segunda metade do século XIX. O seu desenvolvimento tirou partido de uma época de relativa acalmia e prosperidade trazida pela Regeneração e pelo Fontismo e que permitiram ao País recuperar algum atraso e dotar-se de infraestruturas essenciais para a expansão, entre outras, das atividades turísticas. As termas caldenses eram, neste contexto, um local com significado no panorama termal nacional, contando, no seu vasto leque de frequentadores, com a aristocracia nacional e com a presença da família real. Às virtudes termais juntar-se-ia brevemente o dinamismo económico que faria da localidade um polo regional. A cerâmica conheceria um assinalável período de popularidade e a Lagoa de Óbidos, bem como a praia da Foz do Arelho, começavam a destacar-se e a merecer a atenção e visita de cada vez mais turistas. A abundância de argila na região, permitiu que se desenvolvessem fábricas de cerâmica, que converteram a vila num dos principais centros produtores do país, com destaque para as criações de Rafael Bordalo Pinheiro na sua Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.[1]

Em 28 de março de 1901, o Benguela após cerca de um mês de viagem, chegou ao Cais de Alcântara /Lisboa com 650 Bóeres provenientes de Moçambique com escala por Cabo Verde, para serem distribuídos por várias localidades de Portugal. Em Moçambique, os refugiados vagueavam pela rua com ar de abandono e o desalento de vencidos.
A 3 de abril aportou a Lisboa o Zaire com 56 mulheres e 172 crianças e, no dia seguinte, o Afonso de Albuquerque com mais 10 homens. A maioria dos Bóeres que vieram para Portugal, constituíam famílias inteiras fugidas da guerra Anglo-bóer, salienta Laetitia Smit.
A primeira notícia pública chegada a Caldas sobre a vinda dos deportados, correu célere no dia 2, depois de se conhecer o telegrama em que os Ministros do Reino e da Guerra perguntavam ao Administrador do Concelho se nos pavilhões destinados ao Hospital D. Carlos, se podiam alojar homens, mulheres e crianças. Quando se soube que fora afirmativa a resposta, passou a reinar grande contentamento entre os habitantes da vila, já por presumirem a grande vantagem que lhes adviria da estada aqui dos exilados da guerra da África do Sul, e pelo prazer que lhes ofereceria a convivência com esses heróis que tão nobremente pelejaram em prol da sua Pátria.[2]A Pátria dos Bóeres era a África do Sul e as Repúblicas de Orange e do Transval eram independentes.

O jornal O Popular, que se dedicara ao assunto ao longo de mais de dois meses, contou detalhes da boa receção que os portugueses deram aos Bóeres, por aqui e acolá.
O mesmo jornal informou que o chefe dos refugiados bóeres, apresentou uma mensagem ao Governador-geral de Moçambique, agradecendo-lhe a hospitalidade que recebera, durante o período de tempo que lá passaram até virem para Portugal.
A 3 de abril, os deportados saíram de Lisboa às 7h30m e chegaram a Caldas da Rainha a meio da tarde, num comboio de oito carruagens e vagões com carga, guardados por 25 homens da 16ª. Compª. de Infª.. Eram homens, mulheres e crianças que haviam recebido em Moçambique sapatos e roupas quentes para a viagem e as supostas agruras do clima português.
The New York Times, de 14 março de 1901, reportava que no dia anterior encontravam-se a ser realizados preparativos no porto de Lisboa, para acolher os refugiados, esperados dentro de dias. Ainda conforme o mesmo de 1 de abril de 1901, aqueles foram recebidos por uma jubilante multidão, com ovações e tratando-os como heróis, em contraste com a forma displicente com que foi recebida a delegação britânica liderada por Lord Carrington, que se deslocou para, formalmente, dar conta a D. Carlos da morte da Rainha Vitória.[3]
Laetitia Smit, destaca as calorosas boas-vindas que as populações portuguesas deram aos Bóeres à chegada, em contraste com o repúdio pela barbárie inglesa na África do Sul, a política da terra queimada e as técnicas do campo de concentração, para conter a guerrilha dos bóeres.

Foram 310 os bóeres que chegaram a Caldas no dia 6 e se instalaram, provisoriamente, nas enfermarias do Hospital.
Este número é composto por 80 senhoras de mais de 14 anos, por 95 homens de mais 16 anos, por 69 crianças do sexo masculino até 15 anos e por 66 do sexo feminino até 13 anos. Além destes, veio o comité, que se compõe de 4 membros, corporação que está hospedada no Hotel Lisbonense.[4]
Aquando da chegada, as mulheres e crianças foram levadas em carros puxados por cavalos para os lugares onde deveriam ficar alojadas, enquanto os homens seguiram a pé um homem de barba branca por não haver viaturas suficientes. Junto às bermas estavam os portugueses, algumas senhoras choravam e jogavam flores em sinal de simpatia. Em toda a parte se aclamava “Viva os Bóeres”. As manifestações dos portugueses para com os refugiados foram fantásticas. Na cidade um comité de senhoras deu as boas vindas.[5]

Havia sobejas razões para serem acarinhados.
A razão do bom acolhimento deveu-se não apenas à tradicional hospitalidade portuguesa, mas também aos persistentes sentimentos antibritânicos. A receção e acolhimento aos Bóeres foi um caso muito interessante, e não haverá porventura paralelo, com a prestada a outros que, alguma vez, procuraram apoio e segurança em Portugal.
A impossibilidade de resistência ao ultimato britânico, desencadeou um profundo movimento de descontentamento social, implicando a família real na decadência nacional, tida aquela como demasiadamente próxima dos interesses britânicos. As críticas endossadas aos governos no contexto do conflito Anglo-bóer basearam-se, fundamentalmente, na inépcia e incompetência da sua política externa, pese embora socialistas, republicanos, católicos, monárquicos legitimistas, não ousarem defender uma neutralidade favorável aos africânderes, por muitas simpatias que sua causa inspirasse ou merecesse.
Alimentando esse ambiente, António José de Almeida, estudante universitário em Coimbra, publicou Bragança, o Último, que foi considerado calunioso e o levou à prisão.
A 1 de Abril, no Cuíto/Angola, Silva Porto, o velho explorador em Angola, deitando-se sobre barris de pólvora, acendeu o pavio e imolou-se envolto numa bandeira nacional. Morreria no dia seguinte com setenta e dois anos. A morte do que fora um dos expoentes da exploração africana, gerou uma onda de comoção e o seu funeral, no Porto, foi seguido por uma multidão comovida.
A 11 de Abril,  Guerra Junqueiro publicou Finis Patriae, onde ridicularizou a figura de D. Carlos.
Estes e outros acontecimentos desencadeados pelo ultimato, marcaram de forma indelével o imaginário pessoal e nacional, a evolução política portuguesa, desencadeando uma cadeia de eventos que levará ao derrube da monarquia, à implantação da República e ao reforço na consciência coletiva portuguesa do apego ao império colonial, o que teve pesadas consequências ao longo do século XX. Os argumentos políticos esgrimidos distinguiam-se, sobretudo, pelo posicionamento em relação às vantagens e desvantagens de uma cooperação diplomática mais ativa com a Grã-Bretanha. Mesmo os críticos mais intransigentes, tinham dificuldade em formular uma alternativa credível à aliança Luso-britânica.

Rafael Bordalo Pinheiro ajudou a manter a animosidade com a criação de peças de louça e caricaturas antibritânicas.
Em abril de 1890, a população de Alcobaça, havia-se regozijado quando soube que Bordalo Pinheiro ofereceu ao Cap. Serpa Pinto, um escarrador em louça, representando John Bull, sobraçando dois sacos a transbordar de libras de ouro. Admitiu-se adquirir uma cópia para a expor no edifício da Câmara Municipal, abrindo-se para o efeito uma subscrição, mas Bordalo Pinheiro não acedeu à delegação de Alcobaça que foi falar com ele, no seu atelier. O autor  pretendia que fosse peça única.[6]

O vereador alcobacense Augusto Rodolfo Jorge, na sessão de 22 de janeiro de 1890, apresentou a seguinte proposta, aprovada por unanimidade:
A Câmara Municipal de Alcobaça repetindo o eco de toda a Nação Portuguesa ofendida vilmente no seu brio e sentimento de nacionalidade pela maior das afrontas, protesta contra o ato de violência e deslealdade com que a Inglaterra acabou de proceder contra Portugal.
Pelo mesmo vereador, na sessão de 9 de Abril seguinte, foi declarado e proposto que estando prevista a próxima chegada a Portugal de Serpa Pinto, brioso militar que nos territórios de África expôs valentemente a sua vida para defender o País das prepotências da Inglaterra e sustentar a honra da Bandeira, seria justo que o município alcobacense se associasse às demonstrações de júbilo e patriotismo que em Lisboa vão ser feitas à sua chegada fazendo assinalar na vila esse dia como verdadeira gala e festa nacional. Atendendo, porém, que o município não pode despender uma quantia que pudesse fazer face às despesas com os festejos que condignamente assinalassem a chegada desse verdadeiro patriota e arrojado militar, propõe que nesse dia seja arvorada em frente dos Paços do Concelho, a bandeira nacional, que se dê feriado aos empregados e lhe seja enviado um telegrama de felicitações pelo regresso à Pátria e pelo denodo com que soube sustentar o brio e a honra de povo português, pequeno em território, mas grande em feitos heroicos e ações magnânimas.

Caldas da Rainha, a 21 de fevereiro de 1901, foi surpreendida por um acontecimento chocante.
Tratou-se do assassinato de Joaquim Paiva, natural e residente em Peniche, chegado a Caldas na noite de 20, no trem que faz a carreira de Peniche a esta vila. Momentos depois de ter chegado, o Paiva, o condutor da carreira e o cocheiro Viola, foram cear à taberna de Francisco Lourenço da Silva, na rua da Rainha D. Amélia.
Os companheiros do Paiva saíram da taberna, permanecendo este ainda ali, de onde saiu às 22 horas, dizendo que se dirigiria a casa de Luiz Luizinho, a fim de saber se estava pronto um carro que este lhe mandara consertar. Depois do Joaquim Paiva sair da taberna, só se soube que foi encontrado morto na madrugada seguinte, na estrada da Foz do Arelho, debaixo da ponte do caminho-de-ferro, vendo-se, pela situação em que o cadáver foi encontrado, que fora para ali arrastado depois de morto noutro local. Como próximo existe um poço bastante fundo, supôs-se que o assassino ou assassinos terão pretendido arremessar para aí o corpo com o objetivo de apagar os vestígios do crime, não concretizando o intento, talvez, por terem sentido a aproximação de alguém.
Desde a manhã até há hora em que autoridades procederam ao levantamento do cadáver, ocorreu uma verdadeira romaria ao local. Os comentários eram muitos e díspares e oscilavam entre a excitação e um constrangimento perante o insólito.
Da autópsia apurou-se que que a morte foi produzida por um ferimento na nuca feito por uma moca, uma a duas horas depois do Paiva ter ceado. Não obstante o resultado da autópsia ter sido feita por dois médicos conceituados, o Administrador do Concelho afirmou, em público, que não houve crime.[7]

Os Bóeres quando chegaram em 6 de abril de 1901 (aquele mistério encontrava-se ainda por deslindar), ficaram alojados no Hospital Termal, mas com a chegada da época de banhos foram transferidos para os ainda inacabados Pavilhões do Parque.
O edifício estava inacabado, embora já servisse para exposições de cerâmica e tratamentos e os refugiados estiveram em cinco salas com cerca de 10 por 30 metros cada, no segundo andar, de onde eles desfrutavam de uma linda vista do parque público, com jardim de rosas, palmeiras e um lago. Duas das quatro salas eram usadas por homens acima dos 16 anos e duas por senhoras e crianças, enquanto a quinta sala era usada como refeitório. Os Oficiais e Suboficiais Bóeres continuaram no Hospital em salas com o nome de Stª. Isabel, Stº. António e S. José, e mais tarde foi concedido uma parte do hospital para uso dos Oficiais, onde cada um tinha o seu quarto.[8]
Outros espaços dos Pavilhões vieram a ser utilizados como escola bóer e para serviços religiosos. Uma pequena guarnição militar que guardava os internados, encontrava-se alojada nos mesmos edifícios.[9]
Os ocupantes seguintes foram alemães e austríacos residentes em Portugal por altura da I Guerra, e que o Governo Português mandou internar. Afonso Costa avançou com a expulsão dos súbditos inimigos, a obrigatoriedade de abandonar o país, com exceção dos do sexo masculino com idades compreendidas entre dezasseis e quarenta e cinco anos. Estes deveriam ser levados para lugar designado pelo governo. Angra do Heroísmo, acolheu um dos principais depósitos de alemães/austríacos, onde, apesar da falta de liberdade, os prisioneiros, segundo se dizia, talvez malevolamente, chegaram a ter melhores condições de vida que a população local.
Tal como com os Bóeres, os alemães/austríacos acabaram por se mudar do Hospital Termal para os Pavilhões do Parque. Uma carta do presidente da Junta da Paróquia ao Administrador do Concelho, solicitou ao Ministro do Interior a realização das obras previstas nos Pavilhões a fim de serem ali internados os alemães, visto estar a aproximar-se a época balnear e o edifício do Hospital precisar das reparações e limpeza anuais. Os alemães/austríacos foram transferidos para os Pavilhões do Parque onde permaneceram até ao final do conflito. Não sendo considerados, tecnicamente, prisioneiros de guerra, os alemães/austríacos tinham liberdade para passear pelos jardins, remar no parque, organizar jogos de futebol e disfrutar de outros passatempos que não implicassem uso de armas de fogo.
Mais tarde, embora num contexto completamente diverso, Caldas da Rainha foi de novo terra de acolhimento de estrangeiros ameaçados. Na sequência da II Guerra, verificou-se um enorme fluxo de refugiados a Portugal enquanto fugiam à guerra e às perseguições de que eram alvo.
Nos locais onde o governo os concentrou para permanência limitada e transitória ou fixação em alguns casos, as residências fixas, as populações sentiram bastante uma presença que iria determinar a sua vida política, económica, social e cultural, no período da II Guerra.
Os que passaram por Portugal, concretamente por Caldas da Rainha elogiaram, quase sempre, a hospitalidade recebida e alguns iriam agradecer expressamente o tratamento. Vários optaram, inclusivamente, por permanecer e se fixar na cidade, após o termo da Guerra.[10]

É com o mais subido orgulho que registamos o magnífico acolhimento que os nossos simpáticos hóspedes têm tido nesta terra, porque os caldenses, manifestando aos bóeres a amizade que lhes dedicam e o respeito que lhes merece a sua posição de vencidos, têm tido a correção, o escrúpulo, de não caírem nos exageros, nas inconveniências em que alguns portugueses se tem envolvido, guiados por mesquinhos interesses políticos, por vis explorações em que o torpe egoísmo põe a mascara da abnegação e do sentimentalismo.[11]
Os que dispunham de condições económicas para tal (alguns tinham conseguido trazer dinheiro), alugaram quartos ou casas. As casas apresentavam tipologia rural do Oeste, um ou dois andares, mal divididas e iluminadas a azeite ou a óleo, uma cozinha que se tornava o sítio de convívio após as refeições e até à hora de deitar. A maioria dispunha de compartimento onde a família dormia e assim os bóeres tiveram de se sujeitar. Mas mesmo assim eram apetecidas. Só os mais abastados possuíam quarto, sala e cozinha independentes. Apesar de as casas de banho começarem a aparecer, a esmagadora maioria não utilizava retrete. Os portugueses dispunham de lavatórios e bidés nos quartos e só de vez em quando, utilizavam um alguidar ou uma selha, colocados na cozinha ou varanda. Especialmente no campo, tomar demasiados banhos, era tido como sendo prejudicial à saúde da pele.
Os exilados ficaram admirados com os baixos preços praticados com a renda, pelo que fizeram uso desta autorização cerca de 55 ou 60 famílias. Uma foi, todavia, viver numa casa de prostituição, o que demonstra o desejo de sair dos edifícios do Estado. A razão porque desejavam viver em casa própria, decorria fundamentalmente de falta de privacidade, de apenas estarem autorizados a se encontrarem e conversarem, até às dez da noite. Os quartos eram pequenos, e estavam mobilados pelos portugueses para que não parecessem habitados por Bóeres.[12]
Em julho de 1901, a quantia de 309.000 Reis foi angariada no Porto para apoiar os refugiados de Caldas da Rainha.
Em Alcobaça e Peniche, os antigos oficiais Bóeres e antigos funcionários públicos das Repúblicas recebiam um subsídio diário de 600 Reis, enquanto para os demais refugiados o subsídio era de 30 Reis
O descontentamento dos que moravam em casas de aluguer decorria que duas vezes por dia, às 12h e às 20h, tinham de se apresentar às autoridades portuguesas, o que produzia um mal-estar. Conforme Ferreira, no quartel deviam receber o subsídio de alimentação na cozinha central e deviam pagar as rendas em devido tempo.
Diariamente eram obrigados a apresentar-se, pese embora, durante o resto do tempo, poderem andar mais ou menos à vontade, sem que haja registo de conflitos com portugueses. As idas a Lisboa, Alcobaça, Peniche, Nazaré ou Batalha eram permitidas com prévia autorização e após justificação, mas, no Verão, podiam ir à Foz do Arelho, por atalhos e areais, a cavalo ou mesmo em burro, o que era mais em conta neste caso.
Em regra, era, pois, permitida liberdade de movimentos na vila. Alguns iam, por vezes, até à conhecida Ourivesaria e Relojaria Portuense, com estabelecimento na rua D. Maria Pia, 114/115, embora nada comprassem, pois achavam os preços elevados, concretamente os artigos que incorporavam ouro.

Os responsáveis bóeres desincentivavam o namoro com portuguesas, pelo que quando dois pediram para namorar duas meninas, foram transferidos para Peniche. Castigo? Aviso para os demais? Ferreira não esclarece.
Há registo de 4 casamentos celebrados em Caldas da Rainha entre membros da comunidade bóer. No dia 7 de dezembro de 1901, foi registado na administração do concelho o casamento dos refugiados Johan Cornelis Zyp e Gertuida Wilhelmina Caninha. Foram testemunhas do acto, os oficiais bóeres Jacobus Gustaf von Aardt, Johanes Marticuus Wet, Gerais Hendrik von Ojen e Eduardo Gonçalves Neves, diretor da Escola de Desenho Rainha Dª. Leonor.[13] Na cerimónia religiosa (a Igreja Católica considera válido este casamento) a que Ferreira não se refere, mas que a ter ocorrido terá sido segundo o rito protestante como admitiu Silvestre Campos que deste modo celebrou o seu casamento na África do Sul, encontrar-se-ia um casal de padrinhos, competindo a ela segurar o buquê da noiva e a ele entregar as alianças ao pastor para as bênçãos. Alianças nos dedos podiam beijar-se e receber uma salva de palmas. Não muito diferente, afinal, do que é vulgar em Portugal.
Sendo protestantes/calvinistas, não estavam impedidos de praticar serviços religiosos, apesar de proibidos de cantar para não incomodar os vizinhos. Graças à intervenção do influente Pastor Hugo, as autoridades eclesiásticas portuguesas vieram a dar autorização para cantarem em voz baixa.
Ferreira refere a presença de pastores para ministraram o culto em Caldas da Rainha, bem como de dignitários religiosos que nomearam membros da comunidade para aulas de catequese. Um pastor da Igreja Reformada Alemã, recebeu reações negativas da parte de alguns internados, pertencentes a outras igrejas, que consideravam aquela com uma igreja falsa.
Professores dos Estados Unidos da América e alguns da Igreja Reformada Holandesa eram, salvo exceções, tidos por impuros pela sua doutrina e prática.
Durante o tempo em que os bóeres estiveram em Caldas da Rainha, houve 5 falecimentos e 16 nascimentos, e a família de uma criança ficou tão grata e feliz que adotou para esta o apelido Caldas da Rainha.

No ano de 1880, a Câmara Municipal de Caldas da Rainha iniciou um programa de obras destinadas a ampliar a rede de esgotos e embelezar o Rossio da vila. Assim, foi construído o tabuleiro central com ondulados de basalto negro sobre fundo branco, inaugurado em 1883 ex-libris do embelezamento de uma terra, que prosperava com a vinda dos termalistas.
Segundo historiadores caldenses e o Gazeta das Caldas, para além de dar lugar a um grande centro de comércio local, a Praça Maria Pia/Rossio congregava nos edifícios as tendências da arquitetura urbana de Caldas da Rainha, desde as suas primeiras manifestações românticas.
Os Bóeres repudiavam, por princípio, que a Praça da Fruta, funcionasse aos domingos, Dia Santo em que não se pode trabalhar.
Todavia, não deixavam de a frequentar dada a expressiva dimensão, variedade e interesse, pois reconheciam que o pêssego das Caldas, a melancia de Pataias e a laranja de Alcobaça têm nome. A fruta das Caldas tem fama e sendo o mercado daquela vila, talvez o primeiro do distrito, concorre ao seu comércio a fruta dos concelhos limítrofes, recebendo as Caldas as honras que em toda a extensão não lhe pertencem.
Alcobaça produzia mais laranja e limão que Caldas da Rainha e Óbidos juntos, mas a praça de Caldas era a maior do Distrito (com o desenvolvimento das redes de comunicações e transportes passou a ser também redistribuidora da região de Lisboa), e a ela chegavam os produtores dos concelhos vizinhos, especialmente ao domingo. O mercado comandava, pode-se dizer, o ritmo da comunidade caldense, pelo que o domingo nunca foi aprovado pelo comércio para o dia de descanso semanal e as principais lojas comerciais da vila, funcionavam em torno do recinto. O pomar, convivendo com culturas de sequeiro, iria tornar-se o principal suporte da agricultura comercial. Torres Vedras, Bombarral, Caldas da Rainha/Óbidos e Alcobaça passariam a constituir a maior área frutífera nacional, que não consumindo embora a totalidade da produção, abastecia o mercado de Lisboa.

Um exilado registou no seu diário o ritual da procissão na Páscoa de 1901, pois à frente seguia uma grande imagem do Senhor e da Virgem Maria e todos se ajoelharam em frente às imagens. Os nossos pais disseram-nos que não fizéssemos isso.
Protestantes rejeitavam o uso e o culto às imagens e socorriam-se de Calvino: O Senhor proíbe não apenas que uma imagem sua seja erigida por um escultor, mas também proíbe que qualquer artista a confecione, porque toda imagem é pecaminosa e um insulto à sua majestade (Institutas da Religião Cristã I, 11, 4). De que serve erigir nas igrejas tantos crucifixos de madeira e de pedra, de prata e de ouro…? (Ibid. I, 11, 7). Nós consideramos ilícito dar uma forma visível a Deus, porque o próprio Deus o proibiu, e porque ela não pode ser feita sem, de alguma forma, obscurecer a sua glória (Ibid. I, 11, 12).
Alguns apreciavam visitar as igrejas católicas, que encontravam sempre de portas abertas e com fiéis em devoção. A beleza e esplendor, as velas, as imagens, as janelas com vitrais, não deixavam indiferentes os bóeres, que eram tolerantes, o que era bem visto pelos portugueses e suscitava simpatia.
Nem todos, porém, observavam os mesmos princípios, o que por vezes dificultava o relacionamento entre si. Os diáconos Stofberg e Du Toit, durante a sua estadia nas Caldas da Rainha, intensificaram as lições de catequese de forma a que 36 pessoas, no dia 20 de junho de 1902 foram recebidas como membros da Igreja Reformada Holandesa das Caldas da Rainha, e no dia 21 de junho nomeados membros efetivos. Depois disto foram levadas 18 crianças a Caldas da Rainha para serem batizadas.

A estadia em Portugal terá salvado alguns que não sobreviveriam se tivessem ficado em Moçambique, onde vagueavam desorientados, sem perspetivas, doentes, sem dinheiro, muito[U1]  menos se internados na África do Sul, nos campos de detenção erigidos pelos britânicos.
Por isso, o seu agradecimento foi expressivo e sincero.
Nos Pavilhões do Parque, foram afetas duas salas para funcionarem como hospital, uma masculina e outra feminina. Os casos mais graves eram enviados para o Hospital de Santo Isidoro ou Hospital Militar da Estrela, Lisboa.
Por sorte o clima agradável e saudável das Caldas da Rainha e ainda os bons tratamentos que tiveram, permitiu recuperarem das doenças de malária contraídas em Moçambique. Ferreira disse que A área de Alcobaça é saudável, com exceção dos asmáticos, por ser húmida. Mas esta não foi razão para reclamação, ao que se saiba. Alcobaça apresentou as melhores condições de alojamento aos bóeres que estiveram em Portugal.

Ferreira, não deu conta que internado algum tenha utilizado tratamentos termais.
Os Bóeres não permitiam que homens fossem cuidar das senhoras, salvo casos especiais. Enquanto eles eram tratados por soldados-enfermeiros, as senhoras eram por senhoras-enfermeiras, o que não terá agradado às que tinham de cuidar das suas compatriotas, quando foi necessário nomear duas para serem enfermeiras permanentes, com direito a usar uniforme vermelho e branco bem como touca. Ainda assim o assunto não ficou imediatamente resolvido, pois as duas enfermeiras trabalharam muito contrariadas cinco meses sem salário, até serem remuneradas. Silvestre Campos esclareceu que, hoje em dia, isto não acontece mais. Viúvo de uma senhora bóer, nunca viu serem suscitadas reservas que esta fosse assistida e tratada por quem, homem ou mulher, fosse mais competente. Conheceu, porém, um casal de chineses, supostamente muito tradicionais e confucionistas, cujo marido não apreciava que a esposa, mesmo num hospital, fosse tratada por enfermeiros masculinos.
Alguns internados foram tratar-se ao consultório de Cirurgia e Prótese Dentária, de Júlio de Melo Ferrari, sito na Rua do Conselheiro José Luciano de Castro, nº. 88, vulgo Rua dos Arneiros, em frente à Rua do Conselheiro João Franco. Não havia, entre eles, nenhum dentista, salvo um ou dois cirurgiões barbeiros.
Em Caldas da Rainha e Porto, ocorreram peditórios para ajudar os internados.
Da Holanda e da França proveio dinheiro e géneros, como sabão e roupas, e a Organização de Bíblias Holandesas ofereceu 120 Bíblias (antigo Testamento) e 240 Evangelhos. Os cachimbos, vindos da Holanda, para oferta constituíram motivo de agitação, e uma vez que não eram suficientes para todos, tal como o tabaco foram sorteados entre fumadores acima dos dezoito anos.

A alimentação, de início, gerou problemas, tal como aconteceu em Alcobaça e outros locais.
Se o menu do pequeno-almoço era pacífico, cada um tinha direito a receber café/ chicória e pão e por vezes papas de milho, o almoço e o jantar não eram de total agrado, pelo que, alguns insatisfeitos com os cozinheiros portugueses, pediram que lhes fossem entregues os alimentos de modo a os prepararem. Ainda assim, quando isso não aconteceu houve quem continuasse a reclamar, as papas de milho de manhã eram más. Havia, segundo diziam, falta de sal nos alimentos e nada para beber à hora do almoço. Na refeição principal havia geralmente feijão e batatas, e couve ou repolho três vezes por semana, o que não era apreciado se condimentados com azeite da Serra dos Candeeiros, à boa moda portuguesa.
Os que eram provenientes de zonas de agricultura intensa, como foi aliás o caso de Silvestre Campos que deu algumas interessantes informações, estavam habituados a carne, ovos, papas de milho, manteiga e vegetais frescos, pelo que designaram três cozinheiros e quatro senhoras para se encarregaram da alimentação do grupo dos Pavilhões.

África do Sul reputada pelo sol, é uma região relativamente seca, com uma queda de chuva média anual de cerca de 464 mm. O Cabo Ocidental é a parte mais chuvosa durante o Inverno (corresponde ao nosso verão), mas o resto do país é, geralmente, uma região com chuva no Verão. Por outro lado, as temperaturas tendem a ser mais baixas do que em outros países em idênticas latitudes (a Austrália, por exemplo), devido principalmente à sua maior altitude em relação ao nível do mar.
Em Porto Elizabeth, o verão é curto e morno, o inverno longo e ameno. Durante o ano o tempo é seco, os ventos são fortes, o céu quase sem nuvens e a temperatura varia entre 8 °C e 26 °C, sendo raramente sendo inferior a 5 °C ou superior a 30 °C.
Em Upington, o verão é quente, o inverno curto, ameno e de ventos fortes. Durante o ano inteiro, o tempo é seco e de céu com poucas nuvens. Ao longo do ano, em geral a temperatura varia de 5 °C a 36 °C sendo raramente inferior a 0 °C ou superior a 40 °C.
Alguns tinham tido importantes rebanhos, os caprinos bóer, que em muitos casos se perderam com a guerra.
Silvestre Campos, informou que a história da vinicultura na África do Sul, teve início em meados do século XVII, quando colonos holandeses se instalaram na região de Table Bay, plantando vinhas importadas de França e Espanha. Ao longo do tempo, plantações foram sendo espalhadas por outras regiões. Além do desenvolvimento interno, um fator histórico externo contribuiu para que a produção de vinhos na África do Sul florescesse. Quando eclodiram as Guerras Napoleónicas, o comércio de vinhos franceses para a Inglaterra foi interrompido, abrindo uma brecha para que a crescente indústria sul-africana ocupasse parte desse mercado.
No século XIX, a produção começou a diminuir, com a ocorrência de pragas e por causa dos conflitos que assolaram a África do Sul.
No início do século XX, houve uma retoma da vitivinicultura, com medidas cujos efeitos se revelam muito bem.

Um dia, um grupo de homens, cada um com um canivete e empunhando um tomate, entraram numa farmácia, cortaram com solenidade e aparato o tomate ao meio, deitaram-lhe sal e começaram a comer, perante a surpresa dos clientes presentes e pessoas que, entretanto, se juntaram à porta.
Para os portugueses isto era muito esquisito, pois só comiam tomates cozinhados.[14]
Há quem diga (?) que foram os responsáveis para que portugueses começassem a comer tomate cru, temperado com azeite e vinagre.
Para os bóeres, era insólito, ver na rua uma vaca presa por cordas, a vender o leite ordenhado à porta do cliente, alegadamente para garantir que era fresco.
Este e outros problemas de higiene, saúde e salubridade públicas começavam a preocupar as autoridades, tendo a Câmara Municipal aprovado uma postura tendente especificamente a impedir a divagação de cães pelas ruas, outra condicionando o estabelecimento de cavalgaduras na vila e outra ainda impondo uma fiscalização rigorosa de carnes verdes para abastecimento no Concelho, o que passava pela construção de um matadouro municipal para suprir as insuficiências do matadouro do Hospital, aliás menos controlado.
A alimentação constituía a principal despesa do português, em média 60% do salário. Os pobres alimentavam-se à base de pão grosseiro, hortaliças, legumes, fruta, vinho, leite se tivessem vacas e raramente compravam carne ou peixe, o que deixava admirados os estrangeiros.
Mas laranjas, peras, pêssegos e maçãs, não faltavam no Oeste Português.[15]

Motivo de admiração era a forma de namorar em Portugal, pois os casais não podiam conversar sozinhos, outrossim sob apertada vigilância de familiares ou de pau-de-cabeleira.
A sexualidade, era muito controlada, mesmo reprimida, no Portugal da viragem do século. As meninas somente aceitavam pedidos de namoro com o consentimento dos pais. As relações desenvolviam-se por carta, à janela ou em passeios vigiados, uso contrário ao que os internados estavam habituados a praticar.
Na média burguesia, o rapaz só era autorizado a entrar em casa de uma menina, especialmente de noite, após o noivado. Segundo Ferreira os portugueses casavam-se comparativamente tarde e a mentalidade profundamente católica fez com que o divórcio, introduzido pela República, não se generalizasse durante anos.
O 25 de Abril estava distante…

A comunidade de Caldas da Rainha não descurou a educação das crianças.
Nos Pavilhões do Parque funcionou uma escola criada pelo Comité Nacional Cristão Afrikaans da Holanda, que destacou um professor que havia exercido na República da África do Sul. Este e outros, eram pagos por aquela entidade, incluídos os professores selecionados entre os internados mais instruídos.
A Escola de Caldas da Rainha abriu com um total de 70 alunos. Em setembro de 1901 já havia 95 alunos na escola. Em janeiro de 1902 o total era superior a 100 alunos. O facto de a escola de Caldas da Rainha ter excelentes resultados sob a liderança do professor Den Ouden fez com que refugiados de outros lugares pedissem a transferência para Caldas da Rainha[F2] . Foi o caso de Tomar e Abrantes. O horário escolar era de cinco horas diárias.
Os professores Den Ouden e Malherbe, entendiam que a um mal, não se deve associar outro. A educação é fundamental. O Pastor Hugo subscrevia inteiramente estas opiniões e a escola de Caldas da Rainha foi relativamente modelar.
As crianças aprenderam num curto espaço de tempo a falar português e cantar canções populares e de roda, o que lhes permitiu fazerem amizades e passarem a brincar com as portuguesas.

Uma comissão de senhoras ligadas à igreja e ao bem-fazer, pensou promover uma tourada e uma quermesse em benefício das crianças bóeres, mas ao ter conhecimento de que elas não se encontram na necessidade grave que suponham, resolveu desistir da tourada, efetuando apenas a quermesse, cujo produto fez reverter em benefício do Hospital de Santo Izidoro.
O Cmdt. Mostard, consultado sobre a oportunidade da ação, referiu que não sendo a favor de touradas, não podia dar a sua opinião por lhe ser completamente desconhecida a gente bóer que aqui se encontra, e se assim não acontecesse, teria de confessar que muitos dos bóeres tem no depósito desta vila alimentação superior à que tinham no Transval.[16]
A comissão, mesmo assim, ofereceu no dia de Natal, na sala dos Bombeiros Voluntários, um jantar a 104 crianças.
A sala achava-se vistosamente decorada com colgaduras e folhagem, e no palco viam-se armadas 4 árvores do Natal, por de traz das quais se encontrava a Serenata Artística, que, durante a refeição, executou bonitos números de música.
A refeição constou de sopa de massa, carneiro guisado e assado, esparregado de nabiços, fruta e doce. Depois do jantar, foi lida pelo secretário do comité bóer uma mensagem de agradecimento às senhoras, sendo em seguida cantado pelas crianças e pais presentes, o Hino do Transval e coros natalícios.
A comissão distribuiu medalhas de faiança caldense, trabalho do artista Avelino Belo, discípulo do mestre Rafael Bordalo Pinheiro.
Numa face, regista-se o retrato do Presidente Kruger, as armas das Repúblicas do Transval e Orange, assim como as armas de Portugal e brasão de Caldas da Rainha. No reverso, encontram-se gravados os nomes das senhoras da comissão.[17]Medalhas semelhantes (embora já sem os nomes das senhoras) foram produzidas para o que o valor obtido com a venda revertesse a favor de bóeres carenciados. Alguns exemplares chegaram aos nossos dias.

Se os protestantes/calvinistas nada tinham a opor aos jogos do críquete ou rugby (football), já a participação nas touradas encontrava-se vedada, pois era chocante ver como os bois eram tão maltratados.
Nos princípios do século XX, em Portugal não se questionava, nem academicamente, a existência de touradas sem bandarilhas de ferro espetadas no dorso, alegadamente em defesa dos direitos dos animais. Os protestantes/calvinistas, encaravam a tauromaquia, não como uma questão de gosto, mas civilizacional.  Os portugueses contrapunham que tourada sem sangue é a antítese de uma tourada.
Alguns exilados não acataram a proibição. E não terão sido poucos, pois um proeminente português, Vitorino Fróis, fez uma tourada especial na sua propriedade, em São Martinho do Porto, para os oficiais bóeres. Depois, na sua mansão, ofereceu um jantar com orquestra e que terminou com fogo-de-artifício, como registou Ferreira.
Vitorino de Avelar Fróis, residente em Alfeizerão, proprietário da Quinta Nova de S. José, agricultor e criador de gado bravo, foi nos primeiros anos do século XX, um dos mais famosos cavaleiros tauromáquicos portugueses. Pessoa bem relacionada, privava com o Rei D. Carlos que o chegou a visitar mais que uma vez em Alfeizerão e ali fazer piqueniques. Marialva e extravagante, de farto bigode retorcido, pertenceu a uma família de cavaleiros tauromáquicos profissionais, embora seu pai não tivesse atingido idêntica projeção. Foi Presidente da Câmara de Alcobaça entre 2 de janeiro de 1900 e 31 de agosto de 1900.

Em The Boers in Portugal, Darius De Klerk, escreveu que o futebol (referindo-se ao râguebi) era completamente desconhecido em Portugal, pelo menos na província. O público em Alcobaça gostava de ver os bóeres a jogar este novo jogo, mas as suas regras deixaram-no confuso durante muito, muito tempo. Quando os bóeres chegaram, o Parque nas Caldas da Rainha era pouco mais que um terreno desolado, mas em breve começaram a utilizá-lo para jogar a bola. Os locais também nunca tinham ouvido falar de râguebi.[18]
Nos campos de detenção havia jogadores/presos que organizavam e promoviam o râguebi. Em vários campos, formaram-se equipas, com os prisioneiros jogando entre si ou enfrentando mesmo os guardas. 
Uma lenda diz que este desporto surgiu em 1823 a partir de uma jogada irregular de futebol (Football Association), na qual um jogador do Colégio de Rugby (situado na cidade inglesa com o mesmo nome), teria pegado a bola com as mãos e prosseguido até a linha de fundo adversária. Sabe-se que várias formas de jogo com bola existiram pela Europa no século XIX, e que tanto o Rugby Football (o râguebi atual), quanto o Football Association (o futebol atual) tiveram caminhos paralelos, sendo, portanto, dissidências de uma mesma forma de jogar futebol.
De acordo com Floris J.G. van der Merwe do Department of Human Movement Studies University of Stellenbosch-South Africa (que cita Darius De Klerk, in Rugby in the Prisoner-of-War Camps During the Anglo-Boer War of 1899-1902), more than 1,000 men, women and children were interned in Portugal from March 1901. They were housed in six towns, mostly north of Lisbon (van der Merwe, 1995, p. 84). Darius De Klerk, who stayed in Portugal after the war, made the following comments in his book, The Boers in Portugal: Football was quite unheard of in Portugal in those days, at leastinn the provinces. The public in Alcobaca enjoyed watching the Boers play this new game, but the rules had their followers baffled for along, long time (de Klerk, 1985, p. 38) and: When the Boers arrived, it (the park in Caldas de Rainha) was no more than barren ground so it was not long before they were usingit to play some sort of ball game. Of course, the locals had not heardof football in those days (De Klerk, 1985, p. 48).

Entre os exilados reconstituiu-se, de forma natural, a hierarquia bóer.
Alguns foram fazer reparações e fabrico de calçado, encontrando assim um trabalho remunerado. Outros fizeram trabalhos em osso, caixas de cigarros, armações para fotografias, cadeiras, mesas de trabalho em madeira. As ferramentas eram muito raras e um canivete era uma peça importante. As mulheres e raparigas sul-africanas aprenderam com as mulheres portuguesas trabalhos em renda chamados Laços de Peniche/Bilros, Laços Valencianos e toda a espécie de bordados.[19]
As senhoras confecionavam as roupas ou recuperavam-nas, sem a intervenção de portuguesas. Dispensavam costureiras profissionais, por razões económicas e brio pessoal. O corte das suas peças de roupa era muito diferente das portuguesas tal como os materiais normalmente utilizados.

O Forte de Peniche era já encarado, ao que parece, como local de castigo e um refugiado que se excedeu no consumo de vinho e fez desacatos no alojamento dos Pavilhões, foi advertido que, se isso acontecesse novamente, seria transferido para Peniche durante 30 dias. E foi transferido, não obstante, ter prometido não reincidir. Ferreira não refere o que aconteceu após o regresso a Caldas da Rainha e se voltou a prevaricar mais alguma vez.

Muito vinho e barato, era produzido na região de Caldas da Rainha, e por isso as tabernas estavam normalmente cheias. Os bóeres apreciavam vinho, embora o português fosse diferente, pior que o seu entendiam eles. Mas isso não impedia o consumo do vinho português. O vinho sul-africano é bom?
Silvestre Campos, regressado a Portugal ao fim de mais de 30 anos a trabalhar no vinho, explicou (ano de 2018) que a região do mediterrâneo, é uma das melhores do mundo para o cultivo da vinha, pois este clima acaba por ser reproduzido no sul da África do Sul. Os vinhedos do Cabo, onde trabalhou, estão nessa região que conta com um inverno com chuvas e clima amenos, um verão quente e seco. Por isso, as encostas montanhosas são o local ideal para o cultivo de diversas variedades de uvas que se transformam nos vinhos, que reputa incomparáveis. Silvestre Campos recordava com a emoção de quem fez a vida na região do Cabo, que há sempre montanhas na linha do horizonte e que nos últimos anos, as vinhas têm subido dos vales até cotas mais altas e frescas. As vinhas onde trabalhou, ficam no sopé da montanha de Helderberg/ Montanha Clara, no meio da mais importante e famosa região vitivinícola a Stellenbosch. A False Bay, a grande baía da região do Cabo, o golfo entre montanhas, como lhe chamou Bartolomeu Dias, fica a apenas seis quilómetros de distância. Stellenbosch é a segunda colónia europeia mais antiga na África do Sul, após a Cidade do Cabo, e fica na Província do Cabo Ocidental, situada a cerca de 50 km daquela cidade, no sopé das montanhas da Dobra.
de Stellenbosch, que se tornou assim o centro da atividade vinícola sul-africana.

A vinha no Distrito de Leiria, em termos agrícolas era a principal produção e riqueza, dando origem a vinho, vinagre e aguardente. Um letreiro e um garrafão, pendurados por cima da porta, indicavam que era lugar de venda e consumo de bebidas e os Bóeres não se faziam rogados a frequentar a taberna. É verdade que a qualidade média dos vinhos não seria extraordinária e que o lote de vinhos de mesa finos era reduzido. Mas isso, à falta de melhor, não refreava o seu grande apetite.
Ferreira é simpático para com os caldenses, como aliás com os portugueses em geral, e evitando abordar com detalhe as bebedeiras e as rixas do mau vinho cita um refugiado que escreveu nunca ter visto um português bêbado, mas que Bóer tinha visto muitos.[20]

A boa relação com os estrangeiros era expressa, desde logo, pelo facto de terem sido convidados para à festa de Ano Novo de 1902, do Carnaval e os oficiais para a cerimónia solene de abertura da época termal no Hospital Termal, no dia 15 de maio, que se realizou no Salão Nobre da Câmara Municipal. A partir desta data e até ao encerramento do período termal a população de Caldas da Rainha iria triplicar.
Todavia, as Bandas Filarmónicas (a Antiga e a Nova), grupos dramáticos teatrais e musicais, clubes de ginástica, Ciclo-clube Caldense, Bombeiros Voluntários, associações de comerciantes, caixeiros e operários, centros políticos e outros que demonstram o dinamismo da vila encontravam-se de certo modo alheados dos estrangeiros.
De há muito que os caldenses se habituaram, a admirar e a estimar esses homens de uma coragem ciclópica, de um civismo sem igual, que têm assombrado o mundo e angariado as simpatias gerais, lutando como leões em defesa da causa que reputam justa; por isso os nossos patrícios, talvez mais pela amizade que dispensam aos simpáticos emigrados de que propriamente pelos interesses pecuniários que lhes advêm da estada deles aqui, receberam com grande entusiasmo exuberantemente provado na receção que fizeram aos bóeres e nas atenções que lhes têm dispensado desde a sua chegada aqui.[21]

 Como em anos anteriores, o Carnaval decorreu com diversões de gosto diverso.
Os bailes do Club de Recreio e da Convalescença estiveram relativamente animados, vendo-se senhoras mascaradas, o que impressionou alguns estrangeiros, supostamente mais puritanos ou sisudos.
Na noite de segunda-feira gorda foi exibida no Club de Recreio uma interessante dança.
Assim se passou o carnaval de Caldas da Rainha em 1902, sem qualquer facto desagradável.[22]

Os Bóeres/fazendeiros constituíam um grupo relativamente fechado, a que as razões linguísticas e hábitos de vida não eram alheios.
Não consta que tenham trabalhado muito com portugueses ou para portugueses, ainda que na agricultura. A agricultura do Oeste é de minifúndio, familiar, muitas vezes de mera subsistência, diferente da de África de natureza extensiva e irrigada e ao português faltavam condições para contratar pessoal. Além do mais é individualista, por natureza ou tradição.
A África do Sul sempre teve uma forte base agrícola e pecuária, como salientou Silvestre Campos. O clima temperado e a grande superfície de terras férteis, permitem variedade de culturas e abundantes colheitas. As atividades agrícolas variam desde a produção de safras e agricultura mista, nas chuvas de Inverno e no pico do Verão, passando por criação de gado bovino na região do bushveld e de ovinos nas regiões mais áridas.[23]

A impressão dos exilados sobre Portugal e Caldas da Rainha era positiva no geral, sendo dissonante a constatação que havia mendigos a pedir esmola pela rua, com ou sem crianças, exibindo enfermidades ou não, frequentemente à saída da missa ou no cemitério, e que cada um tinha de obter licença, senão era metido na cadeia, como se admirava Ferreira.
Ferreira tem algum fundamento com esta observação. Embora as primeiras disposições legais visando combater ou restringir a mendicidade, a ociosidade e a vadiagem datem de 1375 e posteriormente, tenham sido implantados vários sistemas de repressão, no princípio do século XX, em Portugal, reconhecia-se ao mendigo um lugar nas malhas do sistema social. Nas cidades, a mendicidade era tolerada, senão legitimada, quando praticada de acordo com os regulamentos administrativos. Em 1900, novo código policial reforçou o papel da polícia nesta matéria. Os mendigos tinham de se matricular na divisão da inspeção administrativa da Polícia Civil. Só quem tivesse caderneta e placa a atestar o seu estatuto podia pedir esmola na rua. Em 20 de julho de 1912, a República publicou legislação e iniciou um período mais repressivo da vadiagem e equiparados, embora sem sucesso imediato. Apresentando uma definição de vadio, estendia-a a outros personagens, equiparava-o ao falso mendigo, ao multirrecidivista, isto é, aquele que foi alvo de várias condenações, ao proxeneta ou ao que vivia a expensas de prostituta e ao homossexual, que se entregava a práticas de vícios contranatura. O mendigo assimilado ao vadio, era definido como o maior de dezasseis anos, apto ao trabalho mas rebelde a qualquer espécie de trabalho, que for encontrado a mendigar; o inapto a ganhar a vida pelo trabalho que for encontrado a mendigar em contravenção com os regulamentos administrativos; o que, tendo solicitado fornecimento de trabalho do Estado, cedesse a sua guia a outra pessoa; o que exercesse a mendicidade sob simulação de venda de artigos de comércio, de bilhetes ou cautelas de lotarias, ou da prestação de serviços semelhantes; o mendigo que simulasse enfermidades ou que empregasse ameaças e injúrias e o que explorasse a mendicidade com menores de dezasseis anos ou a praticasse em grupo.

Entre os portugueses, o que mais os impressionava nos bóeres era o tom de pele claro, com sardas, cabelo arruivado, barba por vezes cerrada e a altura maior que a média nacional. Usavam chapéus de abas largas e fumavam cachimbo. Os bóeres, descendentes dos Huguenotes tem uma pele mais escura tal como o cabelo, salienta Laetitia Smit.
Os portugueses surpreendiam-se com o vestuário funcional, a maneira ordenada de viver pois, antes da sua chegada, tinham a ideia de que os bóeres eram gente suja e com maneiras rudes.
A prova de que a estadia em Caldas da Rainha não foi propriamente tormentosa, segundo Ferreira, está no reduzido número de fugas. Apenas cinco fugiram, todos com destino à Holanda onde tinham família para acolhimento. Tirando o facto, naturalmente dramático, de estarem longe da amada Pátria, os refugiados de Caldas da Rainha dispunham de boa qualidade de vida, atento os padrões da época.
Os Bóeres formaram uma orquestra que atuava de vez em quando na Praça da Fruta, cujos elementos usavam bonés brancos, e interpretava o Hino do Transval e o Hino do Vrystaat, o que provocava reações emocionadas e por vezes lágrimas. Um grupo coral que ensaiava duas vezes por semana, interpretava salmos holandeses e peças tradicionais, na véspera de Natal de 1901 fez uma apresentação pública sem especial aceitação da população, que não compreendendo, em nada se identificou com o repertório.
Por essa altura foram recebidas da Holanda roupas e alimentos e as senhoras portuguesas organizaram uma festa para as crianças montando três árvores de Natal, oferta do Comité Holandês Sul-africano em Lisboa.[24]

Ferreira destaca a boa relação que Avelino Belo manteve com os exilados, a ponto de serem de sua autoria, como se referiu, as medalhas em terracota, ostentando de um lado a esfinge do Presidente Paul Kruger e do outro, as armas da República Sul-africana/Transval, do Estado Livre de Orange, de Portugal e de Caldas da Rainha. Belo era um assumido republicano, antibritânico e antigo discípulo de Rafael Bordalo Pinheiro, como esclareceu à RTP/No Rasto dos Bóeres um descendente, a viver em Caldas da Rainha.
Belo fez outras medalhas alusivas à amizade entre portugueses e sul-africanos, bem como a Bilha Bóer, na qual trabalhou durante 38 dias e que fez chegar ao Presidente Kruger, exilado na Europa.[25]
Em 7 de maio do 1900, P. Kruger participou da última sessão no Volksraad/Conselho do Povo e deixou Pretória em 29 de maio. Por várias semanas, ficou escondido até que em outubro, deixou a África do Sul no navio de guerra De Gelderland, enviado pela Rainha Guilhermina, dos Países Baixos a Lourenço Marques. Kruger ficou algum tempo nos Países Baixos, antes de se mudar para Clarens/Suíça, onde morreu a 14 de julho de 1904, recusando-se a voltar a casa após a vitória britânica. Depois da morte, o corpo foi devolvido à África do Sul para um Funeral de Estado e enterrado no Talhão dos Heróis, em Pretória.

A cerâmica desenvolveu-se na região a partir da existência de solos ricos em argila, o que é indicado, por exemplo, na toponímia Bombarral, onde barral /barreiro se refere a local de onde se tira barro.
A primeira fase da cerâmica caldense iniciou-se na década de 1820, com a produção de Maria dos Cacos, caracterizada pela monocromia verde-cobre ou castanho-manganês de peças de tipo utilitário, de gosto popular. Um segundo momento foi marcado, em meados do século, pela renovação de Manuel Cipriano Gomes Mafra, mais tarde conduzida ao seu auge por Rafael Bordalo Pinheiro e discípulos, como foi o caso de Francisco Elias.
Os Bóeres não se interessaram especialmente pela produção de Bordalo Pinheiro, que nunca deu ênfase a temas religiosos, como Presépios, Cristos, etc., o que de certo modo os poderia interessar como cristãos, ao contrário do que acontecia com D. Fernando II (viúvo de Dª. Maria II), tido como apreciador deste artista e da louça caldense em geral. Rafael Bordalo Pinheiro ficou ligado à caricatura e à cerâmica artística, imprimindo-lhes uma qualidade e visibilidade nunca antes atingidas. Frequentador do teatro, foi por aí que começou as publicações dos seus jornais humorísticos, alcançando grande sucesso com alguns, que se tornaram valiosos documentos de estudo e memória pela qualidade do traço, registo e interpretação dos acontecimentos políticos e sociais da época, concretamente o António Maria, Pontos nos ii e A Paródia. Em 1884, iniciou atividade a Fábrica de Faianças nas Caldas, apresentando peças de elevado labor técnico, qualidade artística e criativa, no ramo de azulejos, painéis, potes, centros de mesa, jarros bustos, fontes lavatórios, bilhas, pratos, perfumadores, jarrões e animais agigantados, etc. Também brilhou com figuras populares como o Zé Povinho (representado de diversas formas), a Maria da Paciência, a Ama das Caldas, o Polícia, o Padre Tomando Rapé, o Sacristão de Incensório nas Mãos, e outras.
Em finais do séc. XIX, os principais fabricantes de louça eram Francisco Gomes de Avelar, José Alves Cunha, José de Sousa Liso, e João Coelho César que exportavam para o estrangeiro.[26]
Era procurada em Caldas da Rainha uma fábrica de cerâmica, que Ferreira não identifica, onde havia uma grande imagem da Paixão de Cristo, o que criou uma forte admiração e respeito pela fé dos portugueses.
Em termos industriais, cerâmica é Caldas da Rainha.
Mas Caldas da Rainha não é só cerâmica.
Com o comboio, associado à expectativa de maior número de aquistas, houve que precipitar a reforma do Hospital Termal e organizar um reordenamento urbano da vila.

Há registos que nasceram 18 crianças em Caldas da Rainha entre 1901 e 1902. Uma que nasceu em 10 de fevereiro de 1902, como se referiu foi batizada com o apelido Caldas da Rainha inserido em Jan Harm Wessels, como forma de agradecimento pelos termos em que os pais foram acolhidos.
Para Calvino quer a pessoa que é batizada seja totalmente imersa uma só vez ou três, ou se é apenas aspergida com água, isso é de bem pouca importância. As igrejas devem ter a liberdade de adotar um ou outro modo, em conformidade com a diversidade climática e usos, ainda que seja evidente que o termo batizar significa imergir, e que esta foi a forma observada na Igreja primitiva.
Em Caldas da Rainha, embora não se possa assegurar por falta de referência direta de Ferreira, aquele batismo terá sido por aspersão de água, como admite Silvestre Campos.
Quando faleceu Nicolas Joalinnes Bruyni, de 3 anos, o funeral fez-se segundo o ritual protestante, a criança foi sepultada na parte do cemitério destinada a indivíduos que não seguem a religião católica, foi acompanhado por numerosos refugiados e muitas pessoas da vila que assistiram às cerimónias religiosas que tiveram lugar junto da sepultura.[27]
Apesar de Ferreira registar este detalhe no enterro do anjinho, não dá apontamento dos eventos que se seguiram à sua morte, seguramente de forma diferente que seria se fosse na sua terra, o modo como se apresentou o cadáver à visitação, como o corpo foi preparado, a procissão fúnebre, a forma de enterramento, e alguns cuidados pós-sepultamento.
Ferreira esclarece que este funeral foi acompanhado por Bóeres e Portugueses.

A partida dos exilados foi um momento de pesar para os caldenses.
Tiveram os nossos simpáticos hóspedes a mais calorosa e sentida despedida por parte de todos os caldenses, que assim quiseram significar-lhe a grande consideração e estima a que pelas suas belas qualidades tinham tanto direito. Onde a manifestação tomou proporções verdadeiramente delirante, foi na passagem próxima à ponte que fica a pouca distância da estação e que se achava literalmente cheia de povo, assim como em toda aquela área em volta da ponte, se via uma grande multidão que aclamava frenética e entusiasticamente os bóeres das Caldas. E impossível que os nossos estimáveis hóspedes se possam esquecer, mesmo no decorrer dos anos, das espontâneas e fervorosas manifestações de simpatia pessoal de que foram objeto tanto à entrada como à saída, da risonha vila das Caldas. Em muitos e muitos olhos vimos esses sinais evidentes do mais puro afeto, as lágrimas, sinais que indicam sempre a existência de um belo sentimento, a amizade. Parecia que a toda a gente partia para remotas paragens um ente querido. O que nestes momentos se passou no coração dos bons e hospitaleiros caldenses e dos seus inolvidáveis hóspedes bóeres, não há palavras que o possam descrever. Na estação estava tudo que nas Caldas há de mais distinto em todas as classes e eram todos unânimes em render aos refugiados os maiores elogios pelo seu exemplar comportamento durante quinze meses e meio que estiveram entre nós. Durante este largo período de tempo, não há a registar com a população qualquer incidente desagradável, o que demostra claramente a bela índole de tão estimável povo.[28]
O Comité Bóer, antes da partida, deixou uma mensagem ao responsável pelo depósito caldense, Maj. Cristóvão Ribeiro da Fonseca e ao Cap. de Administração Militar, João Gonçalves Valentim.
As sublimes qualidades que estes cavalheiros evidenciaram nas Caldas granjearam-lhe a estima geral. Tivemos a felicidade de tratar muito de perto com os srs. Major Fonseca e Capitão Valentim, e por isso fomos talvez dos primeiros entre os caldenses, a conhecer os sublimes carateres de Suas Exªs., assim como a proficiência com que eles se desempenhavam a difícil comissão que lhes foi confiada. Dia a dia observamos a maneira notável com que o sr. Major Fonseca comandava o depósito, promovendo com toda a solicitude e carinho o bem-estar dos refugiados, providenciando para que lhes fossem satisfeitas as necessidades mais urgentes, atendendo com toda a bondade as inúmeras pretensões que lhe eram apresentadas, e julgando com fina inteligência e magnifico critério a justiça delas. No Capitão Valentim teve o Sr. Major Fonseca um belo auxiliar e um magnífico companheiro.[29]

Exmº. Senhor.
Antes de partirmos de regresso ao nosso país é nosso dever de gratidão vir testemunhar a Vª. Ex.ª quanto lhe somos gratos pela sábia maneira como dirigiu o Depósito Bóer, desde o dia da nossa chegada até ao presente. Grande é o nosso reconhecimento para com o seu bondoso coração pela maneira fina e delicada que Vª. Exª. empregou para remover as dificuldades que se ofereceram devido ao grande número de mulheres e crianças reunidas neste Depósito. Fica gravado nos nossos corações a maneira hábil e paciente com que Vª. Exª administrou sempre a multidão heterogénea. Igualmente nunca poderemos esquecer a maneira atenciosa e cuidados que Vª. Exª. desde o primeiro dia sempre prestou pessoalmente com a maior minuciosidade dirigindo os serviços do Depósito do que resultou a boa ordem de higiene no mesmo. Igual favor de sincero reconhecimento, tanto os oficiais como nós pessoalmente, somos devedores a Vª. Exª. pela maneira elevada e cortez com que sempre nos tratou.
Ao darmos a Vª. Exª o último adeus queira aceitar os nossos protestos de profundo reconhecimento, pedindo a Deus que lhe conceda uma longa vida não só para o bem-estar do exército que tão dignamente representa, mas também para a sua pátria e para a sua muito amada família.
Pelos bóeres assinamos,
(………………………….)[30]

Como houve poucas fugas, e tendo em nota os que nasceram, deveriam regressar a África, mais bóeres do que os que chegaram, mas alguns, poucos, optaram por ficar na Holanda.
Encontrando-se às ordens dos ingleses, tiveram que indicar para onde queriam regressar, cumpridos alguns pressupostos inquestionáveis. Quando se soube que tinha sido assinada a paz, perpassou um misto de regozijo e receio. Alguns acreditaram que os seus bens, casas ou fazendas, não estavam irremediavelmente perdidos e outros recearam represálias por parte dos britânicos vencedores.
Os alunos da escola de Caldas da Rainha vestiram-se com as cores da Vierkleur, desfraldaram a bandeira e cantaram com os pais o Hino do Transval.[31]
Pouco depois, o governo português concordou em entregar os internados ao governo britânico para que a repatriação pudesse ser finalizada, conforme as convenções internacionais e as imposições deste.[32]
Após a realização do juramento de fidelidade à Coroa Britânica, os internados embarcaram no Bavarian/Baviera e partiram para África. Entre os 752 passageiros encontravam-se seis grávidas para as quais foram feitos arranjos alimentares e acomodações, tendo no caminho nascido nove crianças e falecido uma pessoa, que não foi lançada ao mar pois veio a ser sepultada na Cidade do Cabo, como teve tempo de solicitar.
Os oficiais e antigos funcionários viajaram com conforto na primeira classe. Foi uma viagem agradável porque o mar estava calmo. No convés podiam relaxar, conversar, fazer jogos ou utilizar a piscina. O tratamento durante a viagem foi bom e a comida melhor do que em Portugal.[33]
No final de setembro de 1902, quase todos os que passaram por Portugal já se haviam reunido aos familiares e regressado a África. Graças aos cuidados prestados em Portugal, apenas dezasseis aqui morreram.
Em 1913, o governo da União da África do Sul já tinha um monumento erguido em sua memória no cemitério britânico em Lisboa, como se voltará a referir adiante.



[1]-Carlos Cipriano/ Gazeta das Caldas.
Serra, J. B. in, Caldas da Rainha 1887-1927: expansão e modernidade/Terra de Águas.
Furtado Hipólito, Ricardo Fonseca de Oliveira in O turismo nas Caldas da Rainha do século XIX para o século XX (1875-1936)

[2]-Laetitia Smit.
Círculo das Caldas.
RTP-O Lugar da História-No Rasto dos Bóeres.

[3]-A Rainha Vitória morreu a 22 de janeiro de 1901 com oitenta e um anos, após 63 anos de reinado, sucedendo-lhe Eduardo VII. O seu longo reinado, o maior da história britânica, testemunhou a expansão e solidificação do Império Britânico (Canadá, Austrália, Índia, Bermudas, África e Pacífico Sul), e suscitou um acentuado desenvolvimento industrial e comercial. O funeral assistiu à reunião de todas as cabeças coroadas da Europa, a última antes da I Guerra, entre as quais se encontrava o Rei D. Carlos.

[4]-Círculo das Caldas.

[5]-Ferreira, O. J..
Círculo das Caldas.
[6]-Semana Alcobacense.

[7]-Círculo das Caldas. Este comentário causou uma enorme perplexidade e o seu autor nunca o explicou. Na verdade, houve crime como se apurou.

[8]-Ferreira, O. J..
RTP-O Lugar da História-No Rasto dos Bóeres.

[9]-Os alemães não foram tratados como os Bóeres, obviamente.

[10]-Carolina Henriques Pereira in, A Presença de Refugiados nas Caldas da Rainha Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

[11]-309.000 Reis, cerca de 57 libras e 10 shellins.
600 Reis, cerca de dez shellins.
30 reis, mais ou menos um pen.
Círculo das Caldas.

[12]-Não se percebe o sentido desta afirmação de Ferreira.

[13]-Círculo das Caldas.

[14]- É fantasiosa, esta afirmação de Ferreira.                 

[15]-Maçã de Alcobaça é a denominação da maçã qualificada como IGP, de diversas variedades, um produto dos concelhos do litoral Oeste.
Joaquim Vieira Natividade in, Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça (redição da CAA, com Nota Introdutória de Manuel P. Castelhano e Prefácio de Fleming de Oliveira).
Serra, J. B., in Caldas da Rainha 1887-1927: expansão e modernidade/Terra de Águas.

[16]-Círculo das Caldas. Este comentário de Mostard, é simpático com os portugueses, mas talvez exagerado.

[17]-Círculo das Caldas.
RTP-O Lugar da História-No Rasto dos Bóeres.

[18]-Ferreira, O. J..
Em Alcobaça, inaugurou-se em fevereiro de 1958, o Estádio Municipal. A Terra, segundo a Câmara Municipal, doravante fica dotada de um dos mais belos estádios da província. Cerca de 40 anos antes, o Alcobaça Futebol Clube inaugurara a sede no Palacete Costa Veiga, e um fraco campo de jogos no Cabeço de Deus, onde também se dizia poder praticar atletismo e, eventualmente, râguebi, se houvesse praticantes. Em Caldas da Rainha e Alcobaça, o râguebi nunca teve expressão.
Fleming de Oliveira, in No Tempo de Salazar, Caetano e Outros.  
Floris J. G. van der Merwe invoca o livro de Darius De Klerk The Boers in Portugal/Os Bóeres em Portugal, que aliás não conseguimos encontrar nem na Biblioteca Nacional, embora tenhamos apurado ter sido editado na prestigiada Tipografia Mirandela/Lisboa, que há vários encerrou atividade. O livro foi publicado postumamente em edição da Embaixada da África do Sul, que informa não dispor neste momento de qualquer exemplar.

[19]-Não conseguimos apurar a que Ferreira se referiu sobre Laços Valencianos. Seria Lenços de Valença?
RTP-O Lugar da História-No Rasto dos Bóeres.

[20] T. Kruger envolveu-se numa rixa na Taberna do Zé Manco e, apesar de ter sofrido a perda de dois dentes, foi levado a julgamento, a requerimento do Delegado do Procurador Régio. Defendido pelo Advogado Dr. Joaquim Lopes de Oliveira, com escritório na Praça D. Maria Pia, 14-1º, veio a ser absolvido.


[21]-Círculo das Caldas.

[22]-Círculo das Caldas.
Os dias grandes da vila das Caldas da Rainha eram o 15 de maio, a abertura oficial do Hospital, e o dia 15 de agosto, festa de Nª. Srª. da Assunção, festa religiosa e profana em pleno pico da época balnear. A Convalescença, começou a ser construída apenas no tempo do Marquês de Pombal, vindo a ser concluída e inaugurada em 16 de setembro de 1855, por ocasião das festas de aclamação de D. Pedro V.
Tavares, Mário in, Aspetos do quotidiano caldense no terceiro quartel do século XIX/Terra de Águas.

[23]-O Bushveld é um eco sistema e região de floresta subtropical da África Austral, que recebeu o nome de veld.
Silvestre Campos.

[24]-Ferreira, O. J.
Hino do Vrystaat/Estado Livre de Orange.

[25]-Existe uma réplica da Bilha Bóer num museu de Pretória, salvo erro na antiga Melrose House.

[26]-A fábrica foi fundada em 1884 com a designação Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha.
Serra, J.B. in, Caldas da Rainha1887-1927/Terra de Águas.
[27]-Círculo das Caldas.
Silvestre Campos.

[28] -Círculo das Caldas.

[29]-Círculo das Caldas.

[30]-Círculo das Caldas.

[31] -Ferreira, O. J..
A bandeira da República da África do Sul era a da antiga Zuid Afrikaanse Republie/ZAR, que existiu de 1852 a 1877 e de 1881 a 1902.

[32]-Segundo o Círculo das Caldas, os refugiados foram acompanhados pelo cônsul de Inglaterra, em Moçambique, sr. Mac-Donnell, que os tem tratado com todas as atenções, como é próprio da sua fina educação e distintas qualidades.

[33]-Ferreira, O. J., citando um bóer que tinha estado em Peniche, onde a comida era talvez a pior de todas em termos de qualidade e confeção.






 [U1]eno na


 [F2]Iva os Boer

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