segunda-feira, 16 de maio de 2022

Tempos muito censurados - comentário de Eduardo Rui Serafim

 TEMPOS DE CENSURA


Todos os que publiquem notícias falsas serão punidos com 15 anos de prisão. E o que são notícias falsas? Todas aquelas que falem de guerra ou invasão. Estou naturalmente a referir-me ao actual estado da liberdade de informação na Federação Russa, com incidência nos trágicos acontecimentos que ocorrem na Ucrânia.

Se já sabíamos do grau de liberdade de expressão na Rússia e da relação que o poder político – Putin, bem entendido – estabeleceu com os seus opositores, com o sistemático recurso ao encarceramento e à eliminação física sempre que conveniente, basta acrescentar que o que ali se passa configura o panorama característico das ditaduras que pululam pelo mundo fora e de que a Rússia é hoje exemplo gritante: gritante, porque nos choca e martela os nossos espíritos, gritante, porque faz gritar das mais variadas formas milhões de ucranianos.

Nós, neste momento com 48 anos de democracia, não desconhecemos este quadro de contornos e tintas hipócritas: vivemos outros tantos anos de ditadura, com traumáticas consequências. Entro, assim, de modo mais directo, no tema que aqui nos reúne: o dos tempos muito censurados. A censura pairava de forma consciente ou inconsciente nas nossas mentes, na nossa linguagem de todos os dias; a censura revelava-se como um dos processos mais cínicos de que se servem os regimes totalitários. Um processo cínico porquê? Porque se podia falar, mas não se podia dizer. Esta distinção não é uma subtileza retórica. Tal como hoje, na Rússia, não são autorizadas as palavras ´guerra’ e ‘invasão’, mas tão-só a expressão ‘operação militar especial’, no país de Salazar e Caetano era proibido dizer ‘guerra colonial’, embora se falasse em guerra do Ultramar e em guerra contra os terroristas da Guiné, Angola e Moçambique. Tudo eufemismos: exprimir por palavras suaves realidades duras e cruas ou, dito de outro modo, mascarar os factos.

Em sentido mais estrito, a censura exercia-se sobre os órgãos de comunicação social com um crivo muito severo. A tudo o que era publicado tinha de ser aplicado o carimbo ‘VISADO PELA COMISSÃO DE CENSURA”; depois, na versão pretensamente

primaveril de Marcelo Caetano, essa carga negativa herdada de Salazar foi mitigada em EXAME PRÉVIO, a exemplo da PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que passou a designar-se DGS – Direcção Geral de Segurança. Mais eufemismos.

Por vezes, os instrumentos da repressão tornavam-se, eles próprios, ridículos. Quantas centenas de vezes os órgãos de imprensa, o teatro, o cinema, as editoras, as canções fintaram a censura e os seus inteligentes executantes! Nem sempre impunemente. Ainda há dias, o Presidente da República lembrava um desses episódios: quando era director do semanário Expresso, em 1973, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu um dia que não se cumpririam quaisquer cortes ordenados pela censura. Não tardou o telefonema do director do Exame Prévio a pedir-lhe satisfações, declarando mesmo:

– O sr. dr. está doido. – E justificou, dizendo que o director do semanário não tinhacumprido os 180 cortes assinalados pelo lápis azul.

– Tantos? Eu fiquei com a sensação de que eram uns três ou quatro – respondeu Marcelo Rebelo de Sousa.

As consequências não se fizeram esperar: a partir dali, passou a ser exigida a prova de página, ou seja, o jornal tinha de sujeitar ao Exame Prévio cada página pronta a entrar na rotativa (cf. TSF, 27.04.2022, noticiário das 23h00). Explicava Marcelo Rebelo de Sousa uns anos antes a outro órgão da imprensa: “A sanção de prova de página era muito pesada, porque não era só submeter cada uma das provas a censura; era também a sua maquetagem, os títulos, a inserção, os anúncios, as legendas das fotografias, as fotografias, a própria página que era escolhida… Tudo!…” (JPN, 21.04.2004). 

Assim, havendo inevitavelmente alterações a fazer, tal processo implicava um atraso substancial na saída do Expresso, acontecendo mesmo ser posto em circulação ao meio-dia de sábado em Lisboa, não chegando já aos outros pontos do país no próprio dia, mas na segunda-feira seguinte. Os prejuízos que daí advieram começaram a asfixiar financeiramente o semanário e a sua sobrevivência estava mesmo a ser posta em causa, quando ocorreu um 25 de Abril salvador (cf. JPN, 21.04.2004).

A propósito, se me permitem a recomendação, vale a pena visitar, até 19 de junho, aqui bem perto de nós, no Museu do Vinho, a exposição itinerante do Museu Nacional de Imprensa, intitulada «25 de Abril | Lápis Azul: A Censura no Estado Novo»; numa outra exposição, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, mostram-se «Obras proibidas e censuradas no Estado Novo». Para não me alongar, dos autores ali representados, enumero apenas os de língua portuguesa: Jorge Amado, Natália Correia, Orlando da Costa, Vergílio Ferreira, Cármen de Figueiredo, Daniel Filipe, Tomás da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes, Manuel Teixeira Gomes, Egito Gonçalves, Maria Lamas, Teixeira de Pascoais, José Cardoso Pires, Graciliano Ramos, Alves Redol, Bernardo Santareno, Miguel Torga.

E o escândalo nacional (também referido por Fleming de Oliveira no seu livro) que levou a tribunal Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, qu  ficaram então conhecidas pelas “Três Marias”, por terem publicado as Novas Cartas Portuguesas, obra considerada pornográfica pelo regime e, como tal, merecedora de punição? O crime era tão-somente assumirem-se como mulheres de corpo inteiro e mente esclarecida, insubmissas à superioridade masculina vigente e orgulhosas da sexualidade feminina. A continuação do julgamento tornou-se improcedente com a irrupção do 25 de Abril.

O desfile seria quase interminável. Porém, ao falar de escritores, não posso omitir o nome de António José da Silva, um elo de ligação à outra vertente da obra que aqui nos traz: a Inquisição, a faceta tenebrosa da repressão religiosa que pôs em conluio a coroa portuguesa e a Igreja Católica ao longo de séculos. António José da Silva, “O Judeu”, um dos maiores dramaturgos portugueses, cujas obras incorporavam a sátira, a linguagem do povo e a música. Quem não ouvir falar nas Guerras de Alecrim e Manjerona? António José da Silva, acusado de práticas judaizantes, morreu aos 34 anos, garrotado e depois queimado em auto-de-fé, em Outubro de 1739.

Regresso ao Estado Novo para me situar num episódio local que vem relatado em Tempos muito censurados (p. 153). Passo a citar: «Nestas eleições [em que se defrontavam as candidaturas de Norton de Matos e Óscar Carmona], realizadas no domingo 13 de fevereiro de 1949, alguns cidadãos – não muitos aliás – estiveram presentes em assembleias de voto do Concelho de Alcobaça a fiscalizarem as urnas em nome da candidatura de Norton de Matos, embora soubessem que não impediam totalmente a viciação do escrutínio. Entre eles, encontrava-se Eurico Granada, figura popular e reconhecido oposicionista. A certa altura, a GNR foi detê-lo e conduziu-o para o posto da PSP. Outras detenções também ocorreram noutras assembleias de voto, e cerca de 30 pessoas, pelo simples motivo de serem da oposição, foram levadas para o mesmo local, apesar de exercerem um direito elementar. Pouco depois chegou a Alcobaça uma camioneta com a finalidade de os transportar para o Governo Civil, para serem interrogados pela PIDE cuja delegação funcionava junto deste, bem como os respetivos calabouços. Conhecidas as ocorrências o povo reagiu, os sinos das igrejas das localidades onde ocorreram detenções tocaram a rebate e muitos, incluindo o pessoal dos estabelecimentos comerciais a funcionar – na altura abertos ao domingo – deslocaram-se para junto dos Paços do Concelho, em cujo edifício no 2º andar se encontrava o Posto da PSP, a fim de pressionarem as autoridades no sentido de não serem levados para Leiria. Entre esses populares, destacaram-se as aguerridas operárias – vulgo fabricantas – da Companhia de Fiação e Tecidos de Alcobaça, pelo que perante a pressão popular e a ameaça de tocarem os sinos do Mosteiro, os detidos vieram a ser libertados.»

O livro de Fleming de Oliveira tem esta grande virtude: a de pôr em diálogo os grandes acontecimentos com as vicissitudes mais próximas de nós, aquelas que condicionaram o dia-a-dia do cidadão comum em tempos muito opressivos, o que transforma esta obra num testemunho riquíssimo para memória futura.












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