sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Rui Rasquilho – narrativa curricular parcial-

 

Rui Rasquilho

– narrativa curricular parcial-

 

Esta coisa dos currículos faz parte da curiosidade de quem tem o desejo, evidentemente legítimo, de saber quem somos. Trata-se de saber da nossa carreira, do nosso percurso.

Mas como currículo, no dicionário, também pode ser ‘caminho’, ‘atalho’ ou até ‘desvio na estrada’, aqui está a estrada!

Não vou seguir a cronologia habitual, porque ela se processa num quadro árido. Escolhi acontecimentos, alguns com datas, outros sem elas, uma narrativa necessariamente incompleta, aliás até podia ser outra.

As reflexões com que termino fazem parte do meu olhar sobre o lado sombrio da estrada.

 

Como muitos, depois de nascer batizaram-me. A curiosidade deste acontecimento é a de ter sido diretor, entre 2005 e 2008, do Mosteiro de Alcobaça, o mesmo onde na Sala dos Reis me derramaram a água benta dizendo chamar-me Rui. Esta situação aconteceu, segundo a minha mãe, num dia de sol, a 4 de julho de 1945, quatro meses e um dia depois de haver visto a luz em Lisboa na Maternidade Alfredo da Costa. Abria-se a estrada literalmente falando. Teve graça coincidir o batizado e a reforma no mosteiro que foi de Cister. Imparáveis coincidências.

 

Posto isto, a vida deslizou, na escola, no liceu e no começo da universidade. Nunca no mesmo sítio. Estava a cumprir o serviço militar obrigatório quando o Salazar cai da cadeira, e aí casei-me. Foi no dia 14 de setembro de 1968 com a Maria Manuel, a Manezinho como carinhosamente lhe chamava o meu pai e eu Né, em Lisboa após cinco anos de namorico. Com 17anos fui presidente do Interact Club. Hoje sou sócio honorário do Rotary Club de Alcobaça.

O nosso filho nasceu no Uíge, em zona de guerra. Tem hoje 52 anos e fez na barriga da mãe milhares de quilómetros, num louco passeio de carro entre o norte de Angola e o centro de Moçambique, quase sempre por asfalto, de Carmona, no Uíge, até à beira do Zambeze, em Tete. O regresso foi feito por outras estradas, descndo pelo Parque Nacional da Gorongosa.

O Deserto da Namíbia, o Cabo da Boa Esperança, as Quedas Vitória, a Swazilândia, as explorações de diamantes em Kimberley foram referências num bárbaro mundo onde o apartheid sul-africano nos tolheu a paisagem. Tal como em Moçambique, embora aí fosse mais subtil.

 

Em 1971 a guerra colonial ficara para trás, voltámos a Portugal, terminámos, eu e a Né, os cursos interrompidos pela guerra, eu História e ela Farmácia. Deu-se o 25 de Abril, e a partir daí tudo se passou mais velozmente, avançámos então pela estrada da docência.

 

O património associativo, a ADEPA 1978 e o VIII centenário do mosteiro cisterciense de Alcobaça, o primeiro Congresso Internacional para a Defesa do Património foram o desafio seguinte. Em 1979 o primeiro livro, obviamente sobre o Mosteiro e o seu território. Logo depois a construção dos primeiros cursos sobre o Património Cultural, na Faculdade de Letras, para professores do ensino secundário. Dos que o fizeram morreram todos, só falto eu. Mas estou seguro de que lá chegarei saudável.

Hoje há ensino universitário nesta área em todo o país.

 

Em Fevereiro de 1980 iniciou-se, sob a minha presidência, a Campanha Nacional da Defesa do Património. Eu, o Pedro Canavarro e o Jorge Custódio a corrermos o país, a reunir com as autarquias, a conversar e entregar documentação internacional. Sob o lema “O Património é a memória de um povo, proteja-o”, podia ler-se nos jardins dos municípios.

Viajámos, acho que milhares de quilómetros, no Mercedes 240d que acabara de herdar por morte do meu sogro, médico e antigo presidente da Câmara de Porto de Mós, um liberal antes do tempo.

No segundo canal passou em vários episódios o programa “Património, o que é?”. Está disponível no site da RTP. Também neste ano fui Deputado Municipal de Alcobaça, liderando aí o grupo do PS.

 

A Faculdade de Pedagogia da Universidade de Lisboa fora criada na década anterior. Se tem durado a comissão instaladora, eu e o Adragão, linguista da FLUC, teríamos ido para os EUA doutorar-nos em Educação. A realizar-se tal facto, a minha narrativa curricular era outra. O presidente, o Prof. Quadrado, já nos deixou, tal como o Dr. Adragão. O Eng. Lopes da Silva, outro dos três vogais, está de boa saúde. Professor catedrático do IST, andou depois da campanha a semear universidades país além.

No final de oitenta, surge a XVII Exposição do Conselho da Europa, os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento. Fui Comissário Técnico para a imprensa e escolas. Milhares de alunos, até ao encerramento em 1983, vieram de todo o país. Hoje muitos já são avós com estrada própria. Tenho um amigo em Alcobaça que foi guia desses jovens, o Dr. Jorge Prata, professor do Agrupamento de Escolas de Cister.

No final, o Presidente Ramalho Eanes condecorou cinco comissários, liderados pelo Dr. Pedro Canavarro, coadjuvado pelo Dr. João Bettencourt. Coube-me a Ordem de Benemerência no grau de Comendador.

 

Em 29 de Março de 1983, fui membro fundador e Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Comissão Nacional Portuguesa do ICOMOS, organismo consultivo da UNESCO para o Património Mundial Cultural.

 

Depois de 1984, terminada a XVII, vou trabalhar, eu e a Maria Manuel, em Marrocos e no Brasil durante quase vinte anos, nas embaixadas de Rabat e Brasília. O Rui filho frequentou a escola americana e depois, no Minnesota, o Macalester College, onde se licenciou em Ciências Políticas e Antropologia. Em 1995 já estávamos no Brasil, onde comecei a escrever sobretudo poesia e a publicar versos. As conferências intensificaram-se.

Representar o país como Adido, primeiro em Marrocos, e Conselheiro Cultural, depois em Brasília, foi uma responsabilidade esplêndida. Participar na organização de espetáculos de Música, Teatro, Cinema, colóquios de escritores, congressos, bolsas de estudo, e colaborar em projetos de cooperação internacional foi muito estimulante. Um mundo de contactos com colegas estrangeiros, portugueses da diáspora e autoridades locais foi um exercício funcional e uma gratificante experiência sem fim.

 

Começámos a vida no exterior em Marrocos, num país árabe. Fui Adido Cultural junto da embaixada em Rabat, e lembro o Embaixador Lopes Vieira, já no fim de carreira, que nos tratou como filhos e nos proporcionou uma bela integração no espaço diplomático. As universidades foram o campo fértil de trabalho.

Eu e a minha “ajudante”, Maria Manuel, montámos exposições em praticamente todas as Faculdades de Letras das universidades marroquinas. Normalmente, expúnhamos os preciosos painéis da Comissão dos Descobrimentos e depois eu falava para auditórios cheios sobre a Pátria marítima.

Um dia, em Oujda, cidade na fronteira com a Argélia, após falar de Portugal nos séculos XV e XVI no Magrebe, fui convidado por um grupo integrista de estudantes para me converter ao Islão, por via de se ouvir o meu respeito pelo “outro”. Lá me safei, e a Maria Manuel continuou de cabelo ao vento.

 

Mário Soares, em visita a Marrocos, era membro da Academia Real, fez-me Oficial do Infante D. Henrique em 1990. A Gulbenkian restaurou a Torre de Arzila e o Mário Soares, o José Blanco e o Ministro da Cultura marroquino, Benaissa, lá estiveram a participar na inauguração dos trabalhos. Escrevi então um texto memória alusivo ao acontecimento, meteu-se o papel num canudo metálico que foi selado na muralha e esqueci-me de guardar uma cópia! Daqui a uns séculos veremos o que foi escrito. Ainda em Rabat, o rei Mohamed V concedeu-me em 1993 o Ouissam Alaouita no grau de Comendador.

 

No âmbito das relações bilaterais foi muito importante a criação, em Maio de 1994, do Gabinete de Salvaguarda do Património em Mazagão, tendo Portugal contribuído generosamente para o seu equipamento. Eu e o arqueólogo Cláudio Torres tivemos intervenção direta.

Escrevi muitos artigos, participei de muita atividade de aproximação cultural, chegando a ajudar na preparação, em Lisboa, da Semana Cultural de Marrocos em Portugal, a pedido de Rabat, situação rara e reconfortante.

Em 2002 voltámos para Portugal vindos do Brasil, e o Rui, que estava em Timor, regressou em data próxima. Acabámos a casa de Aljubarrota, os meus pais morreram, os dela já haviam cumprido o seu tempo também.

 

No regresso do Brasil demos mais umas aulas, a nossa profissão de origem era o Ensino. Eu ainda fui três anos Diretor do Mosteiro de Alcobaça onde continuei a lutar pelo meu projeto, que começara em 1978, de conservação integrada do Claustro do Rachadouro do mosteiro. No jantar de despedida, que decorreu na Sala dos Monges, o Município atribuiu-me a sua Medalha de Homenagem.

A 19 de Novembro de 2022 abre o Hotel Montebelo no mosteiro, o meu sonho permanente de quatro décadas e o cumprimento de um desejo “profissional”. O Marcelo Presidente, o seu colega Nyusi, de Moçambique, um representante de António Costa e umas centenas de pessoas festejaram com um jantar na antiga sala da Biblioteca. Claro que eu estive lá. Era só o que faltava não estar. O atual Cardeal, Américo Aguiar, abençoou a obra.

 

Continuei a escrever livros, sobre Cister e de poesia, a fazer conferências, e continuo a festejar a reforma há 18 anos. Dou aulas na Universidade Sénior de Alcobaça, sou vogal do Museu do Vinho de Alcobaça e fui presidente do Conselho Geral da Escola Secundária Inês de Castro, primeiro, e, depois, do Agrupamento de Escolas de Cister. Daqui a um ano completo 80 anos de “vida airada”, e a Né menos um.

 

A propósito de viagens, lembro mais duas. Em Marrocos, no início da década de 90, descemos de Tanger para Rabat no lento comboio real. Acompanhávamos Mário Soares que vinha a Marrocos para participar na reunião da Academia Real. A convite do príncipe herdeiro, atual Mohamed VI, almoçámos durante a viagem, numa mesa longa e conversadora. Participaram o encarregado de negócios da embaixada, Rui Félix Alves, e a mulher, dois conselheiros do palácio, o Dr. Mário Soares e obviamente o anfitrião. Se participou mais alguém, não me recordo, mas a viagem foi bem interessante.

 

Outra viagem, inesperada e insólita, foi também com Mário Soares, que foi ao Brasil para receber o grau Honoris Causa, dessa vez em Manaus. Viajámos eu, na qualidade de conselheiro cultural, a Maria Helena Neves, número dois da delegação da União Europeia em Brasília, e, claro está, o Dr. Soares.

Viajámos no Boeing presidencial que ia ao norte cumprir horas de treino. Fernando Henrique ofereceu transporte ao seu amigo Mário e aí fomos os três e a tripulação. Durante quase três horas voámos no grande palácio voador conversando e bebendo sumos – no avião do presidente não há álcool – até à cidade das seringueiras.

A cerimónia académica realizou-se no Teatro da Paz, em Manaus na Amazónia. Teatro de Ópera luxuoso construído no meio da floresta, no século XIX, pelos abastados produtores de borracha. Regressámos a Brasília num vulgar voo comercial três ou quatro dias depois.

 

Durão Barroso transferiu-me para o Brasil, onde nasceu a nossa neta Catarina, em 2000. Por isso, em 1994, atravessámos o Atlântico a caminho de outro posto. Fui Conselheiro Cultural junto da embaixada em Brasília até 2003.

Aí o Instituto Camões nomeou-me Diretor para o Brasil. As instalações são de alta qualidade. Um auditório polivalente com piano de cauda, salas de exposições e um espaço de convívio, o Café Camões, que criei com paixão. Nunca nos faltou público, nem nos colóquios, nem nas mostras, nem nas conferências, nem nos lançamentos de livros e serões de poesia.

Durante quase uma década percorri o Brasil trabalhando quer nas universidades quer junto das importantes associações culturais portuguesas, muitas delas tendo-me titulado Sócio Honorário, cujos diplomas guardo com orgulho. Refira-se que alguns deles são de grande beleza gráfica.

O ponto mais alto dos meus quase dez anos no Brasil foram as Comemorações dos 500 anos da Viagem de Cabral, nas quais fui o representante do Governo Português. Falando de tempo, a minha neta Catarina nasceu a 9 de Maio de 2000.

Os espectáculos animados sobre o Padre António Vieira, que chegaram a Portugal, foram um êxito. O jesuíta padre Aleixo lia uma conferência sobre Vieira e eu, com a voz de português, e o embaixador Lauro Moreira, com a voz de brasileiro, habitualmente colocados em púlpitos frontais, líamos excertos dos sermões, incidindo alguns deles sobre a vergonha da escravatura de índios e negros.

A convite de autoridades académicas argentinas, Universidade do Nordeste, falei, pasme-se, para mais de mil professores no Domo de Resistência no Chaco. Falei, em castelhano, cerca de uma hora sobre o Ensino em Portugal após o 25 de Abril, com tradução feita pelo meu colega da Embaixada Argentina em Brasília.

 

Já em Lisboa, em 2003, fui condecorado pelo Governo Brasileiro de Lula com a Ordem de Mérito Educativo do Brasil no grau de Grande Oficial. As insígnias foram--me entregues na Embaixada em Lisboa pelo Ministro da Educação do Brasil. Vários estados e organizações atribuíram-me láureas e condecorações. Refiro apenas as comendas da Ordem de Mérito Cultural do Distrito Federal e a de Mérito de Brasília. Também vários Clubes Rotários brasileiros me distinguiram.

 

Ingressei no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal como Sócio Efectivo – cadeira n.º 16 – e Correspondente do Instituto Geográfico e Genealógico de Sorocaba, do Instituto Geográfico e Histórico de Salvador, e ainda da Academia Brasileira de Ciências, Artes e Letras de São Paulo. Nessa época abri a delegação do ICA em São Paulo em colaboração com a Casa de Portugal.

 

“O senhor Conselheiro quer tomar um cafezinho?” Eu tomava, mas não via como na pequena avioneta poderia fazê-lo. Voávamos sobre o Pantanal por convite do Governador do Estado, um território lindíssimo e imenso. “Eu tomava...” Então não é que aterrámos numa pequena unidade hoteleira para a nossa bica?

A viagem de ida terminou em Bonito. O Prefeito levou-nos a almoçar no restaurante de um jovem casal de Cascais, acabado de chegar para mudança de vida. À noite fiz uma conferência no espaço português da cidade de Campo Grande, sobre as nossas andanças no mar no século XVI.

No quadro das Comemorações da Viagem de Cabral falei, para além do Brasil, em universidades canadianas, argentinas e chilenas.

 

Para currículo ilustrado já chega.

Está-se bem em Aljubarrota no meio do nosso pinhal de árvores mansas, a produzir pinhões ainda este ano. Entretanto, espero nos próximos dez anos continuar a dar aulas na USALCOA, Universidade Sénior de Alcobaça. A Catarina e o marido, Diogo, que vivem em Londres, visitam-nos todos os anos.

 

Pensei vários dias em ficar por aqui mas, e embora saiba que para nada serve, quero lembrar três grandes conflitos em curso. O Sudão, Gaza e a Ucrânia. Virão mais, é a nossa forma. Precisamos desesperadamente dos mortos para dar sentido à vida.

 

Nota: A 3 de Dezembro há notícia de milhares de mortos no sul de Gaza. Os russos estão a recuperar território, os mortos atingem números impensáveis no Sudão, além da guerra é a fome que trucida o povo.

 

Para terminar este alinhavo de vida não resisto a citar uma reflexão do general William Sherman, que a 19 de Junho de 1879, na Academia Militar do Michigan, dizia: “Estou cansado e farto da guerra. A glória da guerra não é senão uma quimera. A guerra é o inferno.”




 

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