terça-feira, 6 de janeiro de 2009

NÓS, OS JURISTAS ROMÂNTICOS

Fleming de Oliveira

.Por conviver, lado a lado, com os lados melhor e pior das pessoas, a advocacia é uma actividade que muito toca os que a exercem. O privilégio de comunicar directamente, ouvir as queixas, aconselhar e até dar palavras de esperança, transforma o Advogado num observador excepcional e experiente.
Quem não percorreu este percurso, que assume especial relevância fora dos grandes centros urbanos, dificilmente compreende a magia de perceber algumas complexas reacções humanas.
É essa condição que tem conferido à advocacia, ao longo da História, a dignidade de comunicação, em muitos casos com a complacência, se não mesmo com oposição do poder autoritário, que nunca consegue retirar o lado sombrio da sua postura política.
Quando se diz que a vida de advogado não é fácil, não existe exagero, nem presunção contida. Os que voluntária e conscientemente optaram pela advocacia, como foi o meu caso (mais na barra) e do N.G. (mais consultiva), devem estar preparados para uma vida de espinhos, no meio de incompreensão, os maus modos ou a impertinência de outros agentes. Se fossemos todos funcionários públicos, haveria justiça N.G.? Sempre entendi que a advocacia é bom comportamento, civilização e ética, pelo que tive o cuidado de jamais subestimar ou desprezar o saber de um colega no exercício da profissão. Mas vou notando, com desencanto, o número de profissionais do foro sem princípios, que esquecem regras basilares decorrentes do Estatuto. Com esses sim, tenho dificuldade em manter-me civilizado.
Estou convencido que a aprendizagem de histórias extraordinárias, recolhidas no recato de um gabinete onde o pormenor é decisivo, contribui para desenvolver o pendor literário de alguns juristas, senhores de uma prosa e estilo literário de correcção ímpar. O advogado, que se preze, é o exemplo acabado de quem precisa de saber manejar a caneta, agora o computador, para fazer valer as suas ideias, tal como os princípios que norteiam o Estado de Direito Democrático. Com essa arma poderosa, num pulso forte e com uma boa carga, como acontecia com a velha BIC, muito pode o jurista fazer pelo País. Desenvolver um bom combate, pode começar por ser capaz de manejar bem, muito bem mesmo, a caneta no dia a dia. Brincando com este ideia, diria parafraseando um amigo meu da escola de Coimbra, que os advogados deveriam ter direito a porte e uso de caneta
Quando há cerca de 30 anos regressei da Guiné e iniciei a advocacia em Alcobaça, no escritório do Dr. Magalhães, conheci um colega muito bem disposto e brejeiro da Nazaré, que me sintetizou o que era ser advogado de província. Registei e agora, com a devida vénia, vou invocá-lo.
-Trabalhamos em horários estranhos;
-Pagam-nos para fazer o cliente feliz;
-O nosso trabalho vai para além do expediente;
-Somos pagos para realizar as ideias do cliente;
-Os nossos amigos distanciam-se e só andamos com outros iguais;
-Quando vamos ao encontro do cliente, temos que estar sempre apresentáveis;
-Mas quando regressamos, parecemos saídos do inferno;
-O cliente quer pagar-nos sempre menos do que deve e espera que façamos maravilhas;
-Se as coisas dão errado, a culpa é sempre nossa;
-Todos os dias, olhamos para o espelho e pensamos
NÃO VOU PASSAR O RESTO DA VIDA FAZER ISTO;
Em suma, somos como as (…), profissão duvidosa, alternativa ou o que lhe quiserem chamar.
A minha experiência profissional, ajudou-me a entender que o conceito de cultura, vai muito para além do do agricultor (cultivo e amanho da terra), sem desprimor para este.
O conhecimento da História, foi assunto particularmente exigente na formação dos estudantes do meu tempo e depois dos profissionais do foro.
Os românticos e a nova burguesia esclarecida, juristas incluídos, viveram activamente, nestes últimos dois séculos, os movimentos revolucionários, nos quais deram vazão ao espírito militante e aventureiro.
Em França, as revoluções do século XIX, contaram com o apoio de escritores e juristas.
Em Portugal, o movimento iniciado em 1820 e prosseguido pelas lutas liberais, opôs a burguesia progressista, com muitos juristas da Escola de Coimbra, à aristocracia conservadora, imobilista e passadista.
Foi neste terreno que germinou o espírito do romantismo, sendo Garrett e Herculano, como outros exilados, pioneiros e expoentes combatentes da liberdade. O romantismo foi, no gosto pela aventura e novidade, uma época de exageros que cultivou o lado sombrio da vida, ao qual os seus intérpretes deram corpo a muita obra. O romantismo medrou com o desenvolvimento económico e político e terminou com a grande revolução industrial, que após meados do século XIX transformou, a Europa.
O optimismo das convicções revolucionárias dos românticos, não acompanhou o progresso das ciências e das mudanças sociais, mais preocupados com o conhecimento real da natureza e o esclarecimento da verdade.
O lirismo que inspirara e dera forma ao romantismo na sua concepção melancólico-sombria da vida, desvaneceu-se por lhe faltar um suporte e um objectivo, embora admita que, no conjunto, a obra seja formalmente correcta e bela.
Já me tenho interrogado, o que me leva a escrever, ainda que em privado, nalguns casos, de alma nua e exposta. Quantas vezes me fogem as palavras por entre os dedos no teclado, não tenho mão nelas, precipitadas, sem sentido. Bem gostava de saber desta ofício de escrita, mas quando muito cumpro o ritual de as alinhar, na busca de um sentido para o pensamento. Ser escritor, não é, nem pode ser isto. Tem de ser alguma coisa de maior, que permita ao leitor entender a realidade para além da simples aparência, um acertar de coordenadas que permitam levar cabo a vida de um modo escorreito ou pelo menos sem escolhos de maior, navegar sem percalços apesar de não saber o porto do destino. No frio de uma audácia tímida, envergonhada aceito, vou escrevendo, os dedos no computador não param, como o pensamento. Apago, ao que suponho, serem preconceitos e receios, os que a sociedade, a família?, nos martela dia a dia, na sala de estar, no café ou na televisão. O tempo passa fluído, como se fosse um momento só. Sem que se espere, ou o espere, o momento seguinte surge e com ele formas, nem sempre perceptíveis. Vou escrevendo como sei, devagar, tentando saborear os impulsos de conseguir obter, um dia, uma conclusão definitiva, qual alquimia!!!, elaborando-os mais, profusa e insaciadamente.
Não sou obviamente um Camões, nem um psicanalista, mas apelo intimamente a umas musas que gostaria de conhecer que me permitiriam abordar de forma mais interessante figuras, quadros, emoções, esboços, imagens mais ou menos definidas. Li uma vez que as pessoas mais insuportáveis são os homens que se acham geniais e as mulheres que se acham irresistíveis.
Assim me vou vestindo de usado, tendo deste modo uma forma de prazer interminável e imprescindível. Afugento o frio e a fome. Acalmo a dor. Canto, como posso, a alegria se a há de viver e ser avô, e da forma possível.
Mas acima de tudo, ouso neste meu momento de escrever, sonhar um pouco. Por isso, é que a escrita é, para mim, uma tentação.
Utilizo a ficção? Claro, porque em parte tem a ver com a minha escrita, quando se prolonga na procura de um contorno, a metáfora e como forma de aceitar o silêncio. E ao aceitar tacitamente algumas regras de convivência e/ou de exclusão. Por isso, nesta escrita, como tenho dito, não se pode procurar, encontrar uma linguagem puramente literal, transparente por ou para si própria, embora se remeta e aproxime de si mesma, onde o mundo e a vida nascem com e para a palavra, numa indeterminação entre ambas. Para aliviar essa carga, sou até capaz de alguns delírios para abrir mundos, iluminar coisas (que exageros meus…!!!), reacender potencialidades antigas.
Como disse, tenho visto algumas coisas de carácter pessoal e profissional no meu escritório, de conteúdo mais ou menos interessante, ético ou até dramático.
Atravesso, neste momento, um deserto? Admito que sim, mas não totalmente estéril.
Não estou, nem quero estar imune à influência dos outros próximos. Se isso fosse possível, extinguiam-se a História e as Heranças, que tanto prezamos. Em Miramar, falava-se por vezes no Senhor de La Palisse, quando o Zico pretendia salientar uma evidência ou uma redundância. Na verdade, correndo esse risco, atrevo-me a concluir definitivamente que somos influenciados pelo que nos rodeia. André Malraux, que li há anos, e hoje parece um pouco esquecido, escreveu na Condição Humana que são precisos sessenta anos para fazer um homem e quando está pronto para começar a viver, morre.
Falando de pessoas notáveis, e eu aprecio especialmente os das letras, não posso esquecer Sócrates, o filósofo e sábio grego da douta ignorância que considerava que sem esta, o espírito nunca poderia dar à luz. Daí que a dúvida e a disponibilidade para ela, fossem já uma forma superior de sabedoria. Só sei que nada sei!!! Que maior lição de humildade intelectual se pode ainda hoje achar?
A minha reverência ante a lei é antiga, prende-se a algumas recordações da juventude, mesmo anteriores à frequência da Universidade de Coimbra, no tempo em que no Porto ia em Cedofeita, ao então chamado Tribunal de Polícia, assistir a julgamentos e pedir ao bom juíz Quintela uma defesa oficiosa.
Sonhava ser um dia advogado no Porto, sei lá, num escritório como o do Sá Carneiro, na Rua da Picaria.
O chamariz dos advogados que, como o Araújo de Barros, actuavam em casos mediáticos era-me tão irresistível, quanto o anúncio de que a Callas iria de novo cantar ópera no Teatro S. João.
Desde o momento em que pela primeira vez entrei no Palácio da Justiça (cível) do Porto, o chão frio de mármore, os frescos das paredes, as pastas e as togas que pareciam esvoaçar com frenesim abaixo e acima nos corredores e elevadores, presas às mãos dos advogados, o cheiro característico dos livros, papéis e tinta preta que emanava da Secretaria, as placas nos ângulos das paredes, indicando as Salas de Audiências e gabinetes dos magistrados, era magicamente belo e excitante. Via o escrivão a carimbar papéis, cosendo os processos com uma agulha grossa e grande, enquanto muitos outros (ao tempo eram só homens) se encontravam agarrados a uma máquina de escrever, batendo nas teclas com nítida dificuldade e algo dramaticamente.
Li, muitas vezes, descrições do encantamento de crianças que vão ao circo pela primeira vez. Acredito que as suas sensações não se comparam ao arrebatamento que sentia há mais de 40 anos ao caminhar no interior do Tribunal Cível, com o Zico, para falar com o pai do Dr. Miguel Veiga, como muito mais tarde no Foro de S. Paulo, com o saudoso Dr. A. Gonçalves, ou no Palácio da Justiça, em Paris com o L.M.F. ou a A..
No entanto, o mais excitante para mim era a pesada porta que se abria para a Sala dos Julgamentos. Era como um portal místico. Passada a porta, contemplava o advogado cuja fama me lavava até lá e já identificava, pelo menos de vista. Por vezes, parecia aos olhos do leigo, não estar a fazer nada, apenas sentado indolentemente na cadeira. Para mim, no entanto, percebia (supunha perceber) que sua imobilidade era aparente, física, deveria estar mergulhando nos seus planos de acção.
Outras vezes, uma testemunha estava a ser questionada. Observava os demais advogados, também circunspectos, aparentemente indolentes ou distraídos, acompanhava a reacção ao depoimento prestado, via um advogado erguer-se (como que acordar) de repente, talvez, para fazer uma objecção, a boca do juiz a movimentar-se, o advogado a sentar-se de novo.
Às vezes, minha visita coincidia com as alegações, talvez o momento mais empolgante. Adorava ver o advogado a falar de pé na bancada no melhor estilo, óculos na ponta do nariz, o queixo a mover-se, gesticular, empunhando papéis ou uma caneta, via-o respirar fundo, aparentemente a sucumbir ao império da emoção da causa. Quase podia adivinhar algumas palavras que iria dizer, mesmo não conhecendo a causa em discussão. Quando o juiz se inclinava para a frente e redobrava de atenção, sentia que o advogado estava a desenvolver uma argumentação persuasiva. Ao invés quando via os demais intervenientes sentados, à vontade, mostrando desinteresse ou a bocejar (sem ser por razões tácticas), compreendia que o meu advogado não estava em situação fácil.
Quando ousava ainda em jovem, entrar na Grande Sala dos Actos/Julgamentos, tentava guiar-me por anteriores impressões, as palavras ouvidas pareciam-me ainda pairar no espaço. Tudo aquilo era o símbolo de uma prece, como se eu estivesse de joelhos. Algum dia, estava certo disso, eu abriria aquelas portas, entraria na Sala não como jovem, mas como advogado feito, participando da mais alta função social, a Administração da Justiça.
Realizei parcialmente meu sonho, embora não no Porto. Abri as portas de muitos de Tribunais no País, mas a excitação jamais se finou. O desafio era sempre novo. A luta sempre intensa. A surpresa estva presente.
O julgamento era mais que a ruidosa excitação de um combate, mas o palco onde as palavras são armas e a inteligência o principal instrumento de defesa e ataque.
É a busca da verdade. Diógenes, com sua lanterna, seria um bom substituto para o símbolo cego da Justiça. A tarefa do advogado consiste na reconstrução dos acontecimentos passados, aos quais acrescenta fatos persuasivos a favor de seu cliente. Age como o arqueólogo, que precisa pesquisar a exumar velhas provas da verdade. Como pode saber onde procurar e o que procurar? Este é o supremo teste preparatório pois a preparação adequada de um caso a ser levado a julgamento é a chave para o sucesso. O homem estúpido deverá fazer como se fosse inteligente, a inteligente como se fosse talentoso a o talentoso como se fosse genial.
Alguns momentos, que antecediam a sessão de julgamento, eram nervosos, angustiosos e muitas vezes, não obstante a tarimba de uns anos, me senti como se fosse a primeira vez.
Na manhã do dia em que começa o julgamento, todos os indícios são de insuportável trepidação. As mãos ficam pegajosas, o suor acumula-se por sobre as sobrancelhas, as faces ora se mostram pálidas, ora coradas, os olhos avermelham-se, as vozes tomam-se agudas, há um frequente bocejar, os lábios ficam secos e as visitas ao banheiro são frequentes.
É o momento em que o advogado, embora sofra dos mesmos sintomas, embora também seu pulso se acelere, deve incutir confiança ao exército hesitante ao seu redor. Nessas ocasiões, cumprimento os clientes e as testemunhas efusiva, cordial e jovialmente, incutindo-lhes tranquilidade e confiança. Devem contagiar-se com minha serenidade. Agarram-se a isso e daí retiram forças. Em todos os instantes, o advogado deve ser a central de energia, distribuindo-a por todos. Quando consegue criar em torno dele uma atmosfera de segurança, é como se proporcionasse oxigénio, que alivia a respiração atormentada.
Em consequência, também o Júri é envolvido e influenciado pelo ar confiante do advogado e o efeito psicológico por isto causado sobre as convicções é incalculável.
Sempre fui de opinião e a transmiti a colegas mais novos, nomeadamente ao N.G., que um dos erros mais frequentes nos interrogatórios, constitui a tentativa de espremer a testemunha, em busca de uma afirmação valiosa para o cliente. É preciso que haja discernimento para se avaliar se a vantagem supera a risco.
Já vi, uma testemunha desferir um golpe arrasador, que poderia ser evitado, caso o advogado não se apegasse demasiado à tentativa de obter uma afirmação de valor secundário.
Dentro do nosso sistema da livre apreciação da prova, a inquirição de testemunha pode ser a chave do sucesso da causa pois, há um tempo psicológico para o advogado aventurar-se com uma testemunha.
Uma pergunta dirigida no momento em que a resistência da testemunha hostil é vigorosa, pode ser ao fim e ao cabo ineficiente. A mesma pergunta lançada no momento em que a testemunha estiver confusa, e com o moral baixo, poderá provocar uma confissão. O advogado deve ter sensibilidade para sentir o estado de espírito da testemunha que tem diante de si, e variar a técnica do interrogatório, de acordo com as circunstâncias.
Nunca concordei, nesse sentido, com a estratégia utilizada por certos colegas para reduzir, pelo ridículo, a importância das acusações do queixoso ou a argumentação do acusado, cobrindo-as de observações sarcásticas.
Tal estratégia, além de deontologicamente discutível, está sujeita ao risco de pesados contra-ataques. Quando é possível demonstrar que factos foram desprezados pela defesa ou pela acusação, que brincou levianamente com a verdade, a atitude displicente pode ser relevada como ofensiva. Por isso, os arrazoados espirituosos, que desprezam a prova, têm vida precária.
Senhores Juízes, caros Colegas… Um assassino e um difamador não diferem entre si!!! Ambos são criminosos, embora usem armas diferentes.
Quando um utiliza a pena e a máquina de impressão, para destruir o que um homem possui de mais precioso, isto é a sua reputação, abre oportunidade para que um dos nossos Juízes, em sua sabedoria, dê uma lição a esse homem e a outros que o imitam, condenando-o à indemnização punitiva.
Normalmente durmo bem, o que não quer dizer que lá pela meia-noite não adormeça cansado e acorde ás nove exausto e triste. Lembro-me de ler ou ouvir desde pequeno que, nascemos sós e que quando morremos também ninguém nos acompanha na viagem. Os antigos senhores enterravam-se com os escravos para não irem sozinhos. Por cá ou para lá, fazemos os possíveis por não estar sozinhos, até na morte. Solidão é coisa bem diversa, de que me não queixo, é muito mais que passar dias, noites, semanas sem ninguém ao lado. É mais que constatar que, quando ao fim do dia chegamos a casa, não há ninguém à espera. Felizmente tenho a A. Pode haver espaço na cama de casal, mas mesmo assim tenho sempre alguém que está perto e presente com carinho e atenção, que não deixa chorar, nem fugir.
Eu leio e escrevo, sofregamente por vezes, e mesmo quando parece que tenho o coração fechado, ele passa de repente a bombear mais forte no peito cansado, o que me permite, desfolhar o passado, como se fosse um livro aonde não existe mágoa, nem tristeza. Mas se houver resquícios de mágoa, penitencio-me em silêncio, pois não vale a pena incomodar os outros, mais que o necessário.
Gostaria de poder voltar a certos dias de amena primavera coimbrã, a A. e eu cada um com o seu livro a namorar no Parque, os dois com sonhos semelhantes. Sendo isso uma quimera, quero ouvi-la, tocar-lhe, senti-la próximo a descansar junto à TV, se possível com alguns mimos de permeio, viver o dia como se soubesse que ainda há muitos pela frente.
Tenho um enorme receio da doença mental, não por desprezar quem sofre mas, principalmente por ter a ideia que a raia que nos separa da insanidade, não é tão forte ou sólida como as vezes queremos acreditar.
Ultimamente tenho tido informações detalhadas sobre um amigo e colega dos tempos da Faculdade, cujo estado de sanidade muito deteriorado, se tem vindo a agravar irremediavelmente e, como tal determinou o seu internamento, de onde possivelmente não mais sairá.
Depois de muitos anos, em que o meu grupo da Julinha esteve distante, voltou a reunir, em casa de uns e outros. As distâncias separaram-nos fisicamente, uns ficaram no Norte, outros vieram para o Centro e outros fixaram-se no Sul, mas no momento do reencontro, tudo passou a soar como se fosse sempre hoje, um hoje pegado a um ontem incomensurável, onde pelo caminho cabem filhos, netos, profissão, moléstia, uma extensão de lembranças, laços, sentimentos e aventuras em comum. Olhamo-nos um pouco espantados, mas tendo sempre como presente, eterna e consistente, a mesma cumplicidade: Estás mais gordo, careca, ainda não tens barriga, bebes um copo? sais à noite?, etc, etc.
Claro que o tempo e a distância causaram lacunas. Mas nestes reencontros, tudo são proveitos. Não há cerimónias de maior, como poderia haver? Há sempre alguém que mais afoitamente pergunta se, aquele cheirinho que vem da cozinha, é mesmo para nós. Petisca-se devagarinho. Vem logo um(a), bem intencionado(a), sugerir que não haja hoje exageros, nos comes e nos bebes. Temos mais de sessenta e de prestar contas não só à mulher, como aos filhos e aos filhos dos filhos. Encanta-me ver os filhos, cúmplices nestes encontros de jarretas. O N.G. gosta de participar, ver o velho e o novo em uníssono, e releva a aceitação e estima que, depois deste tempo todo, sentimos reciprocamente como amigos e colegas. Ao fim de dois copos, parece a animação ser igual a um festim. As conversas corriqueiras sucedem-se a outras ainda mais corriqueiras, mas são saboreadas como um manjar de marquês, afugentando-se os ares que noutros locais deveriam ser assumidamente doutos, pois a cumplicidade renova-se, como se nunca tivesse sido suspensa.
Assim, sentimos haver o amanhã.
Mas, estas reuniões estão algo comprometidas, porque começam a faltar alguns. Na verdade, assustam-me as manifestações de desequilíbrio ou sofrimento mental, pelos reflexos que têm nos próprios, bem como nos mais próximos.
Admito tentar evitar, mais não seja por defesa própria, os deprimidos, os obsessivos compulsivos, os paranóicos, os bipolares ou mesmo os neuróticos, confessando ser capaz de mudar de passeio, perante alguns casos que conheço, ainda que tão só de simplesmente angustiados, tristes ou falhados. Mas neste caso, isso é impossível. Sei bem que para além do disparado automaticamente tudo vai, tudo está bem, muitas vezes se esconde um enorme sofrimento, incapaz de se traduzir por palavras, pois que existe o risco de se passar a ficar associado a um rótulo difícil de retirar. Ouço aqui ou acolá, queixas de doenças politicamente correctas, como enxaquecas ou úlceras, hipertensão arterial, mas que mesmo para um leigo não são mais que o sintoma de um tipo de angústia que, nem às paredes confesso, e que assusta ao ponto de podermos entrar em pânico, onde nenhum xanax é capaz de valer.
Não admira que, por vezes, a noite nos oprima e esperemos, com o ouvido perto da rádio, longe de uma voz, a segurança que a luz do sol afinal volta sempre a trazer.
Bem gostaria de ser capaz de pôr a mão na consciência, sem esquecer que dentro dela existe uma arrecadação, para onde se mandam um conjunto de vivências amargas, atiradas sem rei nem roque, como tralha para o lixo e supunha esquecidas. Não serão crimes, falsificações, abusos ou outras situações normalmente traumatizantes, mas tão só os desencontros que fazem parte da história da vida. Admito ser esse lixo que povoa sonhos e pesadelos, quando aligeiro a vigilância à arrecadação e que ao cair sobre o peito, me retira o ar.
Trazendo ao consciente esses lixos, bom seria sintetizá-los para que percam o poder de assombrar a vida.
Acontece porém que sendo um ponto de partida, a coragem e a capacidade do auto-conhecimento, não são fáceis de encontrar, tal como recuperar a auto-estima, através de meros e bons propósitos, entre dois pensamentos uns mais animosos, outros mais acabrunhantes. Ao fim deste tempo todo, cheguei definitivamente à conclusão que a vida interior é muito mais complexa do que aquilo que alguma vez fui levado a supor e que, cada um de nós, mesmo assim, só sabe um bocadinho de nada. Nesse sentido, se viver nalguns casos é complicado, ainda mais será viver bem.

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