quarta-feira, 16 de abril de 2014

AS MELHORES MISTURADAS SÃO AS DOS MONTES.
COMIDA DE POBRE?

Fleming de Oliveira

Dizia-se (diz-se?) que as melhores misturadas são as dos Montes, feitas com feijão de sopa, semeado em março nas serradas (chão de hortas ou terrenos de sequeiro), colhido no início do verão e que exalavam um aroma divinal, que vinha da cozinha e chegava até à rua.
Em casa de Joaquim Pereira de Magalhães, de acordo com uma prática que chegou até hoje, punham-se os feijões dentro de um alguidar com água fria, durante cerca de duas horas, para amolecer a casca, a fim de facilitar a cozedura. Depois de demolhados levavam-se   a uma caçarola, para cozer lentamente em água temperada com sal e azeite. Estando o feijão cozido, reduzia-se o puré a cerca de metade, juntando-lhe água, se necessário, tendo em atenção que o puré devia ficar grosso. Levantada a fervura, misturavam-se as couves, previamente cortadas aos bocadinhos e retificava-se o sal e o azeite. Devia deixar-se cozer bem as couves e pronto, siga para a mesa que já é tarde.
Inácio Catarino, conta que as mulheres disputavam entre si os respetivos méritos na arte das misturadas e nos casos em que se deitava pouco azeite (por uma questão de economia), os que passavam na rua, bem o percebiam e diziam jocosa e depreciativamente que cheirava a raposas.

As misturadas era um bom combustível para aguentar o trabalho do dia-a-dia do campo. Com as misturadas, no dia seguinte ou mesmo dois dias depois, faziam-se as papas, um prato suculento e forte, com farinha de milho, cozendo-se as couves, a batata e o feijão que, depois, se acompanhavam com sardinha ou bacalhau.
TI Zé das Tojeiras costumava dizer que pobre come arroz, batata, vegetais, bacalhau, carne de porco e doce uma vez por outra. Resultado, se não morrer empanzinado, cresce com uma saúde de fera. Já o rico come um monte de coisinhas delicadas. O filho de rico, o citadino de Alcobaça, é criado longe do pó da terra, longe dos mosquitos e da lama. É criado a comer apenas papinha fina. Ser pobre, portanto, é melhor para a saúde….
Um rico se passasse a comer por sistema essas delicadezas, ficaria doente, pois tornou-se alérgico às comidas normais. Não é raro encontrar um rural que jamais foi ao um médico. Já os ricos, não saem dos consultórios.

Deolinda, a viúva de Ti Zé, corta ao meio o pão tipo caseiro, retirado de um saco de pano. As metades são colocadas junto do lume para torrar devagarinho e à medida que as postas altas e brancas de bacalhau vão a assar. O cheiro a bacalhau espalha-se pela cozinha. António o sobrinho, oferece-se para ir a casa buscar azeite. É do bom. É caseiro. É melhor que o do supermercado.
Meia hora depois, e após ser virado várias vezes, o bacalhau está no ponto. O pão é regado com muito azeite. Não tem nada a ver com outra coisa. É muito melhor, confessa um conviva.
Deolinda lembra o tempo em que este prato de bacalhau assado era comida de pobre.
Como o pão untado em azeite enche muito, dava para o pessoal aguentar muitas horas sem comer. Hoje é caro e não se pode comprar.

Lurdes Domiciano, que sempre viveu na aldeia, lá para os lados da Ataíja, tem uma tese interessante sobre os méritos da sopa e a comida tradicional portuguesa de que é indefetível adepta.
Sopa é comida de pobre? 
Comida de pobres e dos que recordam a pobreza? Não, se é que nunca, nunca, deixa de o ser, diz a D. Lurdes, que acrescenta, mal de quem sendo pobre ou remediado renega a sopa a pensar que passa por rico.
Enfim, mal dos que deixaram a sopa para tentar apagar as marcas de um passado modesto ou de privações.
D. Lurdes reconhece quanto é valiosa, tal como os filhos que vivem no Luxemburgo. A sopa deve ser comida de rico, de urbano apressado, de remediado, de rural, de trabalhador braçal e ou mesmo de ocioso. É boa para meninos, adultos e idosos. 
A sopa pertence à tradição portuguesa porque sempre foi, e não deixa de ser, boa para a saúde. Por isso se desenvolveu o gosto pela sopa, o prazer em a saborear, cheirar, olhar. É honrada por vários mitos, estórias e contos. Há séculos e séculos que a sopa é um dos maiores monumentos alimentares da cultura mediterrânica e portuguesa.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS


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