segunda-feira, 31 de março de 2014

FRANCELINA CANHA PIEDADE, MOTORISTA PROFISSIONAL (e outras coisas) EM ALCOBAÇA


 
FRANCELINA CANHA PIEDADE, MOTORISTA PROFISSIONAL (e outras coisas)  EM ALCOBAÇA

Fleming de Oliveira



Já pelos anos 20 do século passado, D. Francelina Canha Piedade ganhava a vida, em Alcobaça, a conduzir automóveis de aluguer.
Mas não só.
Segundo os registos conhecidos, terá sido a primeira motorista profissional portuguesa a guiar camionetes de passageiros. E se outros predicados não tivesse, há pelo menos que referir que foi negociante, ciclista, cocheiro, caçadora (atirava muito bem aos coelhos), e ainda mãe de família.
Existe na posse de sua família, e tivemo-lo em nosso poder, o original do alvará, passado pela Câmara Municipal de Alcobaça, (15 de Dezembro de 1922, sendo Presidente Leonardo Taveira Pinto), correspondente à matrícula de cocheiro, que concedeu licença a Francelina Cana Piedade para bolear ou dirigir carros de transportes de pessoas, por aluguer, cumprido que estava o Regulamento para a Polícia e Trânsito de Veículos no Distrito de Leiria.
Segundo a própria D. Francelina (que não cheguei a conhecer), em entrevista publicada em O Século (11 de Setembro de 1973), aliás depois da sua morte que ocorrera em 1972, com 78 anos de idade, antes de lidar com automóveis, tinha tido uma alquilaria, com trens e carros de aluguer. Havia bons fregueses e o negócio não era mau. Mas vieram os automóveis e a coisa começou a fraquejar. Toda a gente preferia os carros sem cavalos.
Como e com quem aprendeu a conduzir automóveis?
Foi o Manuel Moreira, mecânico da Bussing, cá de Alcobaça, que me ensinou. Tinha ido especializar-se à Alemanha. E tinha eu 29 anos!, contou de uma vez D. Francelina. No 1°. de Maio de 1923, comprou um Citröen, de meia mola, por 23 contos de reis, sendo que nessa altura ainda não tinha carta de condução.
Andei a guiar dois anos sem carta. Fiz exame em 1925. O primeiro exame que fiz foi o de ligeiros-amador, em 26 de Maio de 1925 e a minha carta tem o n° 6840, tendo sido o examinador Vasco Calisto (Pai), referiu ela a Vasco Calisto (Filho) que, por sua vez, o veio a escrever no O Século e me  contou. O exame de profissional de pesados fê-lo em 4 de Agosto de 1926, altura em que o examinador lhe perguntou se tinha a certeza que o carro onde circulavam tinha diferencial.
Só se o tivesse perdido pelo caminho, respondeu-lhe de pronto e atrevidamente. A Empresa de Camions de Alcobaça, Ldª, entretanto tinha ido à falência e encontrava-se em fase de liquidação do património, quando a Sociedade de Automóveis Cruz de Cristo Ldª, com sede na Praça do Município, n°60, foi constituída (21 de Janeiro de 1929). Foram seus fundadores além de D. Francelina, José Emílio Raposo de Magalhães, José Ferreira da Silva, Tomás Gonçalves Marques, Francisco Ferreira da Bernarda e Albertino Graça Ferreira. O seu objeto social, era a exploração por aluguer de carros automóveis ligeiros e pesados, o seu comércio, em conjunto com este, o de compra e venda desses veículos e de todos os acessórios que aos mesmos ramos de negócio digam respeito. Tinha um capital social de 300.000$00, o que era significativo na época.
Foi nesta altura que D. Francelina tirou a carta de condução de serviços públicos. A Sociedade de Automóveis Cruz de Cristo, Lda ainda existe embora com características e objeto diferentes, e até há pouco teve sede na Praça 25 de Abril/Alcobaça.
Estabeleci, em (15 de Abril) 1929, as carreiras de camionetas (para transporte de mercadorias) entre o Valado e Alcobaça, fazendo o serviço combinado com a C.P. e entre a Vila e a Benedita, contou D. Francelina. Mais tarde por causa das dificuldades do tempo da guerra, vendi as carreiras ao Capristano. Tive carreiras durante treze anos.
Em meados do ano de 1930, a Cruz de Cristo, Ldª iniciou a carreira de camionetes entre Alpedriz e Alcobaça, numa estrada cujo piso era muito mau, utilizando uma esplêndida Federal, propositadamente adquirida para esse fim. Foi significativo o interesse e a pronta adesão das populações beneficiadas, concretamente de Montes, tendo a Comissão Administrativa da Câmara Municipal felicitado a empresa. Para efetuar em melhores condições a ligação de Alcobaça à C.P, em Valado de Frades, no que era tido como uma carreira fundamental, a Cruz de Cristo Ldª deu início às obras para instalar a sua Central, em breve inaugurada.
Havia uma guerra surda entre as principais transportadoras rodoviárias de Alcobaça, de tal modo que estas iniciativas tiveram resposta de Campos & Trindade, que decidiu não obstante a inflação que se fazia sentir, manter sem alteração de preços as suas carreiras entre Alcobaça e Valado a 1$00, indo buscar e levar a casa todos os clientes que assim o desejem.
Os transportes públicos estavam finalmente em crescimento em Alcobaça, depois de um período de contenção.
Em Agosto de 1930, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal fez saber por edital que a praça de automóveis passa a ser às segundas, terças, quartas e sextas feiras na Praça Afonso Henriques, na parte destinada à venda da fruta e nos restantes dias na Praça do Município, ou seja na antiga Estrada n° 10, que atravessava a dita praça.
Hoje, ninguém se lembra que na Praça da Fruta os carros ficavam com a frente voltada para a praça, colocando-se no local mais aproximado da Estrada Porto-Lisboa. Por sua vez na Praça do Município, os carros dispunham-se de frente para as casas existentes do lado poente, começando a sua arrumação a ser feita em frente da casa de Alberto Neves Hipólito, à direita uns dos outros.
E as camionetes?
O lugar destas era na Praça do Município, na parte da antiga E.N. n° 10, começando a sua arrumação a ser feita em frente da esquina da Casa Natividade e também à direita umas das outras. Para facilitar o acesso dos passageiros, e disciplinar a concorrência, as camionetas de carreira ordinária que eram as da Cruz de Cristo Ldª e a de Campos & Trindade, poderiam estacionar com meia-hora de antecedência nos locais a elas destinados, que eram o mais próximo da Estação Telégrafo-Postal e ao lado da Praça da Fruta, mesmo ao Domingo, desde que estivessem a trabalhar e não prejudicassem o trânsito.

Mulher de negócios, com boné e por vezes de gravata posta, ar encorpado, andava sempre atarefada. Um dia pretendeu competir numa competição automobilística, o Quilómetro Lançado da Reta de Tornada-Caldas da Rainha pois, se sabia guiar tão bem como os outros, também podia ser que fizesse figura a correr. Inscrevi-me, paguei 100 escudos. No fim de contas só assisti à corrida, pois não me deixaram correr, lastimou-se ela a Vasco Calixto (pai). Explicaram-lhe que a corrida era só para homens e amadores...
Considerava-se e bem, a primeira mulher automobilista em Portugal pois não sei de nenhuma senhora que tenha tirado carta de condução quando eu tirei. Foi muito falada, ao tempo, a participação de D. Francelina na IV Volta a Portugal, em automóvel, organizada pelo Club dos 100 à Hora, conduzindo um Volvo, aliás pouco preparado para a competição.
A vida de D. Francelina Canha Piedade, que sempre decorreu em Alcobaça, é curiosa e a seu modo emblemática, pois representa a luta para contornar os acentuados preconceitos e descriminação sexual. Os vizinhos pasmavam-se e criticavam-na, como reconhecia a própria D. Francelina, mas isso pouco importava, o que importava era tratar da sua vida.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



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1 comentário:

Unknown disse...

Bem novinha chegada de Angola, lembro-me bem de D. Francelina, que na época guiava um volvo dos antigos, acastanhado salvo erro. Estacionava muitas vezes na sua gasolineira, na rua de Leiria perto de minha casa e próxima do Hospital da Misericórdia da Alcobaça.

Lila Cardoso