quinta-feira, 27 de março de 2014

MISTURADAS À MODA DE MONTES (não há igual)


 

MISTURADAS À MODA DE MONTES (não há igual)


Fleming de Oliveira


Dizia, quem sabe, que as melhores misturadas eram as dos Montes, feitas com feijão de sopa, semeado em Março nas serradas, chão de hortas ou terrenos de sequeiro, colhido no início do verão e que exalavam um aroma divinal, que vinha da cozinha e chegava até à rua.
Em casa de Joaquim Pereira de Magalhães, de acordo com uma prática que chegou até hoje e por vezes é seguida, punham-se os feijões dentro de um alguidar com água fria, durante cerca de duas horas, para amolecer a casca, a fim de facilitar a cozedura. Depois de demolhados levavam-se os feijões a uma caçarola, para cozer lentamente em água temperada com sal e azeite. Estando o feijão cozido, reduzia-se o puré a cerca de metade, juntando-lhe água, se necessário, tendo em atenção que o puré devia ficar grosso. Levantada a fervura, misturavam-se as couves, previamente cortadas aos bocadinhos e retificava-se o sal e o azeite. Devia deixar-se cozer bem as couves e pronto, siga para a mesa que já é tarde.
Inácio Catarino, contava que as mulheres disputavam entre si os respetivos méritos na arte das misturadas e nos casos em que se deitava pouco azeite (por uma questão de economia), os que passavam na rua, bem o percebiam e diziam jocosa e depreciativamente que cheirava a raposas. As misturadas era um bom combustível para aguentar o trabalho do dia-a-dia do campo. Com as misturadas, no dia seguinte ou mesmo dois dias depois, faziam-se as papas, um prato suculento e forte, com farinha de milho, cozendo-se as couves, a batata e o feijão que, depois, se acompanhavam com sardinha ou bacalhau.
Por sua vez TI Zé costumava dizer que pobre come arroz, batata, vegetais, bacalhau, carne de porco e doce uma vez por outra. Resultado, se não morrer empanzinado, cresce com uma saúde de fera. Já o rico come um monte de coisinhas delicadas. O filho de rico, o citadino de Alcobaça, é criado longe do pó da terra, longe dos mosquitos e da lama. É criado a comer apenas papinha fina. Ser pobre, portanto, é melhor para a saúde…. Um rico se passasse a comer por sistema essas delicadezas, ficaria doente, pois tornou-se alérgico às comidas normais. Não é raro encontrar um rural que jamais foi ao um médico. Não precisa, como vimos em dois casos. Já os ricos, não saem dos consultórios.
Deolinda, a viúva de Ti Zé, corta ao meio o pão tipo caseiro, retirado de um saco de pano. As metades são colocadas junto do lume para torrar devagarinho e à medida que as postas altas e brancas de bacalhau vão a assar. O cheiro a bacalhau espalha-se pela cozinha. O sobrinho António, oferece-se para ir a casa buscar azeite. É do bom. É caseiro. É melhor que este do supermercado. Este prato em tempos mais recuados era feito pela mulher enquanto o homem jornalava na lavoura.
Meia hora depois, e após ser virado várias vezes, o bacalhau está no ponto. O pão é regado com muito azeite. Não tem nada a ver com outra coisa. É muito melhor, confessa um conviva. Deolinda lembra o tempo em que este prato de bacalhau assado era comida de pobre. Como o pão untado em azeite enche muito, dava para o pessoal aguentar muitas horas sem comer. Hoje é caro e não se pode comprar.

D. Lurdes Domiciano, que sempre viveu na aldeia, lá para os lados da Ataíja, tem uma tese interessante sobre os méritos da sopa e a comida tradicional portuguesa de que é indefetível adepta.
Sopa é comida de pobre? 
Comida de pobres e dos que recordam a pobreza? Não, se é que nunca, nunca, deixe de o ser, diz D. Lurdes, que acrescenta, mal de quem sendo pobre ou remediado renega a sopa a pensar que passa por rico.
Enfim, mal dos que deixaram a sopa para tentar apagar as marcas de um passado modesto ou de privações. D. Lurdes reconhece quanto é valiosa, tal como os filhos que vivem no Luxemburgo. A sopa deve ser comida de rico, de urbano apressado, de remediado, de rural, de trabalhador braçal e ou mesmo de ocioso. É boa para meninos, adultos e idosos. 

A sopa pertence à tradição portuguesa porque sempre foi, e não deixa de ser, boa para a saúde. Por isso se desenvolveu o gosto pela sopa, o prazer em a saborear, cheirar, olhar. É honrada por vários mitos, estórias e contos.
Há séculos e séculos que a sopa é um dos maiores monumentos alimentares da cultura mediterrânica e portuguesa.

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