segunda-feira, 31 de março de 2014

HISTÓRIAS DE CAÇA, CAÇADORES E CÃES


 
HISTÓRIAS DE CAÇA, CAÇADORES E CÃES

Fleming de OLiveira


Fernando Gomes Salgueiro tinha um cão considerado de fidelidade máxima. Todavia, durante uma caçada o cão desapareceu. Não voltou para o dono, como era habitual. Apesar de chamado insistentemente, não apareceu. Cansado de esperar e cheio de desgosto, Fernando Gomes resolveu dar a caçada por terminada e voltou para casa sem o animal. No ano seguinte com a abertura da temporada, lá foi caçar no mesmo local do ano anterior. Para sua surpresa, ao lá chegar encontrou o esqueleto do cão, junto aos restos de uma perdiz. Ficou evidente que o animal tinha morrido de fome,  sem comer a caça.
Gomes é do tempo do terreno dito livre (como gosta de frisar), que o era por haver caça e não excesso de caçadores, como também o é já do tempo das coutadas, cuja existência defende.
A caça, admite, tem que ter um dono, como as cabras, o que é de todos não é de ninguém, como o mel dos enxames silvestres que ninguém aproveita.

Mas há quem goste de caçar sozinho, como Luís Pires, dos Carris. Nas suas caçadas de muitos anos, normalmente solitárias, acha agradável não ter obrigação de seguir por aqui ou por ali, poder progredir a bel-prazer, parar ou andar, falar em voz alta com os cães, com as peças de caça, ou com as fragas e as árvores. Não ter que interromper o ato, alimentar-se frugalmente com o que a natureza dá, figos, uvas, maçãs, peras, marmelos, nabos, tomates e outros frutos esquecidos, como laranjas, tangerinas, tudo honestamente roubado sem exageros e sem desrespeitar a propriedade alheia, complementado com o indispensável naco de pão, queijo duro, uma fatia de presunto ou linguiça.

Manuel Deodoro, de Turquel, conta histórias de caça, ocorridas consigo e amigos ao longo de mais de quarenta anos de espingarda nas mãos. Caçava normalmente com um grupo de mais dois ou três colegas, seus vizinhos, muitas vezes no Alentejo.
Alguns metros à frente vejo a pointer marrada de nariz ao alto. Aproximo-me calma e silenciosamente. A pointer vai olhando pelo canto do olho, dá 2 ou 3 passos e estaca de novo. De repente salta uma perdiz e logo ao primeiro tiro acerto em cheio e prego com ela no chão. A pointer arrancou e trouxe-me a ave à mão. Linda, dá cá, faço-lhe uma festa, depois de retiro-lhe a perdiz e dou-lhe a cheirar o troféu. O animal abanou alegremente a cauda, cheio de satisfação.
Nesse dia mais à frente, aconteceu outro lance interessante com Manuel Deodoro. O António Manco, dono de 2 de dois excelentes cães de caça, estava com ele e com outro colega. Um dos cães levantou uma lebre jovem e bastante pequena. O Manco pegou prontamente na arma e preparou-se para lhe desferir um tiro. Mas o Manuel gritou-lhe de imediato: Não atires, a lebre é nova e vamos ver se consegue escapar. Os cães desataram no seu encalço e depois de voltas e quebras de rins, a pequena lebre, já muito cansada, acabou por se deixar agarrar dentro de um vinhedo. Apesar dos gritos do António Manco, os cães não lhe obedeceram e acabaram por cobrar a lebre.

Os caçadores, comos pescadores, têm mil e uma histórias, algumas verdadeiras, outras assim-assim ou até pura ficção, mas que contadas com alma e emoção deixariam as vítimas com lágrimas nos olhos ou com uma revolta maior que a terra queimada num incêndio de verão.
Manuel Deodoro pode afiançar que o seu relato … é a verdade verdadinha, que eu vi com estes olhos que a terra há-de comer, assim Deus me salve a alma, e ainda há por aí muito povo de Turquel que não me deixa mentir.

Seja como for, o nosso leitor perceberá logo quais as narrativas que são histórias e que as histórias podem ser aquilo que dissemos, e até podem começar com o era uma vez a que, no caso, se pode acrescentar nos bons tempos em que havia perdizes. Para Manuel Deodoro, a caça foi sempre, antes de mais, um sério ritual, tal como para outros seus colegas, a subir montes e vales, calcorreando quilómetros, andando a pé, muitas vezes sem outros resultados que não umas tainadas com farnel preparado em casa (isso sim mesmo importante…). Foi esta uma das boas razões para quem caçava como Manuel Deodoro. Juntar-se com amigos, conhecer bonitas paisagens e… comer uns petiscos. Deodoro porém nunca gostou de caçar com padres, pois acredita que estes não dão sorte aos caçadores, por acompanharem os mortos ao cemitério. Contudo, conheceu casos de homens que antes de partirem para a caça se benziam e pediam a bênção para afastar os agouros e azares.
Mas nem só de perdizes vivia a caça de Deodoro e amigos, sendo recorrente a sua afirmação de que perdiz que canta não espera. Durante várias décadas, o coelho bravo foi uma caça se não predileta, pelo menos importante para si e outros caçadores. O coelho bravo era um complemento alimentar de muitas famílias do mundo rural, devido à sua abundância e facilidade de captura.
Nas últimas décadas, temos assistido a um decréscimo acentuado das populações desta espécie, devido essencialmente às alterações do meio, aos predadores, ao esforço de caça e às doenças.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS.


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