quarta-feira, 16 de abril de 2014

SUPERSTIÇÕES? BULHÃO PATO E HERCULANO

 
SUPERSTIÇÕES?
BULHÃO PATO E HERCULANO

Fleming de OLiveira


Bulhão Pato (fevereiro de 1893) escreveu, do Monte da Caparica, este texto delicioso que não resisto em transcrever:
Alexandre Herculano, quando via na sua mesa um pão com o lar para cima, ia muito depressa e voltava-o. Nos primeiros tempos que estive em sua casa notei esta circunstância e olhei um dia para ele interrogativamente.
Ele, sorrindo, respondeu:
–Em criança disseram-me que um pão, posto assim, era sinal de morte na família. Não lhe resisto; a educação é uma grande natureza.
Eu era muito rapaz; o caso repetia-se, sempre que havia pão voltado, e tomei-lhe o hábito. Herculano meteu-me este enguiço.
Outro-e por fatais exemplos!-foi o meu co-irmão, o Dr. José de Avelar, que mo sugeriu.
Em 1860 estávamos no Vale de Santarém, Francisco Maria Bordalo, D. Diogo de Vasconcelos, José de Avelar e eu, em casa de Rebelo da Silva. Um filho da viúva Caldas, que fora meu companheiro no colégio do Quelhas, convidou-nos para jantarmos numa propriedade sua – Malpique. Soberba propriedade.
Num dia deslumbrante, partimos todos, a cavalo, lezíria dentro, para a quinta do nosso hóspede. Nos tapizes de relva os malmequeres e as margaridas; nos trigais tenros e lanciolados as âmbulas purpurinas das papoilas e toda a campina encrespando-se suavemente, como o mar chão e esmeraldino, arrepiado por uma leve aragem. O Tejo, que trasbordava com a invernia, enchendo as valas, alongava os braços prateados pelas ínsuas, sob os salgueiros recarvos e já frondeados. O ar vivo, as planuras do campo, animadas pelas manadas de poldros relinchantes, de novilhos brincões, e de toiros, de cabeça alta, alegres e mansos na sua plena liberdade; o globo rutilante do Sol, iluminando a imaculada esfera, produziam em todos nós o desafogo e bem-estar que, mais do que em parte alguma, se dá no fecundo regaço da natureza! Chegou a hora do jantar, que o nosso estômago acusava já de tardia. Quando íamos sentar-nos à mesa, José de Avelar-tinha ele então os seus vinte e cinco anos e era um raro exemplar de beleza masculina, tão viril como correcta-disse para Bordalo e para mim:
–Olhem que somos treze!...
Bordalo que, apesar de marinheiro, não tinha nenhum desses preconceitos, respondeu, rindo:
–Pois tu acreditas nisso, José?
–Não acredito; mas que queres...
E sentou-se visivelmente perturbado. O jantar correu alegre. O sogro de Rebelo da Silva, fidalgo no berço e no carácter, fazia parte dos convivas. Passava dos sessenta, porém, sadio e robusto; Bordalo não tinha ainda quarenta anos e não acusava lesão alguma. Antes de completo o ano, morria o sogro de Rebelo e, a pouco trecho, Francisco Maria Bordalo.
José de Avelar dizia-me:
–Olha que éramos treze em Malpique!
Deram-se-nos depois mais casos análogos; mas vamos ao derradeiro.
Alexandre Herculano fazia anos a vinte e oito de Março. Nesse dia, os seus amigos mais íntimos iam jantar com ele. Em 1877, na véspera dos anos do mestre, João Pedro da Costa Basto e eu chegámos a Vale de Lobos. No dia seguinte, apareceram Henrique Augusto de Sousa Reis, o marquês de Sabugosa e José de Avelar. Havia mais convivas. A srª D. Mariana Hermínia Meira, mulher de Alexandre Herculano, desde pela manhã que sentira os rebates de uma enxaqueca, a que era atreita, e que lhe não passava senão ao cabo de vinte e quatro horas largas. Próximo ao jantar o ataque aumentava. Uma hora antes de irmos para a mesa, Avelar disse a Herculano:
–Olhe que somos treze!
O mestre, que tinha o enguiço do pão voltado, como homem justo em tudo respeitava os dos outros.
–O pior, meu amigo, é que não vejo agora que volta se lhe dê.
A senhora de um lavrador vizinho do Vale, senhora simpática e íntima da casa acudiu logo:
–Tudo se arranja facilmente. Eu mando à quinta buscar a minha filhita.
Assim se fez. Descemos à casa de jantar. Ainda se não tinha servido a sopa, quando vimos, no rosto da dona da casa, que aumentava o seu mal-estar, e todos, com seu marido, instámos para que se retirasse. Era apenas uma indisposição, que não dava o minimo cuidado, e o jantar principiou alegre; mas o dr. José de Avelar, que se assentara ao pé de mim, disse-me, muito baixinho:
–Sempre ficámos treze!
Alexandre Herculano esteve esplêndido, como nos dias da mocidade. Mais uma vez todos o admirámos comovidos! Demorou-se a palestra até tarde. O marquês de Sabugosa, Sousa Reis e dr. Avelar partiam no comboio da madrugada. João Pedro da Costa Basto e eu ficámos por mais dois dias. No último dia, ao jantar, contei umas anedotas, que deram no goto ao mestre. Riu, do riso franco e prolongado, que lhe era peculiar. Chegou o trem que devia conduzir-nos ao comboio da tarde. Herculano, na melhor disposição de espírito, veio acompanhar-nos até à calebe. Quando o carro partiu, uma nuvem envolveu subitamente o espírito de João Basto, e tal foi ela, que a muito custo conteve as lágrimas.
–Se não fosse-disse ele-a necessidade impreterível de estar amanhã em Lisboa, voltava para trás.
Ruim pancada lhe bateu o coração! Era a última vez que apertava a mão do seu grande amigo! A 13 de Setembro de 1877, sobre as dez horas da noite, Alexandre Herculano expirava na sua casa de Vale de Lobos. Dias antes, José de Avelar-depois de haver observado o enfermo com olho de médico-entrou no gabinete de trabalho do mestre. Deixou-se cair desalentado sobre a cadeira onde Herculano se assentava para escrever e, passando a mão pela testa, nesse momento húmida de suor, disse-me:
-Éramos treze, no dia dos anos dele!
O seu funesto prognóstico resumia-se nessas palavras! De então para cá não tornei a sentar-me a mesa alguma com treze pessoas.

Na dúvida, caros leitores, mais vale prevenir como diz a minha Mulher que não acredita em bruxas…
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS





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