EM QUE
SE FALA DE FADO E DE TOURADA
Fleming de Oliveira
1) -Pessoas há, que ainda alegam que o Fado serviu o Estado Novo.
Não
terá sido bem assim, pois as relações entre ambos não foram totalmente isentas
de conflitos. O regime saído do golpe de 28 de maio teve algumas dificuldades
em dedilhar os acordes sociais do fado. Como é que a ideologia moralista do
regime, enfrentaria uma manifestação de raízes populares, bairristas e que
simultaneamente se desenvolvia com plangências e lamentos em antros de
prostituição, marginalidade e vadiagem?
A
realização de um espetáculo público de fado podia depender de uma autorização
da Comissão da Censura. O Fado sentia-se perseguido e depois da meia-noite,
mesmo no ambiente de taberna, tinha de ser tocado baixinho, de portas fechadas.
Clandestino o Fado?
Com
a profissionalização do Fado, passou a ser necessário ter carteira para se
atuar em público, pelo que se deveriam calar as vozes roucas e avinhadas dos
rufias, reivindicando-se a figura do fadista honesto, trabalhador, embora não
se impedisse que os operários cantassem, desde que ensaiassem na oficina ao som
de martelos e bigorna ou ao raspar da polaina.
Os
puritanos do regime não se pouparam em o denegrir, como por exemplo António
Ferro com epítetos como Fado Relice
Nacional//Miséria Moral e Musical//Canto de Criminais//Elegia de Taberna//
Cárcere e Alcouce//Lenga-lenga Monótona e Reles Dos Tristes e Desgraçados, De
Estúrdios e Brigões.
2)-Para
sobreviver, o Fado teve como muito boa e honrada gente de se submeter ao
Regime, daí a fama injusta de o servir acefalamente, e ser por arrasto um
símbolo da identidade nacional. Nem letras dos fados escapavam ao exame da
Inspeção-geral dos Espetáculos, na procura de encontrar matéria de propaganda
subversiva.
A
fama de serventuário do regime não demorou a se impor como expressão da alma
nacional, elemento aglutinador de ideologias, munido de quadras do teor de Quem diz que o Fado é da Rússia//Concerteza
se enganou//O Fado pertence à súcia//Foi Portugal que o gerou. Ou ainda Há quem diga mal do Fado//Por maldade ou por
rudeza//Mas ele tem conquistado//Toda a cena portuguesa.
O
Fado com o decorrer do tempo haveria de cantar e justificar o seu destino, afinal
porque tudo isto é Fado.
Recorde-se,
por exemplo, o que aconteceu com uma noite de fados marcada para o dia 9 de
dezembro de 1939, no Café Mondego, em Lisboa. As letras haviam sido enviadas
para a Inspeção-geral dos Espetáculos/ Serviço de Censura, a fim de serem
aprovadas, antes da exibição em público. O fado Tejo, Canção da Saudade, da autoria de Aureliano Lima da Silva,
mereceu a aprovação da Censura. Já um outro do mesmo autor, A Guitarra, foi aprovado com cortes. Na primeira quadra,
cantava-se Querida guitarra//Alma
bizarra//És imortal, mas omitia-se o final, a tua história//É a glória de Portugal. A última quadra sofreu também
um corte, cantando-se a guitarra
querida//A tua vida//Está gravada dentro de nós eliminando-se por que és a voz//da pátria amada.
3)
-Diferente destino, teve o Fado
Socialista (de seu nome), escrito em 1927, por Ramada Curto, que seria obviamente proibido. A letra não deixava
ao censor margem para hesitações, já que abordava Gente rica e bem vestida//P’ra quem a vida é fagueira//Olhem qu’existe
outra vida//N’Alfama e na Cascalheira! (…)Mas um dia hão-de descer//Os lobos ao povoado…//Temos o caldo entornado//Vai
ser bonito de ver//Não verá quem não viver//O fogo d’essa fogueira//Soa a hora
derradeira//De quem é feliz agora…//Às mãos da gente que chora.
Mas,
se alguns dos cortes da censura eram óbvios
pelas mensagens consideradas subversivas, outros eram menos compreensíveis. Condescendemos
que se diga que na perspetiva do Regime, o Fado tenha tentado desempenhar uma
função de apaziguamento, de tensões ou mesmo de revolta, ao proporem-se rumos
de vida fatalista, inevitável e conformista, Deixa-os lá//Não te metas na questão//Se o mar ralha com a rocha//Quem
se lixa é o mexilhão.
Foi,
todavia, com alguma naturalidade que correu a notícia de que a censura tinha
intervindo, criando à RTP um problema delicado. A escassos dias do Concurso
Eurovisão, a RTP/Portugal ficava sem representante. Luís Andrade recorda que,
numa derradeira tentativa para retirar o veto que a censura impusera à canção
vencedora, decidiu ir, com expor as suas razões a Ramiro Valadão (Presidente da
RTP). As mais convincentes terão sido o puxar de um gravador e dar som a Tourada. Terminada a passagem, Ramiro
Valadão confessou não ver mal algum em que a canção representasse a RTP mas,
por descargo de consciência, pegou no telefone e entabulou conversa com o
Secretário de Estado, César Moreira Baptista. Desligado o telefone, Valadão
disse a Luís Andrade que por minha ordem
a canção passa.
5)-E
...porque tudo o mais são tretas,
como rezava a letra, Fernando Tordo partiu para Luxemburgo, onde obteve um 10º.
lugar, entre 17 concorrentes.