quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Em que se fala de Fado e de Tourada

 

EM QUE SE FALA DE FADO E DE TOURADA

Fleming de Oliveira




 

1) -Pessoas há, que ainda alegam que o Fado serviu o Estado Novo.

Não terá sido bem assim, pois as relações entre ambos não foram totalmente isentas de conflitos. O regime saído do golpe de 28 de maio teve algumas dificuldades em dedilhar os acordes sociais do fado. Como é que a ideologia moralista do regime, enfrentaria uma manifestação de raízes populares, bairristas e que simultaneamente se desenvolvia com plangências e lamentos em antros de prostituição, marginalidade e vadiagem?


A realização de um espetáculo público de fado podia depender de uma autorização da Comissão da Censura. O Fado sentia-se perseguido e depois da meia-noite, mesmo no ambiente de taberna, tinha de ser tocado baixinho, de portas fechadas. Clandestino o Fado?

Com a profissionalização do Fado, passou a ser necessário ter carteira para se atuar em público, pelo que se deveriam calar as vozes roucas e avinhadas dos rufias, reivindicando-se a figura do fadista honesto, trabalhador, embora não se impedisse que os operários cantassem, desde que ensaiassem na oficina ao som de martelos e bigorna ou ao raspar da polaina.

Os puritanos do regime não se pouparam em o denegrir, como por exemplo António Ferro com epítetos como Fado Relice Nacional//Miséria Moral e Musical//Canto de Criminais//Elegia de Taberna// Cárcere e Alcouce//Lenga-lenga Monótona e Reles Dos Tristes e Desgraçados, De Estúrdios e Brigões.

2)-Para sobreviver, o Fado teve como muito boa e honrada gente de se submeter ao Regime, daí a fama injusta de o servir acefalamente, e ser por arrasto um símbolo da identidade nacional. Nem letras dos fados escapavam ao exame da Inspeção-geral dos Espetáculos, na procura de encontrar matéria de propaganda subversiva.

A fama de serventuário do regime não demorou a se impor como expressão da alma nacional, elemento aglutinador de ideologias, munido de quadras do teor de Quem diz que o Fado é da Rússia//Concerteza se enganou//O Fado pertence à súcia//Foi Portugal que o gerou. Ou ainda Há quem diga mal do Fado//Por maldade ou por rudeza//Mas ele tem conquistado//Toda a cena portuguesa.

O Fado com o decorrer do tempo haveria de cantar e justificar o seu destino, afinal porque tudo isto é Fado.

Recorde-se, por exemplo, o que aconteceu com uma noite de fados marcada para o dia 9 de dezembro de 1939, no Café Mondego, em Lisboa. As letras haviam sido enviadas para a Inspeção-geral dos Espetáculos/ Serviço de Censura, a fim de serem aprovadas, antes da exibição em público. O fado Tejo, Canção da Saudade, da autoria de Aureliano Lima da Silva, mereceu a aprovação da Censura. Já um outro do mesmo autor, A Guitarra, foi aprovado com cortes. Na primeira quadra, cantava-se Querida guitarra//Alma bizarra//És imortal, mas omitia-se o final, a tua história//É a glória de Portugal. A última quadra sofreu também um corte, cantando-se a guitarra querida//A tua vida//Está gravada dentro de nós eliminando-se por que és a voz//da pátria amada.

3) -Diferente destino, teve o Fado Socialista (de seu nome), escrito em 1927, por Ramada Curto, que seria obviamente proibido. A letra não deixava ao censor margem para hesitações, já que abordava Gente rica e bem vestida//P’ra quem a vida é fagueira//Olhem qu’existe outra vida//N’Alfama e na Cascalheira! (…)Mas um dia hão-de descer//Os lobos ao povoado…//Temos o caldo entornado//Vai ser bonito de ver//Não verá quem não viver//O fogo d’essa fogueira//Soa a hora derradeira//De quem é feliz agora…//Às mãos da gente que chora.

Mas, se alguns dos cortes da censura eram óbvios pelas mensagens consideradas subversivas, outros eram menos compreensíveis. Condescendemos que se diga que na perspetiva do Regime, o Fado tenha tentado desempenhar uma função de apaziguamento, de tensões ou mesmo de revolta, ao proporem-se rumos de vida fatalista, inevitável e conformista, Deixa-os lá//Não te metas na questão//Se o mar ralha com a rocha//Quem se lixa é o mexilhão.

4)-O ano de 1973 teve, na área da música ligeira, o que se poderá chamar uma pequena novela, com ação e suspense. Tudo se passou no Festival RTP da Canção, quando Fernando Tordo cantou Tourada, com versos de Ary dos Santos. Não seria esta a canção mais bonita do 10º. Festival TV, mas foi com certeza a mais espetacular. Que uma canção destas tivesse alcançado o primeiro lugar num concurso da televisão portuguesa constituiria, diríamos nós agora, um apelo à reflexão, à avaliação das contradições que o regime manifestava.

Foi, todavia, com alguma naturalidade que correu a notícia de que a censura tinha intervindo, criando à RTP um problema delicado. A escassos dias do Concurso Eurovisão, a RTP/Portugal ficava sem representante. Luís Andrade recorda que, numa derradeira tentativa para retirar o veto que a censura impusera à canção vencedora, decidiu ir, com expor as suas razões a Ramiro Valadão (Presidente da RTP). As mais convincentes terão sido o puxar de um gravador e dar som a Tourada. Terminada a passagem, Ramiro Valadão confessou não ver mal algum em que a canção representasse a RTP mas, por descargo de consciência, pegou no telefone e entabulou conversa com o Secretário de Estado, César Moreira Baptista. Desligado o telefone, Valadão disse a Luís Andrade que por minha ordem a canção passa.

5)-E ...porque tudo o mais são tretas, como rezava a letra, Fernando Tordo partiu para Luxemburgo, onde obteve um 10º. lugar, entre 17 concorrentes.

Um Pescador e Caçador Ambientalista

 UM PESCADOR E CAÇADOR AMBIENTALISTA

 

FLeming de OLiveira

 

 

 

Quem não tem um tio, cunhado, parente ou amigo armado a pescador, que chega cheio de historias, “que estava à beira-rio ou no mar, fiquei horas e horas a lutar com o bicho, mas na hora em que o fui tirar da água, acabou por partir a linha e o deixei escapar com o anzol, e assim não foi possível trazer para casa o maior peixe da minha vida. Nunca mais vi um igual”?

Assim, começam muitas vezes os pescadores antes de contar algo em que só eles viram ou acreditam, “Manel eu vou contar-te uma coisa, em que não vais acreditar”. Como o velho Altino e o ditado, “é tudo história de pescador”, pois que muitas das histórias são temperadas com uma boa dose de exagero. Existe normalmente um detalhe na procura de condimentar o peixe, aumentar seu comprimento ou valorizar o esforço desenvolvido, como dizia o meu amigo Altino. O único pescador de confiança que dizia ter conhecido como não mentiroso, foi o Salvador, da Castanheira, seu companheiro em muitas pescarias e bom conhecedor dos pesqueiros no mar da Nazaré.

Mas os caçadores também são mentirosos ou exagerados. O Altino, também caçador, contou-me um diálogo entre o Antunes e o Bernardes.

- “Ontem, matei dez coelhos e dez perdizes.

-Eu tive também na Nazaré uma sorte muito boa. Pesquei seis robalos e três chernes.

-Também és pescador? Não sabia…

-Não. Também sou mentiroso”.

Gozar a brisa do mar e a paisagem, ver o tempo passar, falar sozinho ou com os colegas, comer uma bucha e beber um trago, eis o que muito motivava um pescador como o Altino, afinal um ritual comum aos da pesca desportiva. “Durante a pesca tenho momentos de lazer, descanso, reflexão e sinto-me mais próximo da natureza”, contava o Altino que nunca se preocupou com grandes filosofias, nem em apanhar peixes grandes ou raros.

Altino foi pessoa com mais de cinco décadas bem dedicadas a pesca desportiva sempre e só de barco (nunca pescou em água doce), tinha boas histórias para contar, aliás como de caça. Mas, a contrariar a crença popular de pescador aldrabão, as suas histórias não eram normalmente exageradas, parece-me. Mais do que a quantidade ou o tamanho dos peixes ou os temporais que o assolaram, como aquele em que no Mar entre Pedras, a ondulação ficou de repente tão grande que não se via terra e se encontrava sozinho no barco, o que por elas perpassava era a preocupação com a preservação ambiental, pois sabia bem que a degradação do meio ambiente e a pesca predatória, afastaram os peixe, “antigamente não faltava pescado”, onde antes eram encontrados com abundância. Além dessa preocupação, as suas histórias revelavam a paixão, que fez com que o que para si era apenas um desporto ou mera diversão (a sua profissão foi a indústria de cerâmica), ganhasse um espaço, como que sagrado se fosse religioso, o que não era o seu caso. Altino era contra os “covos”, gaiolas com grades que se colocam na água, onde os peixes ou polvos entram engodados, e dos quais não saem mais. Antigamente os “covos” tinham que ser levantados até 1 de setembro, sob pena de pesada multa, eventualmente até prisão. Hoje em dia encontram-se impunemente durante todo o ano.