segunda-feira, 31 de março de 2014

BREVE APONTAMENTO SOBRE O HOSPITAL DE ALCOBAÇA

 
BREVE APONTAMENTO SOBRE O HOSPITAL DE ALCOBAÇA

Fleming de Oliveira



Durante o Séc. XIX, os hospitais continuavam vocacionados para a sua função tradicional, de acolhimento dos doentes pobres. O liberalismo não trouxe grandes novidades em termos de organização e funcionamento hospitalar que, no caso português, continuará, em grande parte e até 1974, nas mãos das Misericórdias ou de confrarias menores, neste caso com acesso reservado aos seus membros.
A rede hospitalar portuguesa continuou, no essencial, sob a administração de instituições religiosas ou privadas, e em particular das Misericórdias, em ambos os casos fora da tutela do Estado, não obstante as leis de desamortização, entre as quais a de 1866. Em contrapartida, o triunfo do liberalismo modificou a composição das elites locais e, por conseguinte, a dos corpos sociais das Misericórdias.

Nas vilas e cidades do País, sob o impulso da Regeneração, houve alguma renovação dos equipamentos sanitários das Misericórdias, cuja extensão está, no entanto, por documentar e avaliar, na quase ausência de estudos monográficos. Foram construídos novos hospitais, já de acordo com novos padrões de higiene, respeitando todavia as exigências de uma arquitetura funcional e uma construção de baixo custo. De qualquer modo, as velhas Misericórdias, descapitalizadas e em decadência, não demonstraram capacidade de se abalançar a investimentos de vulto.
Tome-se como exemplo o Hospital de Alcobaça, Bernardino Lopes de Oliveira. A sua inauguração, em 15 de Agosto de 1890, foi pretexto para a edição de um número extraordinário do jornal Correio de Alcobaça, que inseriu uma detalhada informação sobre o novo hospital, assinado por um dos seus médicos mais distintos, Francisco Baptista Zagalo, ele próprio benemérito.
À data, o custo do edifício, que iria substituir o velho Hospital da Misericórdia, somava já 15 contos (15.000$000 réis), uma verba avultada. Dois terços do custo do novo hospital de Alcobaça, foram cobertos por donativos da Câmara Municipal e do Estado (cfr. Zagalo). O resto foi essencialmente complementado pela subscrição pública, popular, já que a Misericórdia alcobacense, só a muito custo poderia dispensar a verba de 1.800$000 réis. Em 1890, cidadãos de Alcobaça liderados por Bernardino Lopes de Oliveira edificaram o hospital. Até lá foram dias de trabalho voluntário, cortejos de oferendas, festas e entusiasmada dedicação que permitiram cumprir um sonho. Inaugurado o hospital, decorreram mais de 120 ininterruptos anos de atividade, muitos alcobacenses dedicaram-lhe uma vida de trabalho (voluntário ou remunerado), doentes, famílias e amigos, por lá passaram ou levaram para casa as angústias, dores e sofrimentos e, também, as indescritíveis alegrias, de após períodos, curtos ou longos, se terem recuperado. A dignidade das pessoas, que hoje e sempre têm de recorrer ao Hospital, deverá permanecer inalterável e o respeito pela sua natureza continua a impor a sua centralidade, na prática da rotina hospitalar, sem grandes pressupostos economicistas por parte do Estado. O Hospital de Alcobaça é administrado pelo Estado há 25 anos, funcionando num edifício pertença da Misericórdia de Alcobaça, que recebe uma renda.

José António Crespo, sobre quem já escrevi, foi durante mais de 40 anos Secretário da Mesa da Misericórdia de Alcobaça. Exerceu essas funções desde o tempo em que foi Provedor, o Pe. João de Sousa, do Bárrio, que sucedeu ao Prof. Bernardo Correia de Almeida, que aliás foi seu professor durante a Instrução Primária.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS




PICASSO, GUERNICA E A PROPAGANDA (republicana e nacionalista).

PICASSO, GUERNICA E A PROPAGANDA
(republicana e nacionalista).

Fleming de Oliveira

Se Guernica, de Picasso foi utilizado como elemento de propaganda por parte dos republicanos contra os nacionalistas, a versão  seguinte, a não ter fundamento, o que se admite, poderá funcionar como contra-resposta dos nacionalistas aos republicanos.
A tela foi solenemente apresentada ao público, com o nome Guernica, pelo próprio Picasso e por Max Aub, Sub-Comissário da Exposição, na inauguração do Pavilhão de Espanha, na Exposition Internationale des Arts et Techniques, em Paris, no dia 4 de maio de 1937. Logo na inauguração, Max Aub enfatizou que muito se iria falar daquela pintura.
As imagens que testemunhavam a tragédia de Guernica, provocada pela aviação alemã, A Legião Condor, aliada dos franquistas, estavam a ser divulgadas pela imprensa internacional, que assim fornecia a única informação que não suscitava liminares reservas. Quanto ao demais, aquilo que as agências internacionais remetiam para as redações dos jornais nacionalistas, chegava e sobrava para deixar desconfiadas as pessoas e a opinião pública. A máquina de propaganda dos nacionalistas nada deixava passar no território sobre o seu controlo, que escapasse à sua verdade. Pelo que, imagens terríveis dessa povoação basca, foram prontamente acompanhadas de desmentidos, do género os aviadores bolchevistas continuam a sua tática de bombardear as cidades abertas da retaguarda e tentaram mais uma vez bombardear Saragoça. Mas os aviões de caça nacionalistas levantaram voo e derrubaram um avião bolchevista.
Logo a obra converteu-se num dos símbolos publicitários do Governo Republicano, até ao fim da Guerra Civil e mesmo no exílio. O quadro transformou-se num manifesto contra a guerra, que ultrapassou a sua natureza estética.
Guernica acabou por ter uma grande importância política e social, mas não devemos deixar de o ver como uma obra de arte. Se fosse apenas um manifesto contra a guerra não seria um grande quadro. Guernica é uma obra de maturidade (Picasso pintou-a aos 56 anos), uma síntese do que o pintor viu, do que aprendeu e fez até àquele momento da sua vida. Tudo o que ele amou está lá. O quadro foi enfim entendido como a resposta de Picasso ao brutal bombardeamento alemão a Guernica. Durante anos, as reproduções de Guernica, substituíram as da Última Ceia, de Leonardo da Vinci, em muitos lares, como lembra o escritor espanhol Manuel Vicent.
A figura de Picasso transcende a própria pintura.
Porém, se se atentar nas datas do bombardeamento e da apresentação da obra, admite-se que pode não ser mesmo assim, conforme os republicanos defendem.
O bombardeamento de Guernica ocorreu na tarde de 26 de Abril de 1937, pelas 16h,40m. Há quem fale em 1.500 vítimas, há quem diga 7.000, mas isso seria a totalidade dos habitantes…. Todavia, isso não altera o seu significado histórico e político.
O bombardeamento de Guernica ao longo de cerca de 4horas consecutivas, foi o primeiro ocorrido na Europa sobre uma população civil indefesa, uma localidade desmilitarizada. Era dia de mercado, muitas pessoas morreram, durante o ataque ou nos dois dias seguintes, enquanto os escombros estavam ainda a arder.
Em breve, o acontecimento começou a ser noticiado e amplamente comentado em Paris. Mas o quadro foi apresentado cerca de uma semana depois do acontecimento.
Trata-se de uma obra de grande envergadura, com 3,5m de altura por 7,77m de largura. Picasso, chegou a declarar que tinha demorado 60 dias a executá-la. Pensar que o quadro foi iniciado e completado entre 27 de Abril e 3 de Maio de 1937, não explica a contradição com aquela informação. Uma conclusão pode-se eventual, mas não seguramente, extrair. O trabalho de Picasso não foi inspirado, nem representa o bombardeamento de Guernica pelos alemães. A história do quadro terá começado em janeiro de 1937, quando Max Aub encomendou a Pablo Picasso, por ordem do Governo Republicano, um mural para ser exposto no Pavilhão de Espanha, mediante o pagamento de 150.000 francos. Em vez de um mural, foi executado aquele enorme painel, em óleo sobre tela.
Se foi Picasso, Max Aub ou outro qualquer, que anteviram o seu grande potencial e se lembraram de batizar o quadro Guernica, nos breves dias que antecederam a inauguração da exposição, é facto que dificilmente poderá ser esclarecido.
Desde então, Guernica tem sido objeto de estudo, crítica, opinião e inspiração um pouco por toda a parte. Representará mais uma impressiva visão sobre os horrores da guerra?
Segundo alguns, a tensão expressa no quadro lembra Los Horrores de la Guerra, de Goya. A denominação da obra e a propaganda republicana desencadeada a partir daí, representaram uma operação político-mediática em que participou Picasso, como eventualmente esta versão nacionalista. Alguns espanhóis, obviamente não afetos aos republicanos, mas não necessariamente comprometidos com os nacionalistas, salientam que o quadro estava pronto antes, ou em adiantada execução quando ocorreu o bombardeamento de Guernica e Picasso previa chamar-lhe Lamento en La Muerte del Torero Joselito, evocando a memória do toureiro Joselito, caído na arena de Talavera de la Reina, numa tarde de 16 de maio de 1920.
Não sabemos e o facto em si não parece verdadeiramente relevante, mas é sabido que Picasso dedicou grande atenção aos temas taurinos, desde a juventude. Observando a tela, podem distinguir-se touros e cavalos, num paroxismo de drama e morte. O que não se consegue descortinar são aviões, casas, guerra ou bombardeamentos. Mas quanto a isso lá saberá o pintor aquilo que quis representar!

Depositado no Museum of Modern Art, de Nova Iorque, o quadro permaneceu fora de Espanha até 1981, ano em que foi recebido no Museu do Prado. Picasso havia determinado que o quadro só deveria vir para Espanha, quando o país vivesse em democracia. Construído o Museu Rainha Sofia, em 1992, foi transferido para o lugar que hoje ocupa. Guernica define a identidade do nosso museu, disse a diretora do Rainha Sofia, Ana Martínez de Aguilar, tal como a Mona Lisa define o Louvre.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS

  

GILBERTO MAGALHÃES COUTINHO, ANTIFASCISTA ALCOBACENSE


 
GILBERTO MAGALHÃES COUTINHO, ANTIFASCISTA ALCOBACENSE

Fleming de Oliveira

Não seria muito justo, deixar de referir o papel político de Gilberto Magalhães Coutinho em Alcobaça.
Com 81 anos, faleceu em fevereiro de 1999, essa figura com algum relevo nos meios políticos da oposição ao Salazarismo em Alcobaça, que veio a ser detido primeira vez pela PIDE, em 22 de novembro de 1948, em Alcobaça, tendo dado a entrada na respetiva Diretoria, em 24 de novembro de 1948, para averiguações e recolhido de seguida,  preventivamente, ao Aljube.
Julgado no Tribunal Plenário Criminal de Lisboa, em 6 de dezembro de 1949, foi condenado na pena de 2 anos de prisão maior celular ou, em alternativa, na de 3 anos de degredo, na suspensão de direitos políticos por 15 anos, 1000$00 de imposto de justiça, acrescido das percentagens legais e sujeito a medidas de segurança. A pena de prisão decorria de lhe ser imputado atentar contra a segurança do Estado, enquanto que as Medidas de Segurança se justificavam, por período de tempo por vezes mais ou menos indeterminado, normalmente de três meses a três anos renováveis tantas vezes quanto a polícia política decidisse, com a benévola assinatura dos juízes do Plenário, na perigosidade do acusado, numa avaliação e proposta feitas pela PIDE.

Sobre os Tribunais Plenários, escreveu por exemplo António Valdemar que, juntamente com a PIDE, as Forças Armadas, a censura, a banca, a esmagadora maioria do episcopado português e outros elementos da hierarquia da Igreja Católica, foram os principais sustentáculos da ditadura que se prolongou de 28 de Maio de 1926 até 24 de Abril de 1974. Data de 1945 a criação dos Tribunais Plenários de Lisboa e do Porto. Destinavam-se a julgar acusações e delações contra a segurança do Estado, legitimando-as e, ainda processos de liberdade de imprensa, não apenas circunscritos a matéria editada em jornais e revistas, mas também em livros e outras publicações (…). Logo que foi implantada a Ditadura Militar, restringiram-se as liberdades constitucionais, estabeleceu-se a censura, preparou-se uma polícia política. Sob a alçada do foro militar, ficaram os processos políticos. Quando Salazar ascendeu a 5 de Julho de 1932 a chefe do governo, são também criados em Lisboa e Porto, em Dezembro de 1932, os tribunais militares especiais para os crimes políticos. Porém, com a cosmética que o termo da II Guerra impôs durante algum tempo, em 20 de dezembro de 1945 acabaram em Portugal os Tribunais Especiais Militares, que deram lugar aos Tribunais Plenários Criminais, atribuindo à recém criada PIDE, antes PVDE, a exclusiva competência para instruir os processos. Em 1945, foram criados os Tribunais Plenários, de Lisboa e Porto.
Nestes tribunais, frequentemente, os juízes eram pouco mais que presenças de estilo, complacentes com as torturas na cela e até na própria sala de audiências, chegando a ordenar a detenção de testemunhas ou advogados de defesa, por desrespeito ao tribunal. A certeza que havia, é que os processos estavam como que decididos a priori. Os juízes (Desembargadores) e os representantes do M.P., eram escolhidos pelo Ministro de Justiça, de acordo com critérios de confiança política.
Segundo Irene Pimentel, o Tribunal Plenário de Lisboa, atingiu um grau de corrupção e de falta de vergonha com acusações claramente pidescas, ao contrário do do Porto que, deste, nunca se aproximou, nem de longe nem de perto.

Estava o autor destas notas em 1972, em serviço militar na Guiné quando, com alguma surpresa, tomou conhecimento, que o Tribunal Plenário do Porto (juiz presidente Morais Campilho), absolveu alguns estudantes de Coimbra, acusados de participar em reuniões do PC, distribuírem propaganda apelando ao termo da guerra de África e tomarem partido por dois colegas estudantes angolanos, afetos ao MPLA.

Julgado no 1º. Juízo Criminal de Lisboa, em 30 de maio de 1951, Gilberto Coutinho foi de novo  condenado no cumprimento de pena de prisão e sujeito a Medidas de Segurança. Antes fora sujeito à tortura do sono. Foi restituído à liberdade condicional, com termo de identidade e residência, em 3 de Junho de 1953, embora com Guia da Cadeia do Forte de Peniche, emitida com data de 6 de junho de 1953. Apenas, em 8 de outubro de 1956 lhe foi concedida a liberdade definitiva.

O seu primeiro emprego, em Alcobaça, ocorreu na antiga Casa Furtado, de José Sanches Furtado (ferragens e drogaria). Quando saiu da prisão de Peniche, em liberdade condicional, foi trabalhar para a casa Thomaz dos Santos, em Caldas da Rainha. Daí passou para Barreto & Trindade, em Alcobaça, onde se tornou sócio e deu origem à empresa que atualmente ainda gira sobe o nome de Gilberto de Magalhães Coutinho, Ldª.
Dotado de forte espírito associativo, fez parte do grupo dos fundadores do Rancho de Alcobaça, da ADEPA e ainda da sociedade proprietária do Voz de Alcobaça. Também se dedicou ao Ginásio Clube de Alcobaça, de que foi diretor e apoiante em momentos difíceis.

Quem o conheceu de perto, recorda um comerciante honesto, conceituado na praça, pleno de seriedade e disciplina na sua condução financeira. Nunca repudiou, as convicções políticas e tinha a fama, seguramente o proveito moral, de não ser acusado de criar situações que pudessem comprometer ou criar prejuízos a outrem.
Pessoalmente, embora não tivesse sido pessoa propriamente das relações sociais, muito menos políticas do autor deste texto, registo que sempre lhe notei o gosto de ler e trocar impressões acerca dos mais variados assuntos. Aliás colaborou, por alturas dos vinte anos do 25 de Abril, na nossa  Notas Sobre os Tempos do Prec em Alcobaça, publicadas em O Alcoa.

O estatuto social de alcobacenses como Coutinho não era elevado e, não obstante, não consta que como outros tivesse sido especialmente mal tratado, muito menos fisicamente torturado pela PIDE.
Os presos, reconheciam que havia diferença no tratamento, entre um operário ou assalariado rural (socialmente mais indefesos) e um intelectual. De acordo com  Irene Flunser Pimentel, que escreveu a História da PIDE, havia diferença de tratamento entre funcionários do PC e presos como Soares ou Cunhal. Na primeira prisão, Cunhal ainda foi bastante castigado, depois não tanto, embora sujeito a grande isolamento, incomunicabilidade. Esta podia atingir meio ano, com denegação de acesso a revistas, livros ou correspondência. A tortura não era caso raro e nela intervinha, além dos agentes, um médico com vista a assegurar que o detido possuía condições físicas ou psicológicas para o prosseguimento.

Nos anos sessenta, o meu Pai, que também era advogado, frequentava no Porto, meios sociais, não propriamente políticos, de Artur Santos Silva (Pai) pelo que se recorda de ouvir este contar, alguns factos ou impressões, relacionados com a sua atividade político-profissional, nos Tribunais Plenários.
Artur Santos Silva (o arturão como era conhecido no meio), contava casos em que as testemunhas que enalteciam a conduta dos acusados ou o mérito das ideias que professavam, entravam na sala de audiências do Tribunal Plenário nessa qualidade e, quando saíam, iam diretamente para os calabouços.
Além da privação do sono, havia a estátua e a audição de estridentes gravações de choros, gritos, confissões ou denunciasse claro os espancamentos com cavalos-marinhos, o rabo de boi ou matracas.
Sobre Albino Serrano, Artur Faria Borda e Gilberto de Magalhães Coutinho, pode-se consultar com interesse o Voz de Alcobaça, respetivamente os números do ano de 1999, janeiro a abril de 2000, 31 de agosto de 1999 e 28 de fevereiro de 1999.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS




UM ANTIFASCISTA (Gilberto M. Coutinho) E UM GNR (Joaquim Meneses) QUE EM ALCOBAÇA, DEPOIS DO 25 de ABRIL, SE ENCONTRAVAM PARA PETISCAR

 
UM ANTIFASCISTA (Gilberto M. Coutinho) E UM GNR (Joaquim Meneses) QUE EM ALCOBAÇA, DEPOIS DO 25 de ABRIL, SE ENCONTRAVAM PARA PETISCAR

Fleming de Oliveira


Durante o Estado-Novo, as eleições eram de importância relativa para a oposição, pois normalmente os candidatos não iam às urnas. A legislação conferia às comissões recenseadoras o poder de decidir quem podia ou não ser eleito, além de que, os candidatos não só não podiam ter acesso aos cadernos eleitorais, como apresentar delegados para fiscalizar o ato.
As eleições eram um período em que, com alguma liberdade condicionada, que o regime não enjeitava, ficava a saber aonde se encontravam os seus opositores.
Quem, por exemplo, não podia votar, era Gilberto Magalhães Coutinho, afeto ou tido por afeto ao PC. Por alturas de 1952/53, Gilberto Magalhães Coutinho encontrava-se preso a cumprir pena na Cadeia do Forte de Peniche.
Foi aí que conheceu o sold. Joaquim Marcelino Meneses, que tinha acabado de ingressar na G.N.R. e estava destacado naquela prisão. De Peniche, Meneses veio a ser colocado em Alcobaça, até se reformar, ao fim de trinta anos de serviço. A vida prisional em Peniche decorria, com monotonia, segundo Meneses, que não apreciava o lugar. Eram poucos os presos, na maioria pequeno-burgueses. A alimentação era má, mas podia ser compensada pela facilidade permitida a presos de cozinharem. Quando a origem dos detidos começou a mudar, com a vinda de trabalhadores rurais e operários membros do PC, passou a haver reclamações, quanto à qualidade da comida (como refere Meneses), que passou pelo levantamento de rancho, reivindicações de melhores condições prisionais, tanto no que diz respeito ao tempo de recreio, como a higiene e salubridade, nas celas.
Segundo Meneses, os guardas prisionais estavam proibidos de falar e de comer com os detidos, pelo que foi Gilberto M. Coutinho, no isolamento, como que para meter conversa, quem tomou a iniciativa de lhe perguntar se ou de onde se conheciam. Meneses, jogando à defesa, apenas disse que lhe não podiam falar um com o outro, pois de outro modo arriscava-se a ir fazer-lhe companhia, numa cela. De facto, não se conheciam de parte nenhuma.
Mais tarde, em Alcobaça, encontraram-se e Gilberto Coutinho, já comerciante estabelecido, reconheceu-o. O curioso desta estória é que passaram a ser amigos, almoçavam, lanchavam e até jantavam una vez por outra. Para J. Meneses, não obstante nunca ter pactuado com socialismos, o trato político de Gilberto Coutinho, em nada o interessava. Gabava-se de nunca ter dado nenhum sopapo, por razões políticas ou mesmo outras, embora isso não fosse raro na G.N.R. no tempo do Sarg. Barbosa, que parece que o fazia com algum prazer sádico. Meneses, ainda conheceu de vista o esquerdista Dr. Vasco da Gama Fernandes, mas nunca falou com ele, mesmo como advogado, por receio de isso ser mal entendido, por colegas ou superiores.
Meneses não gostava muito de falar do seu tempo de serviço, especialmente dos últimos anos antes do 25 de Abril, quando comandava o Posto o Sarg. Barbosa. Ainda há pessoas que recordam a truculência, venalidade e a parcialidade do Sarg. Barbosa, o abuso de poder (considerava-se ele e a G.N.R. uns pilares do Regime), a arrogância com os munícipes em geral (concretamente em interrogatórios), bem como com o pessoal que comandava. O Sarg. Barbosa não tinha escrúpulos em receber/cobrar uns garrafões de azeite, de vinho (quem diz branco… diz tinto), uns quilos de bacalhau ou uns coelhos, a troco de nada dizer, nada fazer ou fazer. Com o Sarg. Barbosa nos anos sessenta e setenta em Alcobaça havia patrulhas, com sol ou chuva, de dia ou de noite. Essas patrulhas eram compostas por dois homens que, nos termos do regulamento, se deslocavam a pé pela estrada, um de cada lado. Se por qualquer razão, os militares da G.N.R., chegassem ao Posto mais cedo do que o previsto (por exemplo uns dez minutos), o Sarg. Barbosa obrigava-os a voltar à rua, como  castigo para cumprir os minutos em falta. O que ocasionava que os homens, por vezes, ficassem à porta do Posto, a fazer tempo que faltava.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



FRANCELINA CANHA PIEDADE, MOTORISTA PROFISSIONAL (e outras coisas) EM ALCOBAÇA


 
FRANCELINA CANHA PIEDADE, MOTORISTA PROFISSIONAL (e outras coisas)  EM ALCOBAÇA

Fleming de Oliveira



Já pelos anos 20 do século passado, D. Francelina Canha Piedade ganhava a vida, em Alcobaça, a conduzir automóveis de aluguer.
Mas não só.
Segundo os registos conhecidos, terá sido a primeira motorista profissional portuguesa a guiar camionetes de passageiros. E se outros predicados não tivesse, há pelo menos que referir que foi negociante, ciclista, cocheiro, caçadora (atirava muito bem aos coelhos), e ainda mãe de família.
Existe na posse de sua família, e tivemo-lo em nosso poder, o original do alvará, passado pela Câmara Municipal de Alcobaça, (15 de Dezembro de 1922, sendo Presidente Leonardo Taveira Pinto), correspondente à matrícula de cocheiro, que concedeu licença a Francelina Cana Piedade para bolear ou dirigir carros de transportes de pessoas, por aluguer, cumprido que estava o Regulamento para a Polícia e Trânsito de Veículos no Distrito de Leiria.
Segundo a própria D. Francelina (que não cheguei a conhecer), em entrevista publicada em O Século (11 de Setembro de 1973), aliás depois da sua morte que ocorrera em 1972, com 78 anos de idade, antes de lidar com automóveis, tinha tido uma alquilaria, com trens e carros de aluguer. Havia bons fregueses e o negócio não era mau. Mas vieram os automóveis e a coisa começou a fraquejar. Toda a gente preferia os carros sem cavalos.
Como e com quem aprendeu a conduzir automóveis?
Foi o Manuel Moreira, mecânico da Bussing, cá de Alcobaça, que me ensinou. Tinha ido especializar-se à Alemanha. E tinha eu 29 anos!, contou de uma vez D. Francelina. No 1°. de Maio de 1923, comprou um Citröen, de meia mola, por 23 contos de reis, sendo que nessa altura ainda não tinha carta de condução.
Andei a guiar dois anos sem carta. Fiz exame em 1925. O primeiro exame que fiz foi o de ligeiros-amador, em 26 de Maio de 1925 e a minha carta tem o n° 6840, tendo sido o examinador Vasco Calisto (Pai), referiu ela a Vasco Calisto (Filho) que, por sua vez, o veio a escrever no O Século e me  contou. O exame de profissional de pesados fê-lo em 4 de Agosto de 1926, altura em que o examinador lhe perguntou se tinha a certeza que o carro onde circulavam tinha diferencial.
Só se o tivesse perdido pelo caminho, respondeu-lhe de pronto e atrevidamente. A Empresa de Camions de Alcobaça, Ldª, entretanto tinha ido à falência e encontrava-se em fase de liquidação do património, quando a Sociedade de Automóveis Cruz de Cristo Ldª, com sede na Praça do Município, n°60, foi constituída (21 de Janeiro de 1929). Foram seus fundadores além de D. Francelina, José Emílio Raposo de Magalhães, José Ferreira da Silva, Tomás Gonçalves Marques, Francisco Ferreira da Bernarda e Albertino Graça Ferreira. O seu objeto social, era a exploração por aluguer de carros automóveis ligeiros e pesados, o seu comércio, em conjunto com este, o de compra e venda desses veículos e de todos os acessórios que aos mesmos ramos de negócio digam respeito. Tinha um capital social de 300.000$00, o que era significativo na época.
Foi nesta altura que D. Francelina tirou a carta de condução de serviços públicos. A Sociedade de Automóveis Cruz de Cristo, Lda ainda existe embora com características e objeto diferentes, e até há pouco teve sede na Praça 25 de Abril/Alcobaça.
Estabeleci, em (15 de Abril) 1929, as carreiras de camionetas (para transporte de mercadorias) entre o Valado e Alcobaça, fazendo o serviço combinado com a C.P. e entre a Vila e a Benedita, contou D. Francelina. Mais tarde por causa das dificuldades do tempo da guerra, vendi as carreiras ao Capristano. Tive carreiras durante treze anos.
Em meados do ano de 1930, a Cruz de Cristo, Ldª iniciou a carreira de camionetes entre Alpedriz e Alcobaça, numa estrada cujo piso era muito mau, utilizando uma esplêndida Federal, propositadamente adquirida para esse fim. Foi significativo o interesse e a pronta adesão das populações beneficiadas, concretamente de Montes, tendo a Comissão Administrativa da Câmara Municipal felicitado a empresa. Para efetuar em melhores condições a ligação de Alcobaça à C.P, em Valado de Frades, no que era tido como uma carreira fundamental, a Cruz de Cristo Ldª deu início às obras para instalar a sua Central, em breve inaugurada.
Havia uma guerra surda entre as principais transportadoras rodoviárias de Alcobaça, de tal modo que estas iniciativas tiveram resposta de Campos & Trindade, que decidiu não obstante a inflação que se fazia sentir, manter sem alteração de preços as suas carreiras entre Alcobaça e Valado a 1$00, indo buscar e levar a casa todos os clientes que assim o desejem.
Os transportes públicos estavam finalmente em crescimento em Alcobaça, depois de um período de contenção.
Em Agosto de 1930, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal fez saber por edital que a praça de automóveis passa a ser às segundas, terças, quartas e sextas feiras na Praça Afonso Henriques, na parte destinada à venda da fruta e nos restantes dias na Praça do Município, ou seja na antiga Estrada n° 10, que atravessava a dita praça.
Hoje, ninguém se lembra que na Praça da Fruta os carros ficavam com a frente voltada para a praça, colocando-se no local mais aproximado da Estrada Porto-Lisboa. Por sua vez na Praça do Município, os carros dispunham-se de frente para as casas existentes do lado poente, começando a sua arrumação a ser feita em frente da casa de Alberto Neves Hipólito, à direita uns dos outros.
E as camionetes?
O lugar destas era na Praça do Município, na parte da antiga E.N. n° 10, começando a sua arrumação a ser feita em frente da esquina da Casa Natividade e também à direita umas das outras. Para facilitar o acesso dos passageiros, e disciplinar a concorrência, as camionetas de carreira ordinária que eram as da Cruz de Cristo Ldª e a de Campos & Trindade, poderiam estacionar com meia-hora de antecedência nos locais a elas destinados, que eram o mais próximo da Estação Telégrafo-Postal e ao lado da Praça da Fruta, mesmo ao Domingo, desde que estivessem a trabalhar e não prejudicassem o trânsito.

Mulher de negócios, com boné e por vezes de gravata posta, ar encorpado, andava sempre atarefada. Um dia pretendeu competir numa competição automobilística, o Quilómetro Lançado da Reta de Tornada-Caldas da Rainha pois, se sabia guiar tão bem como os outros, também podia ser que fizesse figura a correr. Inscrevi-me, paguei 100 escudos. No fim de contas só assisti à corrida, pois não me deixaram correr, lastimou-se ela a Vasco Calixto (pai). Explicaram-lhe que a corrida era só para homens e amadores...
Considerava-se e bem, a primeira mulher automobilista em Portugal pois não sei de nenhuma senhora que tenha tirado carta de condução quando eu tirei. Foi muito falada, ao tempo, a participação de D. Francelina na IV Volta a Portugal, em automóvel, organizada pelo Club dos 100 à Hora, conduzindo um Volvo, aliás pouco preparado para a competição.
A vida de D. Francelina Canha Piedade, que sempre decorreu em Alcobaça, é curiosa e a seu modo emblemática, pois representa a luta para contornar os acentuados preconceitos e descriminação sexual. Os vizinhos pasmavam-se e criticavam-na, como reconhecia a própria D. Francelina, mas isso pouco importava, o que importava era tratar da sua vida.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



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UMA BOA FEIRA DE S.BERNARDO



 
UMA BOA FEIRA DE S.BERNARDO

Fleming de Oliveira


A Feira de S. Bernardo, realiza-se há muitos anos em Alcobaça, umas vezes com mais animação ou interesse que outras. O certo é que, não obstante a descaracterização que hoje em dia apresenta, aliás como muitas outras que por esse País se realizam, nem por isso deixa de estar presente nos hábitos das pessoas da terra.
As festas e romarias são uma componente importante da cultura popular do povo português. Numerosas e variadas, acontecem um pouco por todo o país e fazem parte das tradições e memórias de um povo que pretende preservar e manter atual a cultura secular que lhe confere identidade. Apesar de decorrerem ao longo do ano, é nos meses de Julho e Agosto que acontece a maior parte das festas e romarias em Portugal, unindo quase sempre a componente religiosa a um programa popular.

A Feira de S. Bernardo  teve sempre uma componente essencialmente lúdica. Falando com pessoas idosas ou consultando notícias de jornais, atrevo-me a dizer que a Feira de S. Bernardo, quando no Rossio, era o ponto de encontro dos alcobacenses da terra com os de fora, a ocasião para mercadejar coisas, beber uns copos com os amigos e foliar. E pôr a conversa em dia, porque a vida não é só canseiras. O que era uma boa Feira, no dizer dos antigos?

No tempo da República e dos primórdios do Estado Novo, da parte da tarde as tendas lado a lado pejavam, como convinha, no Largo do Rossio, em longas fileiras, e vendiam de tudo, fazendas, bugigangas, algodão doce, ouro, ouro sim, ouro de lei, ou prata contrastada, como o material do Maneca de Febres, porque o metal é que tem valor amanhã, no meio de enorme algazarra e estridência de conversas, de realejos ou outros instrumentos menos afinados, interpretados por cegos (que afinal talvez não o fossem…) que faziam números com saltimbancos e artistas de circo, enquanto se comiam tremoços ou pevides. Havia a tômbola das panelas que era muito procurada, pelas mulheres, na esperança de poder sair uma peça, que mesmo de refugo iria fazer muito jeito na decoração da cozinha ou no serviço da casa. Também havia as tendas do vai um tirinho o q´rido, das caixas com furinhos que davam prémios e as dos matraquilhos.
O povo gostava de ir passear e ver. Famílias inteiras, com ar grave e pasmado, rapazes vestidos à maruja, paravam diante dos artistas a quem davam uns cobres, ajustavam o preço de um alguidar ou de uma peça de fazenda, tiravam medidas para o rapaz fazer um par de botas de carneira, iam ao mercado do gado, da fruta, da hortaliça ou do peixe da Nazaré (oh qu’ rida, oh freguesa!). Tudo era bom de apreciar. As ciganas liam a buena dicha, as vendedeiras de limonada faziam negócio com as mulheres e crianças. Alcobaça, em Agosto, com pó e algumas moscas quanto baste à mistura, fazia sede que também se matava moderadamente na tenda da ginjinha. As mulheres apreciavam muito as pesadas mantas listadas de Minde, a lã azul fiada para as saias, as loiças da Olaria de Alcobaça, com motivos pintados à mão simples e ingénuos, os vidrados amarelos ou verdes das Caldas da Rainha. Os homens, de pesado cajado, frequentavam principalmente, a feira do gado, faziam negócios com dinheiro vivo (como poderia ser de outra forma?), entre dois copos de tinto, acompanhados de pequenos queijos de cabra ou de ovelha, vendidos em poceiros cobertos por alvas toalhas e, claro, sempre com o marisco, os tremoços e pevides.
Esta era sim, uma boa Feira de S. Bernardo, com a PSP e a GNR sempre por perto e atentas à malandragem (além dos ciganos, havia outros… como os carteiristas) e às brigas do mau vinho. Os carteiristas que frequentavam as festas e romarias do país, como a Feira de S. Bernardo, dizia-se serem normalmente provenientes do norte e bem referenciados pela polícia, pois usavam habitualmente um caraterístico pequeno chapéu. A Polícia detinha-os preventivamente pelo tempo das festas, mesmo que nada tivessem ainda feito.
A história dos carteiristas foi uma vez contada a Altino Ribeiro pelo Chefe Martins, da P.S.P., que depois foi motorista da Olaria, aquando de uma viagem em serviço que fizeram ao Porto.
Os anos passaram. Algumas coisas mudaram outras nem tanto.

Durante a Feira havia circo. Em primeiro lugar apareciam os cartazes espalhados pela vila, ilustrados com animais ferozes, palhaços ou trapezistas, homens e mulheres gordos, tatuados e anões. Depois vinham as carruagens, puxadas por camionetas ou mesmo animais, que desfilavam com música, um tambor ou corneta pelas ruas. Era este ainda o tempo do grande espetáculo (o maior espetáculo do mundo), exibido em tendas redondas de lona onde entrava a chuva e seguramente o vento, a arena colorida, as luzes feéricas, os maillots lustrosos das mulheres, os corpos atléticos dos homens. Os palhaços, os animais. Os trapezistas, lá nas alturas.
Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos, benvindos ao circo!!! Senhoras e Crianças, não pagam... Senhoras e Crianças, não pagam!!!
João Matias lembra-se que devia ter aí uns seis anos quando pela primeira vez o pai o levou ao circo, que assentava no Parque da Gafa. Mas para a criança que era, aquele foi um dos maiores acontecimentos da ainda muito curta vida. Gostou das trapezistas, riu-se com os palhaços mas, sobretudo, ficou fascinado com o atleta das argolas. Nunca mais o esqueceu. O fascínio do circo resiste a tudo e tem o condão de persistir na memória de crianças, jovens e adultos. O das argolas era um velho, de cabelos brancos e estatura pequena. Os músculos como que lhe saltavam da roupa, e nas argolas não deixou de fazer um cristo, com uns braços trémulos. Esperado, esperado, era o momento dos palhaços. O de cara branca, o palhaço rico, e o outro, o pobre. O rico, servia para enganar o pobre, que superava pela esperteza os ardis que o cercavam. A assistência projetava-se no azougado pobretana. João Matias ria. A música evolava-se da concertina inglesa e de um xilofone de garrafas penduradas, líquidos coloridos em escala harmonizada na subtilidade dos martelinhos. Ninguém dava pelo desconforto das bancadas duras de madeira.

E o teatro de fantoches ou de robertos?
O teatro de Robertos era um dos principais divertimentos (quase obrigatório) das feiras, romarias e até praias do século XX, como recordam Altino Ribeiro e Tó Lopes. Este estilo de teatro entrou, porém, em desuso em meados do século XX. Nos seus tempos de criança, na altura da feira, apareciam os Robertos, tão ansiados pela criançada. Trata-se de espetáculos de fácil compreensão, com uma manipulação rápida e cheia de ação, cuja característica importante é o uso pelo fantocheiro de uma palheta na boca que lhe permite ampliar e distorcer a voz, produzindo efeitos surpreendentes, algo ridículos e que abordam rábulas tradicionais, que reproduzem a animação de rua (à moda antiga), algum acontecimento e centram a atenção do público com o alarido e picardias dos bonecos. Tó Lopes, em criança, gostava muito de ver os robertos e lembra-se bem de um número especialmente apreciado, pois metia (muito fantasiosamente) o Marquês de Pombal e a expulsão dos Jesuítas. Os adultos e a criançada achavam-lhe muita graça, pagava-se cinco tostões. Mas o tema mais corrente era o de um homem mal comportado, um touro para assustar e uma mulher que zangada com o comportamento do marido lhe pregava umas valentes pauladas no final.
Nos dias que correm, é difícil verem-se os Robertos, mas, de certeza, que haveria muitas crianças que gostariam de assistir a um espetáculo, com os nossos saudosos e deliciosos Robertos.

João Matias, já rapazote com pelos a aparecer na cara, também não se esquece mais do vendedor da banha da cobra que aparecia todos os anos na Feira de S. Bernardo. O vendedor da banha da cobra não é uma personagem de ficção, pois existe, sempre existiu, evoluiu, é muito hábil e astuto.
Todos sabemos, João Matias sem dúvida, que a banha da cobra não serve para nada, mas a convicção que o vendedor transmite, através duma oratória estudada e estruturada, é capaz de convencer pessoas sobre as capacidades infinitas do milagroso medicamento. Impigens, mau olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, verrugas, cravos, etc., são alguns dos males que a banha da cobra afasta a quem a quiser comprar.
Matias parece que ainda tem no ouvido essa oratória, não custa nem 20, nem 15, nem dez. Custa apenas cinco, e quem levar dois tubos leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina, e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir o pacote.
Se é certo que a banha da cobra não cura nada, também não consta que daí tenha saído algum mal para a saúde pública ou para o mundo. Não custa dez nem quinze, custa apenas vinte e cinco tostões, e quem levar dois tubos leva um de graça.
Era assim tentador! É assim que ainda conserva no ouvido o pregão com que na feira, o vendedor da banha da cobra anunciava as virtudes miraculosas daquela mistela, de composição indecifrável. E não havia mal ou maleita onde o seu resultado não fosse prodigioso. E para que não houvesse dúvidas, os argumentos eram um primor de explicação:
-Se bocência tem uma dor de dentes, fique a saber que não é o dente que lhe dói. O dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo.

Creio que a grande maioria das pessoas, não acreditava naquilo, mas comprava, pelo que a vida de vendedor de ilusões ia andando embora com dificuldades.
O homem era vigarista, golpista ou apenas um desenrascado a fazer pela vida? Há uma palavra tipicamente portuguesa, que caracteriza bem o nosso povo, o Desenrascanço, muito próprio do Xico Esperto, de que aliás já falámos. Saudade e desenrascanço são palavras/expressões que provavelmente conseguem definir um povo na perfeição. Vivemos saudosos do passado, desenrascando o futuro. Esta palavra (desenrascanço) é difícil de traduzir para uma outra língua, talvez por ter um significado menos romântico que o de saudade. Não recordo alguém a referi-la como bastião da língua e maneira de ser português.
O desenrascanço português é conhecido desde tempos antigos. Diz-se que durante as viagens marítimas era frequente navios de outros países levarem um português na tripulação, com o propósito de este tomar conta do navio em tempos de crise. No meio de uma tempestade, o Português ficaria com total controlo do navio, e daria uso ao seu dom do desenrascanço para livrar o navio da tormenta.

O falecido GNR Joaquim Meneses tinha uma vaga ideia de a ouvir a colegas mais velhos, quando muitos anos depois foi colocado no Posto de Alcobaça. Ainda música entoava no ar quando no sábado, por volta da meia noite, várias pessoas se envolveram em confrontos físicos. A principal vítima da sessão de pancadaria foi o Luís da Horta, da Moita do Poço, que garantiu ter sido agredido pelo Secretário da Junta de Freguesia de Turquel, com um pau de eucalipto com 2 metros de comprimento e mais de dois centímetros de diâmetro…
-Deu-me com o pau nas costas umas cinco vezes, contou Luís. Um gesto que foi seguido por mais dois conterrâneos do Secretário da Junta.
-Os paus destes eram mais pequenos, mas mais grossos, afirmou o agredido, tão grossos que acabaram por lhe abrir a cabeça, que foi suturada com sete pontos no Hospital de Alcobaça, onde chegou bastante atordoado.
O jovem apresentou queixa por agressão contra o Secretário da Junta e os dois amigos, na Guarda Nacional Republicana. De acordo com as informações colhidas junto Chefe do Posto da G.N.R., uma patrulha foi chamada por volta da uma da madrugada de sábado, com a informação é de que estariam a decorrer desacatos no recinto da Feira. Chegada ao local, a patrulha (3 homens) deparou com o facto já consumado, pois o Luís da Horta já teria levado as pauladas, estava no chão, com a cara ensanguentada e a gemer.
-Só sei que ainda havia gente a bater-me, a dar-me pontapés nas costas e na barriga, garantiu depois.
O caricato da situação é que o assunto que terá dado iniciou a zaragata, nada tinha a ver com o Secretário da Junta, com esta ou mesmo com o Luís da Horta. Mas sim, com um irmão deste e um rapaz do Carvalhal, que terá sido apanhado, algum tempo antes, a roubar um cabrito.
O Secretário da Junta mostrou-se muito espantado pelo facto do seu nome estar envolvido na questão.
-Não tenho nada a ver com o assunto. Na altura dos acontecimentos até estava sentado a beber um copo e a petiscar com uns amigos. Referindo nunca se ter metido em zaragatas (não se esqueça que faço parte da Junta…), salientou que até andava de muletas por ter um problema numa perna, que o obrigou a fazer uma cirurgia em Leiria.
-Acha que com a perna assim eu estava em condições de bater em alguém?, perguntou ao Comandante do Posto da G.N.R, adiantando que se o Luis apresentou queixa contra si irá também fazer outra por difamação.

Falar de uma festa popular portuguesa e esquecer o Poço da Morte seria uma falta grave.
O primitivo Poço da Morte, era em madeira, e nele pontificavam os motoqueiros pai, mãe e um filho, já que no cartaz aparecia a imagem dos três, como recorda Matias. Circulavam numa estrutura cilíndrica, a girar sempre à volta até ficarem paralelos ao chão. Era um trio de fascinantes corajosos aventureiros que, com os palhaços, ilusionistas e acrobatas do circo, preenchia o  imaginário de muita gente que ia à Feira. O público ficava a ver na parte superior, tendo apenas uns cabos de aço como limite, para que numa manobra imprevista (e possível) não levasse com eles.
Desafiavam a morte, no dizer do apresentador, cruzando-se com arrojo, audácia e emoção a alta velocidade de olhos vendados pela bandeira portuguesa, que depois era desfraldada triunfantemente, para gáudio da assistência e vibrantes aplausos. Especialmente emocionantes eram as voltas de moto, com o artista (filho) sentado de lado virado para o fundo do Poço, sem mãos no volante e de braços cruzados. Suscitavam emoções fortes em João Matias, que ia acompanhado pelo pai, espalhando entre os demais espectadores um clima de euforia e ansiedade, apimentado pelo ruído ensurdecedor das motos sem escape e o cheiro de gasolina mal queimada.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



JOÃO FARIA BORDA, ALCOBACENSE, MARINHEIRO COMUNISTA E O TARRAFAL

 
JOÃO FARIA BORDA, ALCOBACENSE, MARINHEIRO  COMUNISTA E O TARRAFAL
Fleming de Oliveira


João Faria Borda, nasceu a 18 de Novembro de 1912 em Alcobaça.
Em 1932, assentou praça na Armada, como voluntário, onde desenvolveu atividade política. Como dirigente da ORA (Organização dos Revolucionários da Armada) participou, na revolta dos navios de guerra, Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque e Dão, em 8 de Setembro de 1936,  que ficou conhecida como A Revolta dos Marinheiros. Esta foi a única ação militar contra o Estado Novo até ao 25 de Abril, que foi preparada, decidida e efetuada, essencialmente, pelas camadas baixas das Forças Armadas, no caso vertente marinheiros (grumetes, primeiros marinheiros e cabos). Em consequência dessa participação, depois de julgado em Tribunal Militar Especial e porque no tribunal assumiu a responsabilidade pela ação revolucionária praticada, Faria Borda foi condenado a vinte anos de prisão. Esteve uns dias na Penitenciária de Lisboa e, de seguida, foi enviado para o Tarrafal/Cabo Verde, onde chegou a 29 de Outubro de 1936, tal como Bento Gonçalves (Secretário do PC), Mário Castelhano (anarquista), ou Alfredo Caldeira (Comité Central do PC).  
Faria Borda permaneceu dezasseis anos e três meses no Tarrafal. Depois de ter passado ainda mais um ano na cadeia de Peniche, foi restituído à liberdade, com 41 anos de idade. Voltou ainda a ser preso em 1959/60 por acusações relacionadas com atividade cooperativa.
Faria Borda publicou alguns textos, A Revolta dos Marinheiros (Edições Sociais-1974) e Conversa entre Marinheiros, in Revista da Armada (1974).
Segundo Faria Borda, (…) falar do Tarrafal ou de outras prisões fascistas não deve ser uma simples evocação daquilo que por lá passámos. Ao falar do Tarrafal e das outras prisões importa, em primeiro lugar, saber que elas existiram porque existiu o fascismo. Elas são uma consequência directa do regime de terror que durante 48 anos massacrou o nosso povo e colocou o nosso país na cauda das nações civilizadas. Eu e todos os ex-presos do Tarrafal sentimos profunda indignação quando deparamos com a data gloriosa do 25 de Abril a sofrer os maiores insultos (…).

A Revolta dos Marinheiros, de 1936, não triunfou, nem podia triunfar, tal como outras e, aliás, vieram a reconhecer mais tarde alguns dirigentes, como João Faria Borda, in A Revolta dos Marinheiros, citado por O Militante (2006), na comemoração dos setenta anos da intentona, já sem a presença de A. Cunhal (que todavia ainda estivera presente nas comemorações dos sessenta anos).
Analisando posteriormente à luz duma maior capacidade política, desde o início (o movimento) se revelou com poucas probabilidades de êxito. Podemos hoje dizer que foi mais uma explosão de revolta, do que acção verdadeiramente revolucionária.
Mas como muitas vezes aconteceu na luta revolucionária, e ainda de acordo com citado número de O Militante que também publicou uma entrevista com Sérgio Vilarigues (preso do Tarrafal), o que perdura no longo historial dos que ousaram tomar o céu de assalto, não é o sentido e o amargo da derrota, mas o significado da ousadia, a abnegação, a entrega total à causa da liberdade dos que mais não aspiravam do que servir o povo, e os ensinamentos que se extraem desses acontecimentos para o prosseguimento da luta.
A inauguração do Campo (Colónia Penal, na expressão do regime) do Tarrafal, criado por Decreto em Abril de 1936, foi acelerada graças à  Revolta dos Marinheiros. Tinha subjacentemente a ideia de liquidar os opositores mais combativos e, por isso, destinado a quebrar o seu espírito de resistência. Os marinheiros constituíram 1/5 dos presos enviados para o Tarrafal. Este passaria à história como Campo de Morte Lenta, uma prisão onde muitos presos foram sujeitos à tortura e 32 deles morreram (cerca de metade das vítimas imputadas ao Regime, na Metrópole) e ali foram sepultados.
João Faria Borda, um homem que passou dezasseis anos e três meses no Campo do Tarrafal. escreveu ainda que foi uma das mais sinistras criações do Regime, a que a Revolução de 25 de Abril pôs termo, uma das chagas emblemáticas do Estado Novo, como escreveu Jaime Nogueira Pinto.
Para Faria Borda, o campo de concentração era um rectângulo (cerca de 250m por 180m) situado num dos sítios mais insalubres do arquipélago de Cabo Verde. Como alojamento existiam umas barracas de lona onde eram metidos cerca de 12 presos em cada uma. As casas de banho não existiam. Havia apenas uns sanitários, toscos muros de tijolo com uns buracos no chão e umas latas de gasolina para as necessidades. Como cozinha existia um telheiro com uns muros por onde a poeira entrava aos montes. Dois indígenas faziam a comida. A alimentação era péssima, havia ocasiões em que era necessário pôr bolas de algodão no nariz pois o cheiro da comida impedia que ela entrasse no estômago. Não havia água potável. Só existia água num poço a cerca de oitocentos metros do campo, água salobra que os presos transportavam em latas de gasolina. Mesmo assim era má e em pequena quantidade, não chegando para a higiene. Tomava-se banho com um único litro de água despejada de uma lata onde eram feitos uns buracos para o efeito. O primeiro director do Tarrafal foi Manuel Martins dos Reis, capitão gatuno e paranóico, vindo da Fortaleza de Angra do Heroísmo. Este director entretinha-se a roubar as coisas que os familiares dos presos, com sacrifício, mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado pelo Socorro da Marinha Internacional. Chegou mesmo a montar uma pseudo cantina onde vendia as coisas roubadas. Mal desembarcámos, começámos imediatamente a trabalhar. Transportávamos pedras, sob vigilância constante dos guardas. Em Cabo Verde, região de clima variável, calhou chover bastante nesses anos. A lona das barracas apodreceu de tal maneira que lá dentro chovia como na rua e de manhã acordávamos com a cara negra da poeira que se pegava à humidade que sobre nós caía. As águas acumuladas formavam pântanos onde se desenvolviam mosquitos transmissores do paludismo. A saúde de todos nós, presos, arruinava-se. Caíamos atacados da doença chamada biliose. Sem fornecimento de medicamentos e com um médico que era um patife da pior espécie, em poucos dias morreram sete camaradas. Em cerca de uma média de 200 presos era vulgar, em certas alturas, apenas dez andarem a pé. Os escândalos da actuação do primeiro director levaram à demissão deste. Foi substituído por João da Silva, acompanhado pelo fascista Seixas. Estávamos em 1938/39. A guerra civil espanhola terminava com a vitória do fascismo. O ditador português Salazar tinha contribuído, apoiando com o envio de géneros alimentícios e de homens, os quais ficaram conhecidos pelos Viriatos. Hitler tinha subido ao poder em 1933. Na Itália existia Mussolini. A situação no campo do Tarrafal, reflexo da situação política internacional caracterizada pela ascensão do fascismo, agrava-se terrivelmente. João da Silva dizia frequentemente: Quem está aqui é para morrer! Com este director começou a funcionar sistematicamente a célebre tortura conhecida por frigideira Todos os dias eram para lá atirados presos e eu também por lá passei algumas vezes.
Ainda hoje no imaginário de uma esquerda portuguesa (diríamos nostálgica), se coloca a questão de se saber se fulano de tal falou ou não, nos interrogatórios ou na prisão. Diz-se em certos meios de Alcobaça afetos ao PC, que Faria Borda não cedeu, não quebrou psicologicamente, por ter uma enorme capacidade de sofrimento e vontade férrea.
Faria Borda, desde cedo, defendeu um corpo de ideias, que nunca abandonou e tentou levar à prática, mobilizando meios e camaradas. Não assistiu à queda do Muro, ao colapso da URSS, mas quem com ele privou (em Alcobaça não foi com muita gente, pelo menos a partir de certa altura), entende que embora a realidade tivessse demonstrado que havia muitíssimas coisas erradas na URSS, sempre se recusaria a aceitar ou retificar princípios de ordem ideológica. Decorreram noventa anos sobre a tomada de poder pelos bolcheviques na Rússia. Milhões de mortos, deportados, sibéria, goulags, julgamentos e execuções sumárias, economia planificada e coletivizada que conduziram o país à rutura. Será que Faria Borda, se fosse vivo, faria um balanço positivo deste período, como acontece ainda com alguns comunistas portugueses dos nossos dias? Nele há os que destacam, a sua capacidade de resistência e sofrimento, que lhe permitiu aguentar, sem desistir, uma adversidade, tão grande, como foi o tempo que passou no Tarrafal. Faria Borda seria, no entender de alguns alcobacenses, tão ortodoxo, seguro e certo dos seus ideais, que nunca compreenderia que no Inverno não houvesse baixas temperaturas, que as maceiras florescessem em Fevereiro ou que as árvores começassem a largar folhas, à sorte, em Outubro. Havia para ele uma ordem onde tudo estava arrumado, sendo um atrevimento o que punha em causa esse sentido de disciplina, onde não cabia a choraminguice portuguesa e feminina.
A conjuntura internacional impôs, a partir de certa altura, alterações no funcionamento do Campo do Tarrafal, bem como no aparelho repressivo em geral, ainda que de conteúdo cosmético (maior suavidade e menor discricionariedade do diretor, melhoria de alimentação e de cuidados de saúde) e de curta duração. Os Aliados derrotaram as forças do Eixo, criara-se o M.U.D., que se começou a manifestar como a oposição em geral, e Salazar prometeu eleições livres. Mas o Salazarismo recompôs-se e o combate ao comunismo voltou a poder ser invocado para, de novo, enviar prisioneiros para o Tarrafal, tal conforme escreve Luís Farinha, in Vítimas de Salazar.

Na Metrópole, não terminaram as detenções nem as condenações por crimes políticos.
Nos presos do Tarrafal, era grande a esperança de mudanças e a queda do regime animava os presos. Se não fossem eles já os beneficiados, outros o seriam, a hora da libertação não tardaria. Em Fevereiro de 1945, cerca de 50 presos regressaram a Portugal, pagando do seu bolso a passagem de barco, e antes do fim do ano, uma amnistia (que abrangeu também alguns que, entretanto, haviam falecido…) permitiu a libertação de mais cerca de outros 70. Mas outros ainda permaneceram presos, alguns condenados do 18 de Janeiro de 1934 e outros da Revolta dos Marinheiros, visto as suas penas terem sido especialmente graves.
Portugal, pretendia integrar a NATO, e logo que possível a ONU, pelo que era conveniente, encerrar a Colónia Penal do Tarrafal. Em meados de 1953, os últimos presos da Revolta dos Marinheiros (cinco deles morreram no Tarrafal, em cujo cemitério foram sepultados), foram transferidos para Peniche, Lisboa ou Trafaria. O último preso, a deixar o Tarrafal, aliás algum tempo depois, foi Francisco Miguel, do PC, transferido para Caxias. A Colónia Penal do Tarrafal apenas encerrou, oficialmente, em 26 de Janeiro de 1954 (para os portugueses), tendo por lá passado cerca de quatrocentos presos, alguns dos quais contraíram doenças muito graves. No Tarrafal faleceram como se referiu trinta e dois presos, fruto de maus tratos ou deficientes condições higiénico-sanitárias.
Com o início dos movimentos pró-independência das possessões africanas, o Tarrafal veio a ser reaberto em 1962.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



HUMBERTO DELGADO, AS CHAPELADAS, A CELA/ALCOBAÇA E FRANCISCO EUSÉBIO


 

HUMBERTO DELGADO, AS CHAPELADAS, A CELA/ALCOBAÇA E FRANCISCO EUSÉBIO
Fleming de Oliveira


Ouvi contar a um antigo Presidente da Câmara de Alcobaça, que em uma ou duas mesas de voto no Concelho, chegaram a aparecer mais boletins, do que total dos inscritos nos respetivos cadernos eleitorais. Talvez por isso, mas não só, vingou a tese  que Delgado ganhou, nas urnas, as eleições de 1958. Os resultados fornecidos pelo Regime, deram a nível nacional 75,8% a Tomás e 23,6% a Delgado. Todavia, alguns analistas, entendem que esta tão grande diferença, não pode ser apenas o fruto de fraude stritu sensu, no momento do apuramento dos votos, mas principalmente o efeito de uma enorme máquina manipulatória, intimidatória e trituradora, que se iniciava com o recenseamento eleitoral.
Na verdade, só era facilitado o recenseamento aos que eram de confiança. A oposição não tinha acesso aos cadernos eleitorais, outrossim a obrigação de distribuir pelos eleitores os boletins de voto, bem como encontrava-se impedida de fiscalizar o ato. Como referi noutro momento, no próprio dia das eleições, havia operações fraudulentas, algumas bem elementares ou primárias, como as alterações dos resultados (longe de concordar com os votos expressos), transportes que permitiam que se arregimentassem pessoas ou até que se votasse, mais que uma vez.
Tendo isto em conta pode-se, mesmo assim, afirmar que o resultado obtido por Delgado, foi expressivo, embora bastante distante do que seria a vontade nacional.

De acordo com o G.N.R., o falecido sold. Joaquim Meneses, que não gostava falar de política, embora  ouvisse falar das chapeladas, isso era tema tabu, na corporação. Sobre as eleições presidenciais de 1958, a imprensa local de Alcobaça (O ALCOA), foi bastante sóbria, referindo de forma meramente circunstancial, os candidatos da oposição, o Advogado de Lisboa, Arlindo Vicente, afeto ao PC, bem como o Gen. Humberto Delgado, que ao contrário deste, era tratado deferentemente como S. Ex.ª, talvez por ser um oficial prestigiado e ter uma propriedade na Cela, onde passava os fins de semana e algum tempo livre.
Joaquim Meneses, encontrou-se algumas vezes, embora só por motivos de serviço, com Humberto Delgado na sua quinta.
Quando era a festa de S. Pedro na Cela, deslocava-se para lá uma patrulha da G.N.R., de que Meneses fez parte várias vezes. Quando o pessoal da Guarda chegava, Delgado dava pessoalmente instruções à cozinheira para servir um bom almoço e ser bem tratado. Falava cordialmente, embora com banalidades, com os elementos da patrulha, dizendo-lhes que ali só havia boa gente e para estarem à vontade.
Meneses salienta que os elementos da G.N.R., antes de saírem em serviço no dia das eleições, tinham de  votar, o que no seu caso fazia por dever de ofício, pois que nunca teve interesse pela política. Ia votar  (sem hesitação), nas listas da U.N., pois no dia anterior, o comandante do Posto, no cumprimento de instruções que vinham de Leiria ou Lisboa, dizia-lhes aonde o voto tinha de ser colocado.

Há quem conte na Cela-Alcobaça, (será que é apenas lenda?) que (Delgado) era um bom aviador. Até chegava a vir aqui fazer piruetas na Cela a voar sobre a quinta dele. Uma vez passou pelo avião por debaixo dos fios da linha do caminho-de-ferro.
Joaquim Moutinho, recorda uma ocasião em que Delgado veio de Lisboa de visita à família e estava a observar a atuação do rancho folclórico local. Como fazia muito calor, abrigou-se à sombra de uma árvore, mas o vento teimava em atirar-lhe um ramo contra a cara, até que, com gesto rápido, destroçou a tranca, atirou-a ao chão e exclamou em voz alta se eu apanhasse aqui o Salazar fazia-lhe a mesma coisa.

Francisco Leonardo Eusébio foi sacristão da Cela, entre 1952 e 1956, altura em que era Pároco o famoso Pe. João de Sousa e até ir cumprir serviço militar.
Foi no exercício dessas funções, que conheceu Humberto Delgado. Delgado ia à missa e, terminada esta, não prescindia de ir cumprimentar o Pe. João de Sousa na sacristia, enquanto se desparamentava.
Nas Festas de S. Pedro (29 de junho), havia romaria a partir da Capela de S. Bento, situada dentro da propriedade de Delgado, com sermão, missa cantada e procissão, bem como a participação da (extinta) Banda da Cela, que atuava num coreto improvisado, enquanto o povo se distraía, na conversa e, nos comes e bebes.
A Capela de S. Bento é a mais antiga igreja da freguesia da Cela e, segundo se diz das mais antigas do Concelho. A procissão de S. Pedro, saía da Capela de S. Bento, com a banda a tocar, ia até ao Largo da Estação da C.P., dava a volta e regressava.
Por altura das festas, Delgado costumava convidar para almoçar, os principais responsáveis da organização, Igreja (padre e sacristão) incluída. Foi assim na qualidade de sacristão que Francisco Eusébio foi algumas vezes almoçar a casa de Delgado e com ele trocou algumas palavras de circunstância.
Apesar de estimar e respeitar pessoalmente Delgado, pessoa afável e popular, conceituado oficial, Francisco Eusébio não participou na campanha eleitoral, porque sendo membro da União Nacional, não podia aparecer como opositor do regime. Mas também não queria aparecer contra Delgado.

Num ano da década de cinquenta que Francisco Eusébio não consegue localizar, no largo da Cela Velha, o andor de S. Pedro, transportado por quatro trôpegos velhotes, após de ter saído da Capela de S. Bento, desequilibrou-se, tendo a imagem, em barro, caído estrondosamente no pavimento, ficando muitíssimo estragada, o que levou a que um daqueles tivesse vociferado, muito mal humorado, em voz bem alta: Rai’ s te partam, partiu-se todo. Acontece que, perto se encontrava o Joaquim Madeira Júnior, que foi a casa buscar um lençol para, piedosamente, recolher os cacos, que voltou a colocar em cima do andor que prosseguiu caminho.

A eletricidade chegou tardiamente à Cela, depois de Aljubarrota a primeira freguesia do concelho ser eletrificada, e graças ao empenho de Delgado.
Qual a razão desse interesse?
Num fim de semana que este veio à quinta, deslocando-se de automóvel, terá dito ao ordenança-motorista, que o caminho era sempre em frente… Este, levou a informação tanto à letra que, antes de chegar a casa, o carro despistou-se numa curva apertada e caiu numa pequena ravina. Ninguém saiu ferido, mas Delgado chegou a casa muito irritado e sujo, tendo este sido segundo Francisco Eusébio, o pretexto para daí em diante reclamar, com todo o peso da sua posição, a luz elétrica para a freguesia.

Quando nos anos trinta se levou a cabo o Plano de Rega dos Campos da Cela, o governo pretendeu lançar uma taxa sobre os utentes, a qual foi considerada muito pesada e difícil de pagar. Sabe-se que Delgado interveio junto do governo, aliás era um especial interessado dado ser grande regante, para a abolir, o que veio a acontecer.
Mais tarde, em meados dos anos cinquenta, o governo pretendeu de novo introduzir uma taxa aos regantes da Cela, mas desta vez foi o Pe. João de Sousa quem manobrou com eficácia, no sentido de a iniciativa não se ter concretizado.

Antes do 25 de Abril, Francisco Eusébio foi Tesoureiro da Junta e Regedor, nomeado pela Câmara presidida por Tarcísio Trindade. A regedoria funcionava em sua casa. Como regedor, sem nada ganhar, competia-lhe fazer notificações, zelar pela manutenção da ordem e redigir informações.
Eusébio, não obstante alinhar com o regime, louva-se de nunca ter tido contactos com a PIDE, colaborado com algum agente ou informador, nem sofrido pressões para fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
A Cela era (é) uma terra de fraco desenvolvimento, com uma população essencialmente rural e as manifestações que, porventura, houvesse contra o governo, aconteciam aos domingos, na taberna.

Não existem registos de notícias de grandes manifestações de apoio expresso em Alcobaça ao candidato Tomás, mas outrossim à política do governo, salvo depois de se saber os resultados eleitorais, com os encómios habituais. É também impossível saber até que ponto os resultados aqui foram viciados, pois a fiscalização das urnas foi inexistente, e as chapeladas eram vulgares. Dos 6.174 eleitores inscritos no concelho, votaram 4.755, dos quais 3.044 no Alm.  Tomás e 1.704 no Gen. Delgado. O Advogado Arlindo Vicente, que era apoiado pelo PC, não foi às urnas, tendo desistido dias antes do ato eleitoral.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS.