quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

RESPONSABILIDADE CIVIL
EXTRA CONTRATUAL DO ESTADO E
DEMAIS PESSOAS COLECTIVAS DE DIREITO PÚBLICO

Fleming de Oliveira


(1)-No seguimento de anteriores informações, sobre a matéria de Responsabilidade Civil do Estado e demais Pessoas Colectivas de Direito Público, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, cumpre fazer mais algumas breves e singelas considerações.
Estas entidades respondem, pelos danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos, que sejam especialmente perigosos.
Todavia, são salvaguardas as situações, em que se prove a existência de força maior, ou de concorrência de culpa do lesado. Tendo em nota, o novo regime, os danos ressarcíveis podem ser os danos gerais, danos emergentes ou lucros cessantes, ou danos especiais, os encargos que incidam sobre pessoa ou grupo sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais, aqueles que ultrapassem os custos próprios da vivência em sociedade, e mereçam a tutela do direito, pela sua gravidade.

(2)-O direito á indemnização, tal como o de regresso, prescrevem no prazo de 3 anos, a contar da data, em que o lesado teve conhecimento do seu direito.
Porém, se o facto ilícito constituir crime, para o qual a lei estabeleça um prazo de prescrição mais alargado, é esse o aplicado.
Não se esqueça, que o direito de regresso, do estado e demais entidades públicas relativamente a um funcionário ou agente, torna-se obrigatório com a presente lei, ao invés da legislação anterior.
Além do mais, passou a existir responsabilidade solidária, nos casos em que os funcionários cometam acções ou emissões ilícitas, com dolo, isto é, com intenção de provocar o dano.
O mesmo se aplica nas situações em que se constate que a sua diligência e zelo foram manifestamente inferiores àqueles que se encontravam obrigados em função do cargo.
Nesta hipótese, o lesado pode intentar a respectiva acção judicial, quer contra o Estado, como também contra o Funcionário ou Agente.
Chama-se, mais uma vez a atenção, por parecer ser relevante o novo regime da prova da culpa, pois que enquanto no anterior, cabia ao lesado esse ónus, agora á uma presunção legal de culpa, leve na prática de actos jurídicos ilícitos.

(3)-Em suma, passa a caber ao estado a demonstração, que não existiu culpa.

(4)-A nova lei está em vigor há cerca de uns 3 meses, pelo que, ainda não é possível ajuizar sobre a sua aplicação prática, mas tudo indica que é um meio posto à disposição dos particulares, que lhes irá permitir fazer a prova mais eficaz dos seus direitos.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

(I)-RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL

Como se sabe, foi publicada, no passado dia 31 de Dezembro de 2007, a Lei nº 67/2007, que visa regular a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, por danos resultantes do exercício das funções legislativa, jurisdicional e administrativa.
Por se me afigurar de interesse para os respectivos serviços do Município, tomo a liberdade de remeter a V.Exª, alguns apontamentos.

(1)-O primeiro aspecto na nova lei é que, embora expressamente dirigida ao Estado e demais pessoas colectivas de direito público, é também aplicável aos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais trabalhadores ao serviço de qualquer entidade pública, por











danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício, bem como ainda, no que decorra do exercício da função administrativa, às pessoas colectivas de direito privado dotadas de poderes públicos bem como respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares.

(2)-No âmbito da responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa, consagra-se que todas as entidades dotadas de poderes públicos são exclusivamente responsáveis, quer pelos danos resultantes de acções ou omissões ilícitas cometidas com culpa (ainda que) leve pelos titulares de órgãos, funcionários, agentes ou demais trabalhadores, quer pelos danos que possam ser atribuídos a situações de funcionamento anormal dos serviços.

(3)-Ao invés, no caso de se tratar de danos resultantes de acções ou omissões cometidos com dolo ou culpa grave, as respectivas entidades serão responsáveis de forma solidária, ficando todavia salvaguardado o direito de regresso, contra quem incorra em tais graus de culpa.

(4)-No âmbito da responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa, mas no tocante à responsabilidade pelo risco, estabelece-se a responsabilidade das entidades dotadas de poderes públicos pelos danos decorrentes de actividades, coisas ou serviços administrativos, especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais de direito, se prove que












houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização.

(5)-No que respeita à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, consagra-se, como princípio geral, a aplicação do regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, embora seja de ressalvar a excepção relativa aos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, que, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam eventualmente incorrer, não podem ser directamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos actos que pratiquem no exercício das respectivas funções, muito embora o Estado goze de direito de regresso contra eles sempre que tenham agido com dolo ou culpa grave.

(6)-Por sua vez, no que concerne à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa, é estabelecida a responsabilidade do Estado e das Regiões Autónomas pelos danos anormais causados aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, quer pelos actos que, no exercício da função político-legislativa pratiquem em desconformidade com a Constituição da República, o Direito Internacional, o Direito Comunitário ou Acto Legislativo de valor reforçado, quer pela omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais.

(7)-Finalmente, consagra-se o instituto da indemnização pelo sacrifício, pois que se obriga o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público, a indemnizarem os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais.

O TEATRO

O TEATRO (no Mosteiro),
TEÓFILO DE BRAGA (P.R.) EM VISITA A ALCOBAÇA (1915) E
MANUEL VIEIRA NATIVIDADE


Fleming de Oliveira
Alguns alcobacenses, ainda se recordarão, do antigo Teatro de Alcobaça, a funcionar no Mosteiro. Aliás, há várias fotografias dele. Em meados da década de 1920, começou a esboçar-se um movimento na Vila para que esta pudesse dispor, finalmente, da casa de espectáculos que merecia e o progresso impunha. A direcção do Teatro Alcobacense oficiou à Câmara Municipal para a cedência de um terreno na Praça do Município, onde ao tempo existia a Igreja Nova que, haveria mais tarde de ser demolida.
Numa época em que a rádio dava os primeiros passos, não havia obviamente televisão e as deslocações para fora da terra se processavam com alguma morosidade, o teatro e o incipiente cinema, ainda mudo, tinham enorme importância nos hábitos dos portugueses. Ir ao teatro ou ao cinema, implicava um certo ritual, desde logo, no vestuário que as pessoas cumpriam, muito gostosamente, e com seriedade. As récitas eram devidamente anunciadas e aguardadas com muita expectativa.
O Teatro existente em Alcobaça fora fundado em 1839, por iniciativa de um grupo de destacadas personalidades locais, que abriram subscrição pública entre os habitantes da Vila. As madeiras necessárias à obra foram oferecidas pelo Conde de Vila Real.
O local escolhido, foi o Refeitório dos Monges, no Mosteiro. De facto, após a extinção das ordens religiosas em Portugal, a fuga dos monges e a depredação do Mosteiro, este foi delapidado em grande parte do seu património. O governo entregou à Câmara Municipal uma zona do Mosteiro, não afecta ao culto, através da Portaria do Ministério da Fazenda, de 4 de Agosto de 1837, como consta do auto de posse de 10 de Fevereiro de 1838, presidido pelo Administrador Geral do Distrito, confirmada pela Carta de Lei de 14 de Fevereiro de 1862 e pelo Auto de 3I de Março de 1862, sendo Administrador do Concelho, Manuel Sanches Figueiredo.
O Teatro foi inaugurado, com enorme sucesso, em 6 de Janeiro de 1840, com um drama histórico intitulado Pedro, o Grande ou a Escrava de Marienburgo. O grupo que actuou, era exclusivamente composto de amadores que se dedicavam, nas horas vagas, com muito empenhamento e amor ao teatro.
Obviamente, ao longo de um século, muitas peças ali foram apresentadas. Isso implicou, também, alguns melhoramentos, que pecavam sempre pelas características do local. Entre vários, há a destacar o pano de boca pintado em 1865, por um conhecido cenógrafo de Lisboa, considerado um dos melhores do seu tempo.
Alcobaça, ao longo dos anos e pelas mais diversas razões, tem sido visitada por ilustres personalidades nacionais e estrangeiras. Algumas dessas visitas ficaram memoráveis.
Recordamos, desta vez, a que em 27 de Setembro de 1915, Teófilo de Braga, Presidente da República, veio fazer à nossa vila, para presidir à inauguração de um importante certame.
Tendo partido de Lisboa nessa manhã, numa carruagem salão, atrelada ao combóio correio, Teófilo de Braga era aguardado por muito povo à sua chegada à estação de caminho de ferro de Valado dos Frades.
Alcobaça era terra de forte consciência democrática e republicana, pelo que sendo esta a primeira vez que um Presidente da República aqui se deslocava, a expectativa e o entusiasmo eram enormes. Ao longo do percurso até Alcobaça e, sobretudo, à entrada dos Paços do Concelho havia muita gente nas janelas engalenadas e na rua, que dava numerosos vivas.
Após a recepção na Câmara Municipal, o Presidente da República e a respectiva comitiva, de que fazia parte o Ministro do Fomento, foram almoçar ao Clube Alcobacense, cujo salão estava ricamente ornamentado pelas senhoras da melhor sociedade. A Banda dos Marinheiros da Armada, presente, tocou alguns números do seu excelente reportório durante o banquete.
Pelas 16 horas, realizou-se a inauguração da Exposição de Pomologia, Flores e Plantas Ornamentais, no Claustro de D. Dinis, razão principal da visita presidencial.
Aguardavam, aí, o Presidente, entre outros, os internados no Asilo dos Velhinhos, as crianças do Asilo da Infância Desvalida e um belo grupo de raparigas do campo, com vistosos trajes regionais, o que muito agradou ao ilustre visitante que não se cansou de o elogiar.
Serviu de cicerone ao Senhor Presidente, um dos primeiros responsáveis pela organização da exposição, Manuel Vieira Natividade.
Terminada a visita, Teófilo de Braga, dirigiu-se ao Asilo dos Velhinhos, inaugurado a 4 de Maio de 1913, que se encontrava a funcionar no palacete da Srª D. Maria e Oliveira, pessoa que fez questão de ir cumprimentar pessoalmente. Tratava-se, como se sabe, da viúva do benemérito e estimado capitalista Manuel José de Sousa Oliveira, natural do Porto, que legou toda a sua fortuna à obra dos velhos de Alcobaça.
Refira-se, a propósito, e por mera curiosidade, o que consta do artº 6º do primitivo Regulamento do Asilo, da autoria do próprio fundador:
No meu Asilo só serão admitidas as pessoas que tenham uma vida honesta e que tenham sido trabalhadores, visto que considero o meu Asilo como uma recompensa ao trabalho e não como um prémio aos desonestos, aos alcoólicos e aos mandriões. Só serão admitidas as pessoas que tenham tido uma vida absolutamente limpa.
Teófilo de Braga ainda visitou o Jardim-Escola João de Deus, o Hospital da Misericórdia e o Posto Agrário.
À noite, decorreu uma sessão solene no Claustro de D. Dinis, já que teve lugar a Festa dos Frutos. Além da Banda dos Mainheiros da Armada, actuou a Banda de Infantaria 7.
Todavia, as honras da noite couberam a Manuel Vieira Natividade, que fez uma notável conferência intitulada A Poesia dos Frutos.
Mais do que uma vez escrevemos, acerca de Natividade, pessoa que ainda hoje está bem presente na memória de muitos alcobacenses, pela sua elevada estatura intelectual e moral. Farmacêutico de profissão, que não talvez por devoção, a sua farmácia, situada no Rossio, era ponto de encontro das pessoas gradas da terra. Foi sobretudo um estudioso de Alcobaça, da região e das suas gentes, que perpetuou em obra valiosa e extensa.
A sessão cultural continuou com uma récita de versos de Bulhão Pato e António Correia de Oliveira e, terminou, com um eloquente discurso do Ministro do Fomento, Manuel Monteiro, que não perdeu a oportunidade de o entremear com a apologia da defesa à República, a homenagem à Alcobaça histórica e agrícola que engrandecia o povo rural e promovia o seu desenvolvimento.
O Presidente da República e comitiva que se deslocara de Lisboa a Alcobaça, passaram a noite no chalet do Director da Companhia Fiação e Tecidos de Alcobaça, tendo a guarda de honra sido feita de noite pelo corpo privativo de bombeiros daquela unidade fabril.
Mais tarde, aquando do falecimento de Natividade, Teófilo de Braga, em depoimento transcrito na Semana Alcobacense, exprimiu-se do modo seguinte:
Manuel Vieira Natividade consagrou o seu talento literário, artístico e crítico e também os seus estudos arqueológicos, históricos e económicos à glorificação monumental de Alcobaça. Compete-lhe a divisa que para si se impôs o quinhentista Ferreira:
Eu desta glória só fico contente,
Que a minha terra amei e a minha gente.

CAÇA AOS GAMBUZINOS

CAÇA AOS GAMBUZINOS

Fleming de OLiveira




Francisco Mariano, doente e com dificuldades de locomoção, gosta muito de contar a velha partida da caça aos gambuzinos que, há perto de setenta anos, pregou ao primo e seu bom amigo Tó Mariano (hoje bancário reformado), ambos com uns oito ou nove anos que, recém chegado de Lisboa, se encontrava a passar as férias de Verão, em casa dos avós paternos, nos Carris de Évora. Não sabendo bem o que eram Tó, na sua ingenuidade imaginava talvez serem uma espécie de mistura entre um pirilampo e um ouriço cacheiro.

Francisco começou por dizer ao primo que o devia alertar que a caça aos gambuzinos é rigorosamente proibida, pelo que o não podiam contar a alguém.
Assim, logo depois do jantar, algo excitados, foram para o campo, onde procuraram árvores com tocas (buracos no tronco), buracos no solo ou buracos nas rochas.
O pobre do rapaz, acabou por ficar umas duas ou três horas de apito na boca, lanterna e saca aberta nas mãos, à espera que o primo, batedor experimentado como se reclamava, fizesse o cerco e assim correr na sua direcção, os famigerados e assustados bichos.
A aventura começou quando o Francisco lhe deu um apito e uma saca de serapilheira, que foi buscar ao celeiro do avô, e por sua vez se muniu de latas e paus para fazer barulho.
Tó Mariano, foi abandonado naqueles preparos e prosseguiu sozinho a caçada, apurando o ouvido ao mínimo ruído.
A experiência apenas acabou quando o frio, o medo ou o cair em si, o trouxeram, enfim, à realidade.

Este instante, constituiu para o Tó, um dos momentos de perda da inocência (que diz que bem lhe serviu na banca), e a partir daí o mundo não seria mais o que parecia, como depois reconheceu sem acrimónia.
Desabou um dos pilares que sustentava a sua infantil e lisboeta visão do mundo e da realidade.
Tó Mariano nunca mais esqueceu o incidente e acabou por crescer com a expressão na boca, vai caçar gambuzinos.

A CENSURA/CONTROLO DE OPINIÃO DAS PESSOAS E MASSAS

CENSURA/CONTROLO DE OPINIÃO DAS PESSOAS E MASSAS
A DREN E O PROF. CHARRUA


Fleming de Oliveira





.A dicotomia censura/controlo de opinião não é pacífica, pois podem ser ou não coincidentes.
A censura não é processo de coacção da expressão, exclusivo do Antigo Regime, Feudal ou Iluminado, ou mesmo do Estado Corporativo/Salazarista, nem dos regimes políticos totalitários. Entendamo-nos!
É uma máquina intrínseca, ainda que não expressamente reconhecida, de todos os sistemas ou agentes de poder.

Recordemos o que foi a novela à volta do diploma de engenharia de Sócrates e a avaliação do papel, qualidade, da comunicação social portuguesa.
Algumas pessoas discordaram da oportunidade e a legitimidade das notícias e críticas (1), sobre a forma como foram obtidas as habilitações académicas do nosso Primeiro Ministro, cuja competência política, por isso, não vem directa ou necessariamente ao caso.
Admito de bem grado que há assuntos muito mais importantes, que o espectáculo não foi sido bonito, as conclusões não serão, eventualmente, elogiosas para o nosso governante, mas o dever de uma comunicação social livre no Portugal de hoje, é mostrar o lado bonito e o menos bonito, de um governante ou de uma política, sem o ocultar, dada a natureza pública.

Soares é fixe!, mas não se coibiu de recordar com emoção que quanto mais a luta aquece mais força tem o PS, de acusar a direita de desferir ataques ao PS e seu secretário-geral, com raiva, sem critério e sem alternativa credível para oferecer, comparando os ataques sórdidos e infundados, à situação vivida por Ferro Rodrigues.

Nas comemorações deste ano de 2007, do 25 de Abril, o PSD pela voz de Paulo Rangel fez na A.R, uma intervenção marcante, contra corrente, em que aborda o controlo de opinião.
Admito que, algumas vozes, digam que esta minha invocação é facciosa/comprometida.
Pelo menos, não o pretende ser.

Rangel, começou por avisar que há ameaças e nebulosas que espreitam e envolvem a democracia e, deu como exemplo a intervenção do Governo Socialista na área da Comunicação Social, pois, nunca como hoje se sentiu tão grande apetência do poder executivo para conhecer, seduzir e influenciar a agenda mediática.
Adiante referiu que falava não só da conivência ou da banalização e vulgarização dos contactos institucionais com jornalistas, mas também das nomeações de administradores ou editores convenientes.
Habitualmente, considera-se a Liberdade de Expressão como uma componente essencial dos regimes democráticos e a Censura/ Controlo de Opinião, como dos regimes autoritários/totalitários.
Cavaco Silva, ainda nas comemorações deste ano do 25 de Abril, sublinhou que, Portugal deve pensar-se como uma democracia amadurecida. Uma democracia em que o escrutínio dos poderes esteja assegurado por meios de comunicação social isentos e responsáveis.

Com a restauração da democracia política em Portugal, ficou definitiva e totalmente abolida a Censura (2). Esta maneira de dizer, não corresponde, porém, ao que por vezes ocorre, na prática política quotidiana.
José Sócrates, classificou liminarmente, displicentemente diria eu, a referida intervenção de Rangel/PSD, como uma forma de mero bota-abaixismo. O PSD só sabe criticar dizer mal. Ora eu acho isso mal para o dia da Democracia.

O Ministro Augusto Santos Silva, insistiu na mesma linha que o discurso do PSD estava completamente fora do tom. A certa altura pensei que Rangel estava a fazer um exercício crítico sobre o estado do regime político democrático na Madeira.

O objectivo destas notas não é fazer polémica, mas lançar temas a debate e reflexão, mas como muita gente deste nosso País com quem falo, sinto que anda por aí muita intolerância, censura velada, coação do patrão, do Chefe de Repartição, do Partido, do Governo ou do Presidente da Câmara, tudo a vulgarizar-se sem que haja lugar, não obstante a grandes sobressaltos cívicos.

O recente caso Pina Moura/Prisa, também é susceptível de merecer algumas considerações (3). A Prisa, empresa espanhola, detentora de posição dominante na Media Capital, proprietária da TVI e do Rádio Clube Português, contratou para a dirigir Joaquim Pina Moura, militante socialista, ex-Ministro da Economia e das Finanças, presidente da Iberdrola e agora da Media Capital, bem como outro destacado socialista, ambos muito próximos de Sócrates.

Isto está mal? Não posso jurar!

Pode ser que o que parece (4) não seja afinal, e assim é fumo, sem fogo...
Mas sabe-se que a Prisa foi criada, é gerida e sujeita-se ao PSOE.
Em democracia, a liberdade exerce-se pela resistência a tentativas para a controlar e, apesar de se avolumarem alguns sinais preocupantes, nada nos permite asseverar que em Portugal tenham deixado de existir condições objectivas, para que o escrutínio dos poderes seja assegurado pelos meios de comunicação social isentos e responsáveis (5).
Creio que, interpretando o pensamento do Presidente, podemos pensar que a seguir este rumo desviante, o futuro da nossa democracia perde qualidade, corre riscos de se afastar dos princípios de uma democracia (6) constitucional, para rumar a uma democracia meramente formal.
Devo dizer e reiterar, embora muito filosoficamente e em termos não desculpabilizantes, que não existe por natureza, sociedade sem censura. O que é bom e justo para um de nós, pode não ser para os outros.

A censura, é como já afirmei uma das dimensões intrínsecas da natureza humana, de qualquer sistema de poder ou de sociedade (7).
Aquilo a que vulgarmente se chama o fim da censura institucionalizada, não é senão a passagem de um estado de poder ou sociedade dominado por uma modalidade específica de censura, para outro estado dominado por outra modalidade de censura, subliminar, obviamente não assumido como tal seja qual for o Poder.

.Em todos os regimes políticos, sociedades e até famílias, existem modalidades de censura ou controlo de opinião, reconheça-se isso ou não, e por mais liberais que se reclamem. Podemos definir (8) algumas destas modalidades:
-(a)-Uma censura aguerrida,
-(b)-Uma censura despótica e
-(c)-Uma censura democrática (?).
Na nossa concepção de
-censura aguerrida,
predominam os mecanismos estratégicos da defesa e ataque direccionados a um inimigo real ou imaginário, destinados a preservar a coesão do tecido político-social. Tudo o que intentar contra esta ordem e estratégia, tem de ser condenado.

Na nossa concepção de
-censura despótica,
a ordem ditada é a proibição de textos ou discursos que escapam ao seu controlo.
O poder político pretende sempre fazer crer que teve a natural necessidade de abolir a censura imposta pelo regime oposto ou deposto.
E depois que a censura é, ao mesmo tempo, e não obstante a sua face odiosa, o perigo mortal que espreita, persegue-o qual fantasma, e que terá de ser mantida, enquanto necessário.
O poder sabe que tem de continuar a censurar e que no dia em que a censura se tornar insuportável ou forem desvendados os seus processos, os seus dias chegaram ao fim.
O poder, mesmo dito democrático como o nosso, vive do discurso mítico da liberdade de expressão e da transparência dos seus processos, seja com governantes como Cavaco Silva, Soares, Guterres, Barroso, Santana Lopes ou Sócrates.
A Liberdade de Expressão, mesmo numa democracia liberal/representativa, é pois um interessante e necessário mito, entendamo-nos nesta expressão!, antes de mais porque é um discurso legitimador do poder e da sua manutenção, seja quem for o partido que o detém.
O poder autoritário, bem sabe que só pode censurar, impunemente, que só pode disciplinar e controlar os discursos e as acções, se o fizer em nome da utilidade social, do bem comum, do serviço público, da maioria, de Deus, do capital ou de qualquer outra invocação, mais ou menos generosa.

Seja como for, todas as razões conduzem à do censor, soberana, à razão da vontade de poder que qualquer cidadão deve interiorizar, como a razão primeira e última da sua actuação.
Mas a liberdade total de expressão e de acção, a plena transparência da palavra e do agir, é um discurso utópico, na medida em que a totalidade ou a plenitude do dizer e do fazer, equivaleria à própria negação da linguagem, à morte da palavra, ao silêncio total.
Filosofia minha, repito?
Cinismo?
Talvez ambos…
Teoria desculpabilizante de um governo, socialista ou não, ou do regime democrático?
Afinal, questiono aqui, por que é que as pessoas falam?
Falam, precisamente, porque nunca conseguem dizer tudo o que sabem ou querem (9), porque o mundo não é transparente, nem as palavras coincidem com as coisas.
Falam, porque mesmo os homens estão condenados à permanente descoberta, à medida que o enunciam, que o dizem.
Há um abismo intransponível entre as palavras e as coisas, entre o ser e o dizer.

O Ministro dos Assuntos Parlamentares Santos Silva, considera na sua expressiva e intelectualizada perspectiva, que o combate ao jornalismo de sarjeta é um direito dever de cada uma das suas vítimas e do conjunto dos cidadãos.
Nobres e justas palavras, direi, pois ainda segundo o mesmo Santos Silva, jornalismo de sarjeta é o que viola grosseira e deliberadamente, preceitos dos códigos deontológicos dos profissionais da informação.
O jornalista deve salvaguardar a presunção de inocência dos arguidos, até trânsito em julgado. O jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.

Mas, na prática, o Poder que ele serve não alimenta distorções, que não reconhece? As grandes questões políticas, tendem a ficar sem controlo democrático, se possível nalguns casos.
Num Estado de Direito Democrático, embora se trabalhe no pressuposto de que é para o bem público, sucede que há muito agente a prestar vassalagem a criaturas eleitas ou nomeadas, cujas competências se escostam na mera gestão e cuja prepotência tende para o infinito.
A personalização extrema das notícias, a centralidade dada a pequenos conflitos e tricas, a utilização das crises para instigar conflitos institucionais, a excessiva presença da voz do jornalista nos espaços noticiosos, que vistos em conjunto parecem comprometer a principal função do jornalismo: informar.
As ameaças e condicionantes à liberdade de expressão e de informação em Portugal, não são uma criação do governo PS ou do Centrão.

As questões importantes são cada vez mais discutidas em gabinetes fechados e a informação trabalha apenas os problemas laterais que lhe chegam.
Governos anteriores, partidos agora na oposição, tiveram, eventualmente, uma participação tão activa e criativamente condicionante, quanto a que agora justifica a sua veemente preocupação!

Sabemos bem a quem se dirigia essa preocupação de Santos Silva.
Mas permito-me deixar aqui um pequeno reparo, os nossos políticos não têm grande memória. Recorde-se o que foi a ácida campanha/cobertura jornalística em fins de mandatos de Cavaco Silva, 1995, António Guterres, 2002, e Santana Lopes, 2005.
Nunca respeitei a postura de jornalistas que se assumem como líderes de opinião, porque são comprometidos e acabam por transmitir a imagem mais negativa, distorcida da política e dos políticos, funcionam quais abutres da comunicação política, e ocupam um espaço crescente na área de opinião dos jornais.
Neste abismo que se estende diante de nós, é que precisamente se instala o poder com a censura ou controlo de opinião, suspenso sobre as nossas cabeças, ao mesmo tempo proibindo e obrigando a dizer.

Nós, os mais velhos, recordamos relativamente bem o que foi a censura, objectiva, política, que cortava a palavra, a censura dos funcionários encartados ao serviço do salazarismo/caetanismo.
Mas, como fazer compreender aos mais novos a censura moderna, do PS, PSD/CDS ou PCP que obriga politicamente, subreptícia ou sofisticadamente, a dizer, não dizer ou fazer, não fazer?
.A censura do Lápis Azul, é sempre a do dizer, do enunciado divergente, que se abate sobre o direito à vida cívica, privada ou mesmo biológica do censurado.

A censura dominante nos regimes democráticos, é subtil, sofisticada, e passa, subrepticiamente, pelo controlo de opinião com que frequentemente se confunde.
É a censura que obriga a dizer, estimula a expor publicamente os sentimentos, a suportar a tagarelice interminável que se encontra nos meios de propaganda do poder, sob pena de almoços que não se comem ou benesses que passam ao lado (10), e se derrama pelo tecido social. Esta censura, em democracia, associada ao controlo de opinião, tem horror ao silêncio.

Para o salazarismo, a palavra era perigosa.
Para o nosso Estado Democrático o silêncio é perturbador, na medida em que potencia o risco de deixar proliferar imagens incontroladas dos seus responsáveis ou das suas propostas.
Não quero, em suma, concluir que nos regimes despóticos/ autoritários, não exista igualmente medo do silêncio, apto a fazer germinar a semente da revolta, nem que desapareça nos regimes democráticos, o medo dos discursos não conformes, da palavra que não se adequa aos intentos do poder, cuja manutenção se visa por natureza assegurar.

Pela subtileza e complexidade, a censura, na sua forma de controlo de opinião, nos regimes democráticos é certamente difícil de apreciar, por insidiosa, de contrariar, por eficaz, e de documentar.
O recente caso do Diploma de Sócrates, que já abordei, obtido em circunstâncias aparentemente estranhas, motivou suspeições sérias se este ou seus assessores, terão tentado controlar ou manipular a informação, para que só saísse, ou não saísse, certo tipo de informação. Não é normal, nem defensável, que o Primeiro Ministro, ou seus assessores, tenha tido esses contactos.
Como disse Rebelo de Sousa, até posso admitir que não tenha querido pressionar, mas objectivamente quando um ministro me fala para aqui antes de eu vir fazer um programa ou a seguir, é obviamente para me convencer de alguma coisa. É uma pressão (…). Mesmo que na cabecinha dele não seja. Pressionou. E pressionou em privado antes de haver os esclarecimentos do gabinete, em público (11).
Absolutamente intolerável e inadmissível parece ter a situação de um professor do Porto, antigo deputado do PSD, o Prof. Fernando Charrua, de que já falámos com um processo disciplinar instaurado, levantado pela Directora da DREN mas suspenso imediata e preventivamente, por alegadamente se ter referido de forma desrespeitosa ou jocosa, ao primeiro ministro sobre a sua mãe, numa versão, ou a forma de obtenção do seu diploma de engenheiro, agora quem precisar de um doutoramento manda o certificado por fax, só por fax, mesmo que seja falso, caso contrário não vale, numa conversa dentro de um gabinete com um colega, assessor da directora da DREN, que veio diligentemente bufar para esta e para fora. Na minha opinião, como a de muita boa gente, como a dos socialistas não carreiristas, a responsabilidade política última do processo disciplinar, instaurado pela Directora da DREN ao dito professor por pretenso delito de opinião, é do Governo que legitima pela inércia e silêncio, a aguardar calma e seraficamente o decurso do resultado do inquérito…, esta atitude de perseguição da liberdade individual de expressão, que muito se assemelha a um comportamento próprio do antigo regime, como bem recordamos e acima referi.

O próprio Presidente da República sentiu necessidade de dizer a este propósito que queria ver o caso esclarecido rapidamente (12), pois se foi uma piada em relação a um político, como é frequente no nosso País, espero que o mal entendido seja rapidamente esclarecido.
Sobre o mesmo assunto, José Sócrates, a alegada vítima da ofensa, ao seu diploma ou à sua Mãe, conforme as versões, limitou-se a dizer enfadada e formalmente que ninguém será sancionado por delito de opinião, (13) e adiantou que não acompanha processos disciplinares movidos por instituições do Estado a seus funcionários. Aliás, o MNE demarcou-se da decisão, com o argumento peregrino que a tutela não tem que esclarecer rigorosamente nada…. (14).
Mas o visado, foi suspenso preventivamente e afastado das funções que exercia há bastantes anos (15).

O Provedor de Justiça, também interveio neste caso insólito da nossa democracia e pediu esclarecimentos à D.R.E.N., muito concretamente, a cópia da proposta do despacho que determinou a suspensão preventiva do professor.
A Ministra da Educação, por força do incómodo debate que durou três meses após o despacho, veio a mandar arquivar o processo, com uma solução política, sem ter, todavia, eliminado as contradições polémicas com que o caso começou e se enredou.
Para a Ministra Maria de Lurdes, tudo se resumiu a um processo disciplinar como outro qualquer, concluído porém, com uma solução política.
A verdade é que neste caso, o arquivamento não teve consequências práticas, a situação não voltou ao anterior, pois manteve-se a revogação pela D.R.E.N. da requesição do Prof. Charrua, entendida pelo próprio e muita gente, como a decisão que lhe queria ser aplicada, houvesse ou não processo.

Mas o bufo, apesar de o seu serviço ter sido extinto, foi nomeado assessor da senhora Directora da D.R.E.N.
Para encerrar este assunto, parece-me ser mais que correcto dizer, que foi algo que já se supunha impossível neste nosso Portugal de 2007.
Como se referiu atrás, jamais se pode defender que alguém pode ser insultado, ou tem de aceitar um insulto.
Dar ouvidos a bufos, e premiá-los, é recordar as receitas da P.I.D.E. Defender que se esteve perante uma mera piada, ainda que de mau gosto, não é verdade.
Fazer de conta de que nada se passou, é um péssimo precedente.
Perante a expressa e nada subtil censura do Lápis Azul, ficava paradoxalmente de alguma maneira salva a liberdade de pensar e a honra de resistir, por vezes de forma heróica. Perante os processos insidiosos da censura ou controlo de opinião nos regimes democráticos, as vítimas dificilmente podem por vezes salvar a honra da sua resistência ou a liberdade de pensar. Os processos de censura nos regimes democráticos, são variados e os seus recursos praticamente ilimitados, graças à natureza abstracta e sofisticada dos mecanismos à disposição e por demais estudados. A escrita jornalística pode ser um dos processos mais sofisticados do mecanismo, não assumido da censura, em democracia. A forma estereotipada, feita de chavões pré-fabricados, de frases feitas, de minutas destinadas a servir os mais diversos usos, são alguns dos processos através dos quais se reproduzem os lugares comuns, a ideologia massificadora e acrítica, a construção de uma leitura maioritária, de uma escrita conforme dos acontecimentos, da experiência ou da história, impedindo outras leituras e/ou escritas divergentes.

Ressalta desta reflexão que a censura não é hoje tanto a proibição de dizer o que não se gosta ou convém, mas a obrigação de em certas circunstâncias dizer e fazer o que é conforme às conveniências, ao senso dito comum, o que é banal, e responde às expectativas ou exigências pontuais, é politicamente correcto.
Ela está intimamente ligada por contraposição ao mito da objectividade jornalística, uma escrita sem sujeito, ponto cego de todas as subjectivações e conformidades. Um processo de requintada censura nas sociedades democráticas, consiste no mecanismo da sedução e não mais no processo da repressão.

Programando o que alicia, o que diverte, o que distrai, canalizam-se oportunamente os impulsos, sempre carregados de cargas explosivas, desmobilizando-os com a cumplicidade de todos e de cada um.
Há de facto uma dimensão de censura/controlo na própria programação das telenovelas, para jovens e não só, e dos concursos televisivos, nas horas deixadas livres pelo trabalho quotidiano.
.Um processo particularmente relevante de censura/controlo de opinião, é o processo de redução de tudo e de todos às médias estatísticas das audiências, desviando o olhar de tudo o que não se configura nos espaços da maioria, eliminando o não pertinente ou o desinteressante.
Utilizando o conhecimento e a cumplicidade das ciências humanas inicialmente com um conteúdo muito teórico, mas que têm evoluído rapidamente no seu experimentalismo, este processo assume-se com uma naturalidade aceitável.
Um certo saber técnico e formação profissional específica, servem de maneira acrítica este arsenal de censura/controlo de opinião. Basta ver como os políticos populistas estão empenhados em desviar para estes fins os recursos disponíveis, em detrimento dos projectos de formação crítica e de investigação fundamental.
Não se atrevendo a dizê-lo, e invocando sempre as mais nobres e generosas intenções, o que está em jogo é uma autêntica e mal disfarçada estratégia de censura/controlo de opinião para assegurar o poder.
Nos regimes totalitários/autoritários, a censura é una, visível no rosto severo do tirano, legitimada pela sua vontade.
Em democracia, ela é plural, difusa e amorfa, legitimada pelo rosto anónimo das maiorias que se dizem defender, pela categoria moderna do povo, visível e personalizada no corpo dos seus representantes legítimos, constituídos tanto pelo mecanismo estatístico do voto de que são objecto, como sobretudo pelo discurso sedutor de que são sujeito.

A censura apresenta-se ao mesmo tempo como componente e como reverso da permissividade, controlo de opinião, enquanto efeito da vontade soberana das supostas maiorias. Não se trata de uma vontade soberana de natureza despótica, outrossim, sedutora e simuladora.
Para o tirano é aquilo que ele diz que é, na medida em que interdita o acesso aos processos de confirmação e de infirmação da sua verdade, assentando no silêncio que impõe ao discurso dos adversários. O tirano relega para as periferias do discurso dominante os restos, a escória, do poder uno e indivisível.
A pretensão empírica dominante nas ciências humanas, não é capaz de deter o processo moderno de censura, por várias ordens de razões.
A limitação grosseira da denúncia humanista à censura do dictum, impede de perceber que preside aos factos de censura uma ordem e um processo nos quais eles se enraízam, ordem e processo que constituem o modus da enunciação.
E esta metodologia, habitual nas ciências humanas sobre os pressupostos constitutivos dos seus objectos de conhecimento, que é responsável, internamente, pela forma tautológica do seu saber e, externamente, pelos usos e abusos tanto humanistas, como tecnológicos a que se prestam.
É por estas razões que neste sentido as ciências humanas e o seu estudo, acabam por ser o grande suporte do poder, oferecendo os instrumentos indispensáveis à aceitação de uma nova ordem de censura.

NOTAS AO TEXTO:

(1)-Como se se tratasse de uma mera cabala ou intriga de sopeiras, levando ao julgamento de Sócrates na comunicação social.

(2)-Pelo menos a institucionalizada. No ano passado fora o caso de António Lagarto, dispensado de funções no Teatro D. Maria II. Mas ainda assim depois desse e do da DREN, subsistiu o caso da Directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho, exonerada pelo Ministro Correia de Campos, porque terá permitido afixar o recorte de uma entrevista que o incomodou, o que a visada negou. E o da Secetária de Estado da Saúde, Srª. D. Cármen Pignatelli que em Julho de 2007 avisou, por excesso de zelo ou a mando de alguém, que pode-se falar mal do governo, mas só em casa. Em termos de linguagem, Salazar tinha mais pudor. Neste verão de 2007, a bem sucedida e muito conceituada Directora do Museu Nacional de Arte Antiga, foi dispensada pela Ministra da Cultura, alegadamente potr ter ousado, manifestar fora de casa, a sua discordância em relação ao modelo de gestão daquele museu. Ainda este ano, o Director do Teatro S. Carlos, o italiano Paolo Pinamonti, foi exonerado pelo Governo, perante protesto geral. Falaram demais…Em ambos os casos sem poder intervir, Cavaco Silva, manifestou publicamente e não obstante a sua habitual parcimónia de linguagem, a sua perplexidade perante estas enormidades, onde se faz tábua rasa da competência ou da qualidade, que nos discursos fica muito bem reivindicar, de quem soube fazer muito melhor, apesar das sabidas dificudades de natureza financeira e burocráticas. Nenhum destes cargos é de confiança política, não consta que tenha havido quebra de dever de lealdade para com a tutela. Mas não obstante…

(3)-À mulher de César não basta ser séria.

(4)-Um compromisso político-partidário.

(5)-Como pediu Cavaco Silva, no seu discuso na AR, nas comemorações em 2007 do 25 de Abril.

(6)-República.

(7)-Ou mesmo familiar.

(8)-Sinteticamente, e sem pretensões rigorosas.

(9)-Tudo é algo que não existe!

(10)-É preciso criar factos políticos, nem que seja para distrair as atenções de outros mais penosos.

(11)-As Escolhas de Marcelo, in RTP 1.

(12).-Rapidamente, à moda do tempo que demoram os despachos do Estado.

(13)-Será que poderia dizer outra coisa?

(14)-Comunicado da Ministra da Educação.

(15)-E, a final, o processo foi arquivado.

DUAS BOMBAS

DUAS BOMBAS ATÓMICAS SOBRE O JAPÃO *sessenta anos depois*

Fleming de Oliveira


Decorreram sessenta anos sobre o termo da última Guerra, na Europa e no Pacífico. Creio que nenhum momento da nossa era, marcou tanto o mundo. Daí, o seu permanente fascínio, a perene fonte inesgotável de ensinamentos e invocações, com interesse e actualidade.
Neste Agosto de 2005, decorreram sessenta anos sobre o lançamento das bombas sobre Hiroxima e Nagasaki, depois da rendição da Alemanha nazi, enquanto que os japoneses continuavam a lutar no Pacífico. Muito se escreveu e disse sobre este acontecimento, que continua envolto em secretismo e controvérsia.
Segundo reza a história, o Presidente Roosevelt, no início da guerra tinha-se inicialmente oposto ao bombardeamento de centros populacionais civis alemães, pois o bombardeamento implacável de civis através do ar, tem chocado a consciência da humanidade.
Todavia, o esforço da guerra deu lugar, em breve, a uma dura e inelutável realidade, o bombardeamento de populações civis por um lado ou outro dos beligerantes, tornou-se prática comum. Destaquem-se os casos de Tóquio ou Dresden. Os ataques, que em determinada altura mereceram a oposição de Roosevelt, passaram a ser considerados como uma opção estratégica para por fim rapidamente ao conflito. A história é feita de decisões para harmonizar o presente, mas com consequências imprevisíveis para o futuro. Em Setembro de 1944, Roosevelt e Churchill tinham chegado a acordo quanto à necessidade de bombardear o Japão, eventualmente com a Bomba A. Falecido Roosevelt, o seu sucessor H. Truman, parece não ter partilhado das suas dúvidas, e declarou após saber do êxito do lançamento das duas bombas que este é o acontecimento mais notável da História. Gastamos dois mil milhões de dólares na maior aposta científica da História e ganhamos!
Numa perspectiva bem diferente, o físico J. Robert Oppenheimer depois de saber os efeitos de um ensaio nuclear no Novo México, Los Álamos, em 16.06.1945, havia prevenindo aquilo que ele e outros já sabiam, reconhecendo o perigo, mas encontrando uma grande esperança, sabíamos que o mundo não voltaria a ser o mesmo.
Numa guerra em que os japoneses estavam de corpo e alma fanaticamente envolvidos, pareceu durante algum tempo que esta era a única forma de obter a sua rendição, doutro modo era tida por impossível, acabar com a guerra à custa de menor perda de vidas dos boys.
Mas passados estes anos todos, as coisas revelam-se um pouco diversas do que pareciam ser de início. A grande esperança do uso das armas nucleares é algo difícil de conceber, ainda hoje. As bombas foram mesmo necessárias contra o Japão?
Revelações posteriores demonstraram que nos dois meses anteriores ao lançamento das bombas, o Japão já negociava ou queria negociar um tratado de paz com os americanos.
A Guerra Fria ainda não começara, mas já se vislumbrava, e a URSS já ensombrava as perspectivas de paz do pós-guerra. A URSS acabava de entrar em guerra com o Japão e preparava-se para exigir um controlo parcial deste, como fizera com a Alemanha, o que repugnava aos ingleses e americanos. A Bomba além de actuar directamente sobre o Japão, era uma mensagem clara à URSS sobre o poderio americano. A 14 de Agosto de 1945, o Imperador tinha aceite as condições dos Aliados e, entre lágrimas, declarou que é meu desejo que vocês, meus ministros, cedam à minha vontade e aceitam a resposta aliada.
O Japão estava derrotado, rendera-se. Mas a política de guerra japonesa ainda teve um estertor, quando um grupo de oficiais radicais tentou um golpe de estado fracassado, por não ter qualquer apoio popular, para assumir o poder e continuar a guerra. Por isso à distância de sessenta anos, pode-se afirmar com alguma segurança que o bombardeamento atómico sobre Hiroxima e Nagasaki não foi determinante para pôr termo à Guerra. A entrada da URSS na Guerra e a certeza que esta estava irremediavelmente perdida, parece ter sido decisivo para o Imperador do Japão. Chefes militares de enorme peso e prestígio como Eisenhower ou MacArthur, eram de opinião que não havia justificação para o bombardeamento atómico e a consequente carnificina. Se as explicações sobre a utilização em Hiroxima são refutáveis, por maioria de razão parece acontecer quanto a Nagasaki. Se a demonstração do poder da bomba acabava de ser feita, porque repetir logo a seguir tamanha crueldade?
Com alguma perverso cinismo, há quem argumente que os americanos não teriam utilizado a bomba contra os alemães, mas contra os japoneses por os considerarem uma raça inferior…
Também aqui se aplica a máxima romana ai dos vencidos.
O vencedor é aquele que define as regras. Os Tribunais de Nuremberga e Tóquio foram, naturalmente, tribunais de vencedores, e nunca Aliado definiu como crimes de guerra, o bombardeamento atómico das cidades japonesas. Na guerra, as razões morais são importantes, sem dúvida, mas são de peso relativo perante outras, não são os americanos uma excepção.
Sessenta anos passados, pode-se dizer, a muitos títulos, que de certo modo o mundo é mais seguro hoje em dia, que no tempo da Guerra-Fria. Na sequência de acordos sobre o controlo de armamento, há boas esperanças, de as potências nucleares reduziram substancialmente os seus arsenais.
Mas em contrapartida, existem incertezas em países como a Coreia do Norte e Irão.
Sendo o terrorismo um ameaça latente e incontornável, há sempre o risco de poder ser utilizada uma bomba suja, ou seja, um explosivo convencional acoplado a material radioactivo, proveniente de fontes médicas ou industriais. Segundo li recentemente, os especialistas definem estas armas como armas de perturbação em massa, devido ao pânico e perturbação que podem causar. Mas mais grave que isto, seria o ataque surpresa, uma bomba terrorista armada com urânio altamente enriquecido ou plutónio roubados, transportado num meio de difícil detecção, como um camion ou barco. Creio que hoje em dia, salvaguardadas as devidas proporções, podemos imaginar melhor o resultado de um deflagar em Manhattan de um engenho nuclear rudimentar transportado dentro de um camion, que mataria num instante mais de meio milhão de pessoas.
Depois de nos anos oitenta, antes da queda da URSS, ter sido excomungada a energia nuclear, veja-se com razão o caso de Chernobil, parece voltar a ser considerada uma realidade promissora, por ser segura, limpa, investindo certos países biliões em programas tecnológicos de ponta.
Na nossa vizinha Espanha, onde não acontece tudo de errado em certas opções, que nada têm a ver com progressismos ético-sociais, o segredo do investimento não radica na energia eólica ou solar, porque apesar da sua incontestável limpeza ecológica, os seus custos são superiores às das centrais de fuel ou de gás.
Segundo tenho lido, o segredo reside no baixo preço da energia nuclear, o que confere à Espanha margem para subsidiar as suas energias renováveis e mantê-lo baixo a energia custa à indústria cerca de 30% menos que em Portugal. Sendo o nosso País tão dependente do petróleo, e por ser um dos poucos países que tem urânio, entendo sem entrar com foice em seara alheia, que a questão das fontes de energia em Portugal, deveria ser analisada rapidamente e com rigor, partindo do pressuposto que o nuclear não está mais excomungado.
E o que acontecia nesse longínquo 1945, em Portugal? O fim da Segunda Guerra foi logo marcado por celebrações espontâneas a 8 e 9 de Maio de 1945, em várias locais do País. Salazar, receando uma nova ordem internacional desfavorável às ditaduras da Península, ainda afastadas da ONU, anunciou uma revisão constitucional, após a rendição incondicional da Alemanha. Promete eleições tão livres como na livre Inglaterra. A censura alargou a malha, prepararam-se golpes que falharam como outros antes. A oposição organiza-se incipientemente, é fundado por Mário Soares e outros, o MUD - Movimento de Unidade Democrática, que veio a ser ilegalizado em Abril de 1947. Às eleições de 17 de Novembro, livres como na livre Inglaterra, só concorrem as listas da União Nacional. O clima de agitação e de expectativa de mudança ainda se prolongam até ao início de 1949, com a campanha presidencial de Norton de Matos, mas o início da Guerra-Fria permite ao regime controlar a situação, impor a sua lei, que veio ainda a durar quase mais 30 anos.

FALANDO SOBRE A FAMÍLIA

(I)


FALANDO SOBRE A FAMÍLIA

Fleming de Oliveira



-Os nossos afectos
-A nossa gente
-A Casa de Miramar (com janelas verdes)
-Fleming de Oliveira de ontem, hoje e amanhã
-Porto, Miramar, Alcobaça, Mataduços (Aveiro), Figueira da Foz e Carnaxide (Lisboa)
-Regressando a Matosinhos (a nossa origem FO-1916)
-É gostoso ser Avô
-O espírito de Natal?

1)

Tenho (temos), uma Família. A nossa Família tem um nome que não repudia, muito pelo contrário. Não sou (não somos), não quero (não queremos) ser anónimos, gosto (gostamos), tenho (temos), mesmo necessidade de saber de onde venho (vimos), embora não receie descobrir, eventualmente, nos antecedentes, uma grande mistura social. Admito, sem que isso me faça corar ou perturbar, que na Família, nos antepassados, possa haver além de ilustres nobres ou burgueses, muito democráticos bebedolas, padres e até vadios.
O Zico(meu Pai) dedicou alguns dos seus últimos anos a procurar, com afinco e uma curiosidade interessantes, registos junto de amigos, parentes, arquivos nacionais, registos paroquiais, Torre do Tombo, etc. e até estrangeiros, Edimburgo/Glasgow. Assim veio, em Parentes Meus, recuperar um pouco da memória da nossa frondosa rede familiar, que ainda teve tempo de deixar publicada em livro, patrocinado pela editora do Arnaldo Jorge F. Tenho a ideia de ouvir o Zico queixar-se que, as gerações recentes, são as que menos informações disponibilizaram para fazer a Árvore, o que não me admira especialmente. Creio que o seu rigor foi notável nalguns casos e o possível, ao definir com alguma dedução nomeadamente nas cores, o nosso brasão Fleming, que teve noutros ramos anglo-escoceses versões diversas (desenho que na versão do Zico, na minha opinião rigoroso foi apenas no lema LET THE DEED SHAW, mas que a partir daí nós, os Fleming de Oliveira-Miramar, começamos a considerar o oficial e que a Inês tem divulgado, nataliciamente, na porcelana decorativa).
Nos tempos antigos, os romanos tinham apenas um nome. No entanto, mais tarde, passaram a usar três nomes. O nome próprio vinha à frente e chamava-se praenomen. Depois vinha o nomen que designava o clã. O último nome, respeitava à família e era conhecido como cognomen. Alguns romanos, acrescentavam um quarto nome, o agonomen, para homenagear antepassados ilustres ou eventos memoráveis. Quando o Império Romano começou a esboroar-se, os nomes de família confundiram-se e os nomes próprios tornaram-se costume de novo.
Durante a baixa Idade Média, as pessoas eram especialmente conhecidas pelo nome próprio, como agora parece ser uma prática muito popular, mas que me irrita um pouco. Mas surgiu a necessidade de adicionar outro nome para distinguir as pessoas. Então surgiu a característica, como a função profissional da pessoa, ou nome do pai. No século XI, o uso de um segundo nome, tornou-se tão comum que, em certos meios sociais mais elevados, era mal visto não o ter. Mas mesmo tendo sido este o início para todos os sobrenomes que existem hoje, grande parte dos usados na Idade Média, nada a ver com a família, isto é, nenhum é verdadeiramente de características hereditárias. No respeitante aos nomes hereditários, isto é, os nomes que eram passados de pai para filho via linha masculina, como por exemplo presentemente o nosso Fleming de Oliveira, é por vezes difícil definir com exactidão quando ou como surgiram, embora se saiba que é uma prática que remonta à aristocracia veneziana, já pelos idos dos séculos X ou XI. No nosso caso FO, isso é bem fácil, não é preciso ir tão longe, como veremos à frente. Os descobridores de antanho, ao regressar a casa, espalharam-na pela Europa. A França, as Ilhas Britânicas, a Alemanha, Espanha e Portugal começaram a utilizar esta prática para distinguir os indivíduos que haviam se tornado notáveis. No século XIV, já se encontra o sobrenome em documentos escritos nas línguas locais europeias, como a portuguesa. O poder real impôs, rapidamente, a utilização de documentos para deixar registados os actos relevantes. Assim, cada vez mais foi importante identificar, com rigor, os intervenientes. Em algumas comunidades urbanas mais populosas, os nomes próprios deixaram de ser suficientes para distinguir as pessoas. No campo, atento o direito de sucessão hereditária nas terras, era preciso algo que indicasse o vínculo da pessoa à terra, para evitar dúvidas de maior e abusos. Não é surpresa dizer-se que, no antigamente da Europa e em Portugal, era prioridade das famílias ter filhos varões, desde logo para manter o nome e os bens. Afinal, era pela linha masculina que se passava o sobrenome e os bens às novas gerações, pelo que constituía, um grande desgosto e perda, uma família não possuir descendentes varões. Os sobrenomes foram inicialmente usados pelos nobres e senhores da terra, como no caso Fleming, da Escócia de antigamente, em tempos mesmo anteriores a Robert The Bruce, como sabemos de Parentes Meus. Os primeiros Fleming foram barões e latifundiários terra-tenentes, que terão recebido o sobrenome a partir de seus feudos, propriedades de origem e fixou-se através da transmissão hereditária. Mais tarde terá havido na Escócia, Fleming comerciantes e até plebeus.
É tarefa complicada classificar, hoje em dia nalguns casos, os nomes de família, por causa das sucessivas mudanças de ortografia e pronúncia. Mas não o nosso Fleming. Muitas palavras, tem assumido significado diferente ao longo do tempo, ou hoje em dia encontram-se obsoletas. Muitos desses nomes dependeram da competência de quem os escreveu no assento de nascimento. O mesmo nome pode estar escrito de diferentes maneiras, até mesmo no mesmo documento.
Os nomes de família chegaram, até nós, de diferentes maneiras. A grande maioria dos sobrenomes evoluiu de 4 fontes principais (ocupação, localidade, nome do pai, característica física) o que não foi o caso Fleming.
A família Fleming de Oliveira, representa um personalizado grupo social primário e nuclear. Somos um grupo, ou um número de grupos domésticos ligados entre si por descendência (demonstrada) a partir de um tronco comum, no nosso caso FO, o matrimónio de Augusto J. de Oliveira e Lícia P. V. Fleming. Dentro de uma família existe sempre um grau de parentesco. Membros de uma mesma família costumam por isso compartilhar do sobrenome, herdado dos ascendentes directos, como o nosso caso. A família FO é unida por laços capazes de manter os seus membros moral, material e reciprocamente durante uma vida e mesmo gerações. Assim esperamos que possa acontecer.
Sendo a mais velha da sua geração, a quarta a partir dos FO’s, a Teresinha Fleming Gaspar, nunca conheceu a Casa de Miramar, sobre a qual tenho escrito algumas coisas. Mas, tal com o Dodo e o Luís, vai crescendo com algumas histórias que dela se contam, ouvindo referir os tempos idos, em que nunca havia silêncio, mas sempre alguma confusão e amuos circunstanciais, e se reuniam não sei quantos à mesa, não apenas no Natal, ao fim de semana, o que dava para perceber quanto era um clã unido, embora por vezes discutindo, com mais ou menos calor. Lá, a mesa era sempre grande, tão grande que frequentemente era encerada e limpa pela Carminda, com a máquina utilizada para o soalho. Era sempre a mesma mesa grande, mesmo quando nos últimos anos durante a semana apenas era usada pelos Zicos. Na sala de jantar nunca houve televisão, esta ficava na sala de estar ao lado, sem possibilidade de ser alcançada pelo campo de visão de quem se encontrava à mesa. Sempre foi assim, tanto quanto me lembro, e ainda me lembro bem de quando chegou a televisão a nossa Casa, pelas meus doze ou treze anos. Nunca houve tabuleiros para ver televisão. As refeições à hora certa, por vezes incomodativamente certa, 13h para o almoço, 20h para o jantar, eram um momento importante do dia para partilhar histórias ou preocupações e, muito especialmente ao Domingo, nunca se sabia antecipadamente e com rigor quantos estariam presente. Viriam a Clara e o Manel, do Porto? A Xica e o Rui, de Miramar? A Ana e o Fernando, de Alcobaça? Havia sempre alguém que aparecia sem avisar, o que consumia muito a Carminda, que fingia ficar nervosa e barafustava risonhamente.
-Será que a comida chega, D. Mariazinha?
Há muitos episódios que ficaram para a história da Família, que gostamos de recordar ainda hoje quando nos encontramos.
Aos poucos foi-se cristalizando em mim, a ideia de dentro do possível, recriar não aquela casa, mas fazer uma outra minha, com a Aninhas, sem que isso fosse ocupar qualquer vazio ou o regresso a uma origem. Nunca mais voltei à Casa de Miramar, partir do momento em que a Zica de lá saiu. Falar hoje naquela Casa, é algo que, se fosse dado à lágrima fácil, me iria marejar os olhos, tão bem nítida é a sua memória.
Temos uma casa nos Montes, com quem pretendo ter uma relação boa, se possível cada vez forte, graças à Aninhas. Chamei-lhe um dia a Casa das Festas, o que parece até simpático, porque não há ali vestígios de dores. As poucas notícias que o telefone me traz de vez em quando, nunca foram más. Citadino por natureza, pelo menos assim pensei durante muito tempo, adapto-me optimamente ao fim de semana no campo, embora por vezes nem chegue a sair das quatro paredes da casa. Ainda hoje, mesmo lá, me custa a imaginar sem a gravata de tantos anos. Assim, congratulo-me com o reconhecimento que a vida pode proporcionar afinal ambientes bem agradáveis, nesta procura de felicidade, como diria o filósofo Kant.
A idade acaba por nos roubar a inocência e a candura, e nunca a trazer de volta. Emigrei, para Alcobaça, há muitos anos, para me fixar num escritório de Advogados, em frente ao Mosteiro. Cada vez vou menos ao Norte, a Miramar, tanto mais que tenho pouca vontade de passar diante da nossa Casa. Há algum tempo, ao descer a Avenida Vasco da Gama, em direcção ao mar, à praia semi-desértica e sem grande deslumbre romântico, recordei-me de uns versos de Tomás António de Gonzaga, bacharel de Coimbra, e depois Desembargador nos trópicos. Quem ainda se lembra dele e da sua Marília de Dirceu? São estes, os sítios? São estes, mas eu o mesmo não sou.
Às vezes acusam-me de ser frio. Pergunto-me, admitindo mesmo que assim seja ou possa parecer, se isso será saudável. Pensando bem, entendo que não, pois que essa frieza, embora seja compreensível em certos casos, é na verdade falsa, batoteira. Ouvi uma vez dizer que, a frieza, é o congelador do desespero, evita que a dor nos faça desabar. Nem sempre a vida tem-me sido fácil (uma vez até pensei… em voz baixa, estou preparado mas, se for possível, não quero ainda), não me queixo muito e admito que, nesse caso, a frieza actua como uma defesa contra o risco de uma emoção surgir como um incontrolado furacão, que nos apanha e machuca severamente. Houve dias que me pareceram pesadas portas de ferro, de que não tinha chave. As horas passavam lentas (valendo-me a T., nos seus três anos, que me defendeu dessa tenaz que me apertava e, assim, me tornou resistente) e esmagavam com uma derrota. Tenho uma situação clínica que suponho estar controlada (embora haja que ter prudência, segundo me dizem), e para isso também me bastou o importantíssimo sentimento de solidariedade e companhia da Aninhas e o amor da Família. Com um a.v.c. a vida passa a ser diferente, como sabe quem por isso já passou, a marcar um distanciamento em relação ao que era a outra realidade, e assim será até entregar a alma ao Criador.
Aprendi nestes anos, alguma coisa positiva, em termos de cultura e vivência terrestre (claro que desaprendi outras menores, mas para essas tenho o Nuno G., ainda à mão ou à distância de um telefone). Como o vento que volta, a derrota (qual espada quebrada num conflito) e a vitória (qual taça erguida numa ara) estão sempre presentes na rotação do tempo que passa.
Há muitos anos em Itália, Francisco, de Assis, precisamente no ano de 1223, teve a ideia de celebrar de forma diferente com os cidadãos da cidade, a missa da véspera de Natal e recuperar o Presépio, isto é, o lugar onde Jesus nasceu, se recolhe o gado, o curral, o estábulo, para poder torná-lo mais real e o dar a conhecer ao mundo. Assim, segundo se diz, nasceu o primeiro presépio, e essa missa em vez de celebrada numa igreja, foi no interior de uma gruta para onde levou pessoas, um boi, burro e feno, logo com muitos a aplaudir a iniciativa e a relembrar a noite em que Ele nasceu. A ideia frutificou, pois foi motivada por dois tipos de representações da Natividade, a plástica e a teatral, espalhou-se pelos quatro cantos, assumindo contornos vários, mas sempre com a presença de S. José, Nossa Senhora, Menino e os animais que, segundo a narração dos textos evangélicos, estavam a aquecer o ambiente no estábulo. Passou este a ser, durante séculos, um dos maiores símbolos do Natal, na síntese de que a sua essência assentava nas circunstâncias penosas do nascimento, aliando-se o cântico dos anjos, à adoração dos pastores e ao recebimento da mensagem do Deus feito homem, aos sentimentos do amor pelo próximo. A primeira representação plástica do Natal é atribuída a S. Helena, mãe do imperador Constantino. O nascimento de Jesus começou cedo a ser celebrado entre os cristãos, sabendo-se de peregrinações a Belém desde o século III, para visitar o seu local do nascimento.
Porque estava ali uma Família, passou esta a ser considerada a Festa por excelência da Família, assumindo cada vez mais relevo, mesmo para os menos crentes. As famílias procuram reunir-se, como nós já fazíamos em Miramar, agora em Aveiro, relevando-se sofregamente os traços comuns, enquanto que a Biquica e Domingos recordam-nos de forma muito calorosa, gentil e apropriadamente, a ideia criativa do cristianismo. As distâncias deixam de ser relevantes, assim como o tempo que demora a percorre-las. A Família vem de longe e de perto para se reunir, para estar junto. É algo aparentemente simples, mas simultaneamente extraordinário que nos enhe de orgulho, satisfação, paz e felicidade. Foi um pouco como este, o Natal da minha infância, da Família FO de Miramar (Menino Jesus que ainda distribuía presentes, crianças excitadas, bacalhau cozido, mexidos, presépio com musgo, Missa do Galo, beija pé do Menino e calor dentro de casa). Há uma voz, um som, um cheiro que nos faz regressar a casa para estarmos com os nossos. Mesmo que Natal seja sempre o mesmo, este ano com a Zica já inexorável e fisicamente ausente, mas especialmente presente, será sempre o acontecimento mágico do ano. A despedida da Zica já ocorrera há muito tempo e isso foi terrível. Não sabíamos se sofria. O sofrimento dos que lhe estavam fisicamente mais próximos, como a Núnú e a Clara, era mais inquieto do que o dos irmãos, perante esse desconhecimento. Assim, permaneceu a Zica numa longa queda imóvel, à espera do fim. A Zica foi-se de vez, para um passamento infinito, mas que há anos lhe havia retirado as palavras da boca e que portanto a fechou antes do tempo. Há muito que só tínhamos da Zica, e era tanto, a gostosa memória, a saudade dos nossos tempos de meninos, mais tarde pais de meninos, de Miramar e da Casa, que serão para sempre nosso património sentimental e afectivo.

2)

-Como viste o Natal deste ano em tua casa? perguntei ao Domingos.
-O Natal de 2006 foi vivido na experiência do reencontro entre a chegada e a partida, num ciclo gerador de vida em que todos somos um elo insubstituível. Folhas nascidas, folhas caídas, todos nos revemos na lágrima que desliza e limpa o olhar fixando-o no silêncio que se fez palavra, numa ausência que se fez presença.
-A Zica já cá não viria nunca, mas sentimos neste momento, na sua ausência, uma forte e idesmentível presença espiritual.
-Parafraseando Bernanos, o olhar da Mãe é o único olhar verdadeiramente infantil, o único verdadeiro olhar de criança, que se ergue para fitar as nossas fraquezas, dificuldades e limitações. Por isso, embora com a emoção mais contida, foi Natal com as mesmas luzes, ornamentos, memórias e evocações ancestrais.
Antes de se dar início à Consoada, a Leonorzinha fez a leitura bíblica da narrativa do nascimento da Luz que se colocou nas encruzilhadas e no termo de todos os caminhos, e disse que:
-Enquanto a chuva escorrer da vidraça //E furar o telhado daquele farrapo de homem que além passa,//Enquanto o pão não entrar com a Justiça, lado a lado, mão a mão, //Nem Jesus vem andar pelos caminhos, onde os outros vão.//Um dia quando for Natal //(e já não for Dezembro) //E o mundo for espaço, onde cabe um só abraço,//Então Jesus virá e será a flor de tudo, //ORedentor Universal//Quando o Homem quiser será Natal.
(in, Manuel Sérgio).
O jantar servido na mais pura tradição como se impõe, e na baixela que muitas vezes nos serviu em Miramar, consistiu num bacalhau cozido com todos, rabanadas, bolo rei, etc., aconchegado por um Valdoeiro tinto (Bairrada) nada inferior ao que o Domingos nos tem habituado doutras vezes. Ficou ainda um cantinho para o bolo de aniversário da Raquel, que foi presenteada com os PARABÉNS A VOCÊ, numa versão para duas violas de arco, da autoria da Teresinha (grande). Seria impensável ir a Aveiro e não ter oportunidade de compartilhar da subtileza musical das meninas, que se apresentaram num duo, rigorosamente a preceito.
Abriu-se a noite solitária e invasora//Cheia de avisos apressados,//Abriu-se a noite austera e percursora//E cercou a cidade pecadora//Dos Homens descuidados…//Abriu-se a noite milenária e súbita//E com ela se abriu,//À flor da Terra Mãe,//Na encosta dos tempos//A gruta que os caminhos demandaram//Como lugar de refúgio e//Escondimento…//Ela aí está, acessível, singela,//Como o sonho dos humildes,//Exterior ao festim dos poderosos,//Fechado contra ela.
//Ela aí está e, lá dentro,//Deixa ver o cenário://O deserto e três reis,//A choupana dos simples,
//Canções,//Uma estrela…//Abriu-se a noite…//Tudo inútil e precário!//Abriu-se a noite… //O mundo é leve como um sonho!//Abriu-se a noite…//Que é dos homens e das coisas?//Abriu-se a noite…//E fechou-se…//E reabriu-se, //Descerrando em paz místicos véus!//Abriu-se a noite…//…E fechou-se//…E reabriu-se,//Como Deus!
(III Nocturno do Natal- João Maia)
Antes de se chegar à altura da troca dos presentes, em Aveiro ainda não vem propriamente o Pai Natal, houve a oportunidade de em coro à mesa, e acompanhado instrumentalmente com uma conhecida melodia, se cantarem quadras de boas vindas, simbolizando o gosto da Biquica e Domingos em terem a família reunida, no que se vai tornando a cultura e tradição natalícia pós-Miramar:
Flemings, Almeidas e Limas,//Silvas, Araújos e Gaspar,//Juntos na Casa dos Peixotos//Puseram-se todos a cantar,
GLORIA IN EXCELSIS DEO
Uns vem de longe, outros de perto//Pelas estradas sem parar,//Guiados pela mesma estrela//Que no presépio vai pousar,
GLORIA IN EXCELSIS DEO
Daqui a um ano cá voltaremos//Com a Família a aumentar,//Um novo canto entoaremos//Para o Natal celebrar
GLORIA IN ECELSIS DEO
Com a Família a aumentar?
Sim, óptimo, lá para o começo do verão teremos um novo(a) Fleming Almeida Araújo! Daqui um beijinho para a Titinha.
Foi no calor de gestos sempre repetidos mas sempre novos, porque nunca são iguais, que se seguiu o desatar dos atacadores do sapatinho, sintetizou muito bem o Domingos.
Mas além da Consoada em Aveiro, e sem pretender fazer-lhe concorrência, estamos ainda a institucionalizar o jantar em casa (ou por conta) da Inês, por alturas do Natal, acontecimento que passa a ser imprescindível para nós FO’s. Este ano ainda mais, com a memória e a saudade da Zica especialmente presentes, e a necessidade de nos apoiarmos uns nos outros. Por isso, ninguém quis (podia) faltar ao encontro, que se desejava ainda mais sereno e fraterno, no Sol dos Pequeninos, na noite do dia 23 de Dezembro.
-Como foi, Paulo?
Note-se que, o meu cunhado, é pessoa de excelente e reconhecidos bom gosto e sensibilidade, pelo que aprecio os seus comentários e a sua prosa, como tenho demonstrado.
-Com o declinar da tardinha, a luz foi-se paulatinamente apagando, num lento adeus a Miramar, sem vassalagens nem preconceitos quanto à inexorável noite vindoura. O mar calmo e espelhado, estranhamente nostálgico, paciente e observador, parecia admirar a azáfama e o movimento que transbordava do Sol dos Pequeninos. Tanto empenho, dedicação, esmero e uma vontade do tamanho do mundo, para tudo ser perfeito no jantar dessa noite: ambiente, decoração, comida, bebidas e acima de tudo conforto, carinho e demais componentes do que se chama vulgarmente calor humano.
-Tens toda a razão, sentimos todos isso muito bem em tua casa!
-Assim, logo me ocorreu uma frase que alguém me dissera na véspera em Agramonte, estaremos bem melhor uns com os outros ao jantar amanhã, que de qualquer outra maneira…
Antes da despedida, cantaram-se os parabéns. Essa promessa de vida transformou todos os epílogos possíveis ou prováveis, no melhor.
-Muito obrigado. Lá nos encontraremos de novo, antes do verão, a celebrar com a Bitinha e o Eduardo.

3)

Hoje em dia há cada vez mais equívocos, que impõem uma verdadeira ditadura do politicamente correcto, e exigem pessoas disponíveis para aceitar ou sugerir constrangimentos à vida colectiva, às suas tradições e até à sua religião. Isto com o argumento de não incomodar outros (que vieram depois), mas que pelo seu lado, reclamam e usufruem das mais amplas liberdades. Espero não chegar a ver um tempo português, em que só se farão celebrações de Natal com carácter consumista para satisfazer pequenos interesses, para não perturbar crianças ou adultos de outros lugares e costumes. Por isso, aprecio de sobremaneira Aveiro, aonde se responde, sem constrangimentos, a esse desafio que está a envenenar o nosso Natal, festejando-o à vista de todos, com naturalidade, empenho e ainda que diferente do que por aí vai, mas muito especialmente sem perder de vista as marcas de uma festa religiosa e de família. Um Natal com recordações (cheiros, paladares, afectos) comuns, discussões de circunstância, onde o que não foi dito nunca será revelado, e até com amuos (sempre injustificados) de alguns ausentes ou presentes. Claro que tenho de aceitar que as coisas mudem, mas que ao menos neste assunto pareçam estar na mesma e nos possamos continuar a sentir bem a jantar em casa da Biquica, na confusa animação da troca de presentes, na companhia de uma vaquinha, um burro, uma Nossa Senhora, um S. José e o Menino nas palhinhas deitado.
Sendo eu mais ou menos crente embora conforme os dias da semana, mas tendo todas as raízes na civilização cristã, concebo o nascimento do Menino como o símbolo da renovação da vida e da esperança de realização indissolúvel da condição humana.
Quando éramos meninos, íamos no Natal ao circo do Coliseu, com a Carminda, como já referi em apontamentos anteriores. Havia circo que nos divertia e fascinava. Não há nunca Natal que não me recorde do circo da nossa infância, a elegância do passo dos cavalos a andar em círculo, a voz tronitruante do apresentador vestido como um marechal cheio de alamares, a lentidão subtil dos elefantes, os cães amestrados cumprindo as ordens dos domadores, trapezistas que nos sufocavam a respiração e nos faziam fixar o olhar no perigo do abismo sem rede, enquanto comíamos sandes de marmelada, os palhaços perversos e gentis com a sua música atabalhoada, alternada entre as notas do rico e do pobre. Lembro o Natal e lembro o circo, recordando-me um pouco do que era a vida, antes dela fazer de mim o que sou hoje. Por isso não há Natal que não volte ao circo…
É muito vulgar dizer-se que agora o tempo anda mais depressa. Creio que a suposta celeridade do tempo, não é matéria acertada, mas tão só uma afirmação como qualquer outra, para encher uma conversa ou introduzir um tema, mesmo que invoquemos o ritmo de vida moderna, a globalização ou a perversidade da tecnologia das comunicações. Recordo-me de ouvir iguais comentários ou desabafos, quer aos meus Pais ou Sogros e, seguramente, estes também poderiam dizer o mesmo dos seus antepassados. Ontem, como hoje, barafustamos contra a falta de tempo, de oportunidade de se fazer o que seria necessário ou desejável. No meu caso, sentindo que os dias se vão sucedendo sem serem muito diferentes uns dos outros, sem grandes novidades nem sobressaltos (o que acarretaria a sensaboria total de escrever uma auto biografia), admito que cada mês que passa se assemelha em termos relativos a uma semana de sete dias. Mesmo assim até ao próximo Natal faltam 12 meses…
Tenho Fé? Acho que sim, mas uma fé que não passa concomitantemente por bater contrictamente no peito, ir todos os domingos à missa, mas reconhecer que devemos estar atentos para evoluir, nos aperfeiçoarmos, que a vida é um lugar de permanente combate, onde a Vitória só perde e a Derrota só ganha, quando se negam, convertendo-se naquela contra quem lutam. Depois de ter passado por algumas provas mais ou menos fáceis, percebi que os olhos que fitavam o sol no dia 15 de Novembro de 1969 (dia em que acabei o curso de Direito, na U.C.) estavam muito menos abertos, que no dia em que a Aninhas me fez nos Montes um almoço FO, para comemorar os 60 anos. Então percebi que aquilo que há tempos me pareceu uma derrota, no seu fantasma, se poderia converter num pequeno caso de reabilitação. Quero arredar a frase pessimista, que uma vez notei num livro melancólico, não deixo de ter chegado aquela idade em que a vida se torna para cada homem uma derrota aceite.
Como confessei, atravesso nesta fase da vida, uma espécie de oceano, não totalmente deserto, nem mortal. É vasto, tem algumas cores e felizmente ilhas. Sempre que a Aninhas me dá alguma força, sinto-me mesmo mais forte, sempre que a oiço aprendo depois a ouvir-me melhor, sempre que lhe toco, sinto-me mais vivo. Nem sempre todavia foi assim. Entrei, por força das circunstâncias, há uns anos num bote que me parece o errado no destino final e, agora reconheço estar demasiado e irremediavelmente longe da minha terra e de onde desejaria nunca ter saído.
Demasiado longe? Há coisas que não se devem registar, como a Aninhas me ensinou muito bem mas, dento do possível, estou a tentar regressar a algumas coisas, anteriores à enxurrada que quase me atolou. As questões, vão-se mantendo ainda que evoluindo. O essencial jamais será acessório, pelo menos assim o quero encarar. Mas, ao contrário do que diria Mozart, no tão cantado e decantado Nessum Dorma, todo o mundo civilizado, mesmo um snob impenitente, dorme diante do ecrã de TV, e dorme só…Não é verdade?
Falemos mais um pouco de nós, os Fleming de Oliveira. O afecto define-nos, gostaria eu de poder asseverar sem receio de desmentidos pontuais, e mesmo correndo o risco de se rirem de utilizar uma expressão desactualizada. Doutro modo, atravessamos a vida com pudores e deixamos de ligar, ignoramos, o que de mais profundo pode ocorrer nos outros parentes, acabando por nos tornar pessoas menos interessantes. Olhemos à volta, e confirmem-me não ser verdade que a deficiência afectiva nos vai consumindo rapidamente e cresce de forma mais que proporcional ao lixo que se vai acumulando todos os dias, no contentor da esquina da rua.
O Becus FO, gosta muito destas coisas, bem sei. É, diria eu, uma pessoa excelente para compartilhar certas ideias de solidariedade familiar.
-Queres recordar como foi o nosso último encontro FO?
Claro que quer, a minha pergunta era pura retórica. Antigamente os FO’s, ainda que só os de Miramar, não enchiam uma página A4. Hoje, connosco e os outros, seria preciso fazer uma lista completa, para não faltar ninguém. Todos são imprescindíveis, ninguém nunca substitui ninguém, especialmente os que amamos e nos deixaram, pois não há eternos.
-E a tradição cumpriu-se, disse-me o Becus. Será que já podemos chamar tradição a este encontro?
-Não tenhas dúvidas, caro Primo, asseverei.
-Até porque a nossa Família F.O., continuou o Becus, desde sempre, desde os nossos Avós Lícia Fleming e Augusto Johnston de Oliveira se reuniu frequentemente. Fosse em festas de aniversário, fosse aos fins-de-semana, nas Ceias de Natal, nas férias, em passeios, eu sei lá… e depois continuando pelos nossos pais e tios em Miramar e Matosinhos, sempre se reuniu.
Que saudade do tempo em que éramos para eles e eles para nós sempre os primeiros.
-Se bem te recordas, meu caro primo, poucos dias terão passado sem que eu tivesse, durante anos até ir para a Universidade de Coimbra, deixado de ir a tua casa de Serpa Pinto.
-Mas voltando ao tema inicial, a tradição cumpriu-se no passado sábado, dia 21 de Outubro de 2006. O II ENCONTRO F.O., desta vez, teve lugar na região norte do país, mais concretamente na CASA DA RIBEIRA DE CIMA, em Maureles, no Marco de Canavezes. Os meus irmãos Zinha (que se esmerou) e Zé Kitolas acolheram-nos de braços abertos na sua casa, num dia de encomenda. E digo dia de encomenda pois estamos em pleno Outono e que Outono…! Chuva, chuva, chuva e mais chuva. Mas o S. Pedro que nestas matérias é quem paga ou recebe as favas, esteve sem dúvida alguma do lado dos F.O., permitindo que o almoço decorresse no exterior, chegando mesmo a brilhar o astro-rei.
-Como foi o almocinho? À maneira?
-Depois das chouriças e linguiças assadas (nas brasas) mesmo ali, foi servido um excelente cabrito à moda de Marco, com as famosas batatinhas no forno. Tenho de salientar aqui que todo o repasto foi regado com um verde branco da região (verde, mas bastante graduado esclareço!!!), servido bem fresco e a preceito. Mas diga-se que o mais importante para além destas iguarias bem recheadas de doces e salgados, foi o CONBÍBIO, como se diz no Norte. Conta aqui, fala acolá, assim se foi passando a tarde, tendo havido tempo ainda de fôlego, para alguns mais novos, fazerem um agradável, mas custoso passeio até ao Rio Tâmega.
-Para molhar os pés? E depois?
-Estavam alguns F.O. em sossego e amena cavaqueira quando, ao som das marchas escocesas, entram na sala duas personagens que passo a explicar: o Kitolas e, eu próprio, com as bandeiras da Escócia e de Portugal a acenar, em estilo de parada. Os restantes F.O. aplaudem com grande entusiasmo e a alegria contagia-se, mesmo aos mais pequenotes.
-Mas o nosso II Encontro foi só comes, verde e música? Que se pode destacar mais?
-Passa-se depois à parte mais séria e formal do II Encontro F.O. Na sala estava colocada uma mesa comprida com as bandeiras da Escócia e de Portugal e um cartaz assinalando o evento, ficando na presidência o Pai Mário, o primo Fernando e o anfitrião Zé Kitolas. O Pai Mário fez uma resenha dos seus Pais e nossos Avós Lícia e Augusto contando vários episódios, salientando também as diferenças entre os dois irmãos Fernando e Mário, sempre escutado com muita atenção e respeito por todos os F.O. ali presentes. Falou, de seguida, o primo Fernando que assinalou nas suas palavras a importância do passado dos nossos Avós, mas muito mais importante saber transmitir aos nossos filhos e netos os valores que nós próprios recebemos. O Zé Kitolas agradeceu a todos a presença e pediu para se juntarem em grupos para se fazerem as fotos que irão ficar como mais um marco importante na História dos Fleming de Oliveira.
-Algumas destas fotos ficaram mesmo boas. Não é vulgar juntarem-se, amenamente, quatro gerações pela linha masculina, pois não? O teu Pai, eu, o Miguel e o Diogo, todos Fleming de Oliveira. Nem tu, nem nenhum dos teus irmãos homens, pode ainda entrar neste clube restrito e selecto de quatro gerações FO, espicacei-o.
-É evidente que se torna difícil reunir todos os F.O. pois eles estão dispersos desde Matosinhos a Miramar, de Alcobaça à Figueira da Foz, de Lisboa ao Porto, Senhora da Hora, Leça da Palmeira, etc., mas onde quer que se encontrem serão sempre uns F.O. genuínos. E para a próxima haverá mais, se Deus quiser…

4)

Para falar de nós, os Fleming de Oliveira do século XXI, é interessante, necessário mesmo, ir à origem deste tronco, com perto de cem anos de existência, este ano fez noventa, e que começou como casamento dos Avós Augusto Oliveira e Lícia Fleming. É, o que me proponho fazer. A Família, é o pilar da verdadeira educação, a iniciação, sendo a escola tão só a sua continuação. Os jovens que se reconhecem em realidades culturais e ancestrais definidas, como reputo serem as nossas, aderem a elas e gostam de as viver. Este estímulo é fundamental, embora a educação, o venha depois a desenvolver e fazer frutificar. Bem desejaria que a nossa família dentro das suas possibilidades, fosse capaz de orientar os filhos e netos, e assim por diante enquanto houver FO, sem prejuízo das novidades e interesses de cada época, porque eles fazem parte da cultura que constitui a nossa existência e identidade.
Augusto Johnston de Oliveira, filho (legítimo, isto é fruto de casamento, como antigamente se dizia) de Ismael Adelino de Oliveira e de Amélia de Sousa Johnston de Oliveira, nasceu em 23 de Maio 1881, na Freguesia de Cedofeita/Porto, onde aliás foi baptizado na igreja românica existente ao lado do liceu, após o 25 de Abril de novo Rodrigues de Freitas, e casou na Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, na quinta-feira, 8 de Novembro de 1916, dia invernoso, tanto em terra como no mar (havia-se virado, dentro do porto de Leixões e sem outras consequências que não materiais, um barco-vigia pertencente a um pesqueiro). Pelas dez horas do dia anterior, fora realizado o enlace matrimonial civil, na respectiva conservatória, segundo o regime de comunhão geral de bens, nos termos das Leis da República, com a Avó Lícia, Pereira de Vasconcelos Fleming, filha (legítima), nascida a 18 de Fevereiro de 1898, de Rodrigo Martins Fleming, conceituado Director da Companhia de Seguros Garantia e membro da Creche de Matosinhos, e (obviamente) de Ana Pereira de Vasconcelos. O noivo, empregado comercial, chefe da casa Pinto Leite & Filhos em Lisboa, tinha trinta e cinco anos de idade.
A noiva, doméstica e gentil menina, com apenas com dezoito anos, vivia em Matosinhos, mas tinha nascido no Porto. Por causa da idade, a noiva teve de obter autorização dos pais para se casar. Foram padrinhos de casamento no acto civil, por parte do noivo, os Senhores Eduardo Rodrigues de Paula, solteiro, negociante, e Virgílio da Costa Neves, casado, engenheiro, e por parte da noiva, os Senhores Ernesto Augusto Castro Guimarães, casado, proprietário, e Manuel António Rodrigues Júnior, solteiro, estudante de engenharia. Após o auspicioso enlace religioso, durante o qual a gentil menina se quedou, como é da praxe, ao lado esquerdo do futuro marido, foi servido aos convidados um delicado copo de água, em casa dos pais da noiva, aonde os recém casados chegaram numa carruagem de cavalos que seguiu na cauda do cortejo. Ali a bisavó Ana, fora a primeira a chegar da igreja para receber os convidados. A mãe do noivo, a bisavó Amélia, já era falecida na altura. Na cerimónia religiosa, paraninfaram os noivos, pessoas que possuem excelentes qualidades de alma e coração e que portanto mereciam um interminável lua de mel e um risonho futuro, por parte da noiva, o sr. Luís de Andrade Vilares e esposa D. Maria de Andrade Vilares e por parte do noivo o sr. Fernando Pinto Homem de Almeida, que exibiu procuração passada pelo Dr. Joaquim Emílio Pinto Leite, patrão do noivo, e D. Regina Johnston de Oliveira Jordão.
Querem saber em que consistiram algumas prendas que formavam a corbeille dos noivos? Vou contar adiante, pois recolhi esses dados no jornal O Badalo, de 12 de Novembro de 1916, que noticiou o casamento na terceira página, a três colunas. Os tempos não eram de grande desafogo, acalmia político-social e prosperidade. Na Rua do Godinho, em Matosinhos, vivia uma família de pescadores que ocupava o passeio com roupa a corar, lenha e caruma, chegando mesmo a vir, com a sua pouca educação, fazer para ali a limpeza da cabeça. Que o digam ainda as dificuldades de vida na Creche, aonde o menino Tomás Alves Junior, filho do Sr. Tomas Alves, conceituado arrendatário do Central Hotel, de 1ª ordem, com magníficos aposentos, confortáveis e higiénicos, sito na Rua Brito Capelo veio, mais uma vez, trazer um pacote de cascas de ovos. Este facto, tido por muito meritório, embora na linha de um pedido público, mereceu destaque no referido O Badalo, semanário de Matosinhos, que aliás foi o fundador da dita Creche (protectora da infância e pobreza local, inaugurada a 16 de Setembro de 1916). Estas cascas de ovos, eram aplicadas a conselho médico, como medicamento às criancinhas. Portugal, havia pouco, era uma República e a Europa estava em plena e devastadora guerra, há mais de dois anos. Em 1915, partiram de Lisboa para Angola contingentes expedicionários, para fazer face a ataques de tropas alemãs. Notícias que chegavam por telégrafo, davam conta de que indígenas, na região do Cunene, se haviam também revoltado contra os portugueses. Esta perturbação, não era menor que a causada pelos boches. Temia-se, por um lado, que uma aparente retirada dos alemães de Angola apenas visasse por em marcha um plano para por cobro à soberania portuguesa. Os nossos soldados embarcavam em Lisboa, na Ponte do Arsenal, com a missão de conservar em mãos portuguesas as tão cobiçadas possessões africanas. Aliás, soube-se que em conversações havidas em 1913 entre a Grã-Bretanha (nosso fiel aliado?) e a Alemanha, se colocara sobre a mesa a hipótese de partilha das colónias portuguesas. A Alemanha declarou guerra a Portugal, no desenvolvimento do pedido feito pelo nosso fiel aliado britânico para requisitar os navios mercantes alemães refugiados em portos do Continente, Ilhas e Colónias. Portugal também tinha interesse nesta operação, pois precisava de navios para o seu comércio internacional e com o ultramar. Entre Fevereiro e Julho de 1916, o governo republicano requisitou setenta navios alemães e dois austro-húngaros acostados em portos nacionais. Portugal entrava formalmente no conflito. Em Julho de 1916, foi constituído em Tancos, sob o comando do General Norton de Matos, o C.E.P. (Corpo Expedicionário Português), formado por trinta mil homens para ir combater na Europa (França e Flandres) ao lado da Inglaterra. O Parlamento, pouco depois, votou a (re)introdução da pena de morte em situação de guerra, Lei nº 635, de 28 de Setembro de 1916, no meio de grande agitação nas bancadas, dado isso ter significado a revisão da Constituição de 1911. Era a pena de morte em caso de guerra com país estrangeiro em tanto quanto essa pena seja indispensável e apenas no teatro de guerra. A abolição da pena de morte para crimes políticos havia passado a constar do artº 16º do Acto Adicional à Carta Constitucional (05.07.1852). A partir daqui, a abolição da pena de morte, para todos os crimes, foi levada por várias vezes ao Parlamento, sem ser possível encontrar consenso. Mas em 1867, finalmente foi aprovada uma proposta de lei que aboliu a pena de morte para todos os crimes, com excepção dos militares-Lei de 1 de Julho de 1867. Relativamente a crimes militares a pena de morte manteve-se até ao Decreto com força de Lei, de 16 de Março de 1911, que a aboliu, vindo a Constituição de 1911 a prever que em nenhum caso poderia ser aplicada tal pena. Com redacção ligeiramente diferente este regime veio todavia a vigorar até 1976, dado que a Constituição no artº 24º/2 estabeleceu que em caso algum haverá pena de morte. No centenário da abolição da pena de morte, em 1967 (ainda não se previa o 25 de Abril…) Miguel Torga escreveu que a tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte.
Não sei se o Avô Augusto O. fez tropa mas, seja como for, quando se casou, em 1916, com os seus trinta e cinco anos, já não tinha idade para ser convocado para a guerra. Mas não obstante o ambiente social, o casamento teve um inequívoco toque burguês. Vejamos, portanto algumas prendas. Do noivo Augusto, à noiva Lícia, uns brincos de brilhantes; dos padrinhos da noiva, um envelope com um cheque; da Srª D. Cacilda Augusta Marques, um rico pendantif de brilhantes; da Srª D. Esménia e D. Guilhermina Marques, um estojo de colheres de sopa à Luís XV e uma teia de finíssimo linho; do Sr. Artur Môreda e esposa, um estojo de toillete, em prata; da Srª D. B. Lyvia Môreda e marido, uma manilha de ouro; do Sr. José Adrião da Rocha, uma palmatória de prata; da Srª Condessa de S. Salvador de Matosinhos, um broche de diamantes e pérolas; da Srª D. Maria Percina de Vasconcelos Morais Leite, um estojo com duas riquíssimas garrafas de cristal de cores, com encrustações de prata dourada, e uma manteigueira também de prata; da Srª D. Carminda Guerra e marido, um estojo de toillete; da Srª D. Maria Guerra de Andrade, uma caixa para pó de arroz de cristal e prata; da Srª D. Alzira Andersen, um estojo de colheres para doce; da Srª D. Olsília Andrade, uma pulseira de ouro; da Srª D. Alcina Ribeiro de Sousa, um pendantif de rubis e pérolas; da Srª D. Ema de Sousa, um paliteiro de prata; do Sr. Castro Guimarães, um envelope com um cheque; das Srªs D. Maria Cândida Môreda e D. Maria Isabel Môreda, um estojo de colheres de chá; de D. Maria Augusta Môreda uma salva para copo de água; da Srª D. Maria Antonieta Pinto da Silva, um garfo para conservas; da Srª D. Beatriz de Vasconcelos Trepa e marido, uma palmatória de prata; da Srª D. Clementina Pereira de Vasconcelos, um estojo de colheres para café; da Srª D. Maria Vasconcelos Monteiro, uma palmatória de prata; do Sr. Jorge Fleming e esposa, um solitário de prata; do Sr. Vasco Fleming e esposa, um estojo de colheres de chá; do Sr. Vasco Fleming Júnior, um paliteiro de prata; do Sr. Fernando Pinto Homem, uma caneca de cristal e prata; do Sr. António Costa, uma caneca de cristal e prata; do Sr. Paulo Barbosa, uma salva de prata; do Sr. Arnaldo Fleming, um cofre de cristal e prata; do Sr. Cardia Pires e esposa, uma caixa de pó de arroz, de cristal e prata; da Srª D. Regina Jordão, uma caixa de pó de arroz de cristal e prata, e uma colher de copo de água; da Srª D. Lúcia Johnston, uma colher de copo de água; do Sr. Ismael Adelino de Oliveira (pai do noivo), um par de argolas de prata; do Sr. Ismael Oliveira e esposa, um garfo para conservas; da Srª D. Inês Praça, um estojo de colheres para café; da Srª D. Violante e Srª D. Maria Inês Praça, um par de argolas de prata; da Srª D. Maria Alice e Srª D. Edith Maciel, uma estátua de terracota; da Srª D. Almerinda Carvalho, uma caneca de cristal e prata; da Srª D. Laura Ferreira Guimarães, uma medalha de ouro; da Srª D. Virgínia Rodrigues e filhos, uma saladeira de cristal e prata; da Srª D. Luísa Johnston e marido, uma salva de prata; do Sr. Joaquim Forbes Bessa, um estojo de colheres de prata; do Sr. Francisco Leite de Vasconcelos Pereira, um rico serviço de jantar e outro de almoço e café; da Srª D. Maria Isabel Pereira de Vasconcelos, umas figuras de biscuit; da Srª D. Maria do Carmo Pereira de Vasconcelos, uns brincos de ouro e esmalte; da Srª D. Maria José Pereira de Vasconcelos, uma alfineteira de prata; do Sr. Luciano Oliveira, um lindo quadro; da Srª D. Sofia Oliveira, madrinha de baptismo do noivo, talheres de prata; dos meninos Arnaldo e João Osório, uma colher de copos de água; da Srª D. Estefânia e marido, um talher para doce; da Srª D. Mercedes da Silva e marido, uma colher para pasteis; da Srª D. Emília da Silva Gomes, um cofre de charão com chá; da Srª D. Elvira Leão, um trabalho de pintura e pena; do Sr. Virgílio Neves uma manteigueira de cristal e prata; do Sr. Eduardo Rodrigues um guarda-chuva e bengala com castões de ouro; da Srª D. Lucinda Ferreira, uma alfineteira de prata; da Srª D. Ermelinda Morais Leite, uma colher para molho; da Srª D. Deolinda Amorim, uma escova para cabelo; da Srª D. Maria Branca, aplicações de rendas de bilros; da Srª D. Teresa da Cunha, uma colher para copo de água; da Srª D. Maria Sofia Oliveira, uns naperons de rendas de bilros; da Joalheria Queiroz, as alianças em ouro para os noivos; do Sr. Carlos Johnston de Oliveira, um estojo de colheres de chá; da Srª D. Alexandra Sevide da Cunha, um serviço de linho para jantar; de seus pais, recebeu a noiva um riquíssimo enxoval.
Quando este ano tivemos de desfazer o andar da Foz, aonde vivia a Zica, entre as coisas que me coube, estava uma salva de prata, com um belo monograma, comemorativa dos 25 anos de casados dos Avós Ana e Rodrigo Fleming (18.01.1921), a qual acabei por oferecer à Paula. Registo que também fiquei, com as taças de champanhe em prata, comemorativas dos 25 anos de casados dos Zicos (13.05.1979), o quadro a óleo da Zica (traço Martim Maqueda) que sempre esteve na sala de estar em Miramar e a meias, com o Nuno, umas chávenas de porcelana Vista Alegre, que creio que vieram da casa da Boavista.
Já vimos, num breve apontamento, como corria a vida no meio piscatório de Matosinhos nesses tempos longínquos. E na vila? O gaz de iluminação para fins públicos ou domésticos falhava frequentemente, deixando as pessoas às escuras, a partir das 22 horas. Os valentes pescadores de Matosinhos emocionaram-se ao saberem que na costa algarvia havia sido apanhado um submarino alemão, numa rede de pesca. Ora, com tanta rede para a pesca da sardinha no porto de Leixões, que pena isso não ter acontecido por cá…As pessoas queixavam-se de haver muitos cães vadios pelas ruas e depois da forma como a Câmara Municipal os caçava. Pois não é verdade que o pessoal municipal, tanto apanhava cães na rede, a torto como a direito, nomeadamente alguns animais que vão ao colo de donos ou das criadas? O senhor Aurélio Lima, queixou-se publicamente que, por motivo da mudança de uma fonte que a Exmª Câmara autorizou, quando perto da noite se dirigia para a residência da senhora sua mãe, saiu-lhe ao caminho o Sr. Félix Ferreira, residente em Bouças de Baixo que, com uma enxada, o tentou severamente agredir. O que valeu ao emboscado, pessoa conhecida pela forma correcta como sempre soube conduzir-se na vida (no seu proclamado dizer), foi a presença de dois amigos que, evitaram o pior, um crime de forma cobarde e infame, que este cavalheiro queria praticar.
E como era a moda? Os vestidos não eram tão caídos, como outrora, e assim deixou de ser fácil a um cavalheiro lançar olhares cúpidos e descobrir os segredos do feitio do delicioso corpo feminino, os quais eram impenetráveis como um mistério, o que poderia constituir um tormento. Havia porém boas novidades no calçado, pois o que usavam as elegantes de Matosinhos deixava muito a desejar, na opinião de certos entendidos. A bota começou a aparecer à luz do dia, com toda a sua garradice provocadora. Botinhas, agora feitas por medida, à mão, com arte e esmero por humildes artistas (mas poetas da mais inspirada imaginação), sobre as quais descansam um corpinho donairoso, cujos deliciosos contornos mal se ocultam por entre umas rendas. Uma botinha assim é, por assim dizer, o complemento indispensável do vestuário de toda a bela matosinhense, que se preze.
Como terá sido o namoro dos Avós de Matosinhos, durante muito ou pouco tempo, a marcação dos esponsais, as suas ilusões ou enganos? Não sei, nunca ouvi falar disso lá em Casa, mas possivelmente um namoro sem nada de especial, à moda da época, princípios do século XX, em tempo de turbulência no País, guerra na Europa, não obstante a grande oscilação etária entre ambos. Namoro recatado nos galanteios e com dificuldades, à distância, com algumas cumplicidades, eventualmente num baile, ou numa reunião de família, através de olhares furtivos, discretamente na rua ou até na missa do Domingo, sempre vigiado cuidadosa e afincadamente às ardilosas solicitações masculinas, pela autoridade paternal do bisavô Rodrigo e esposa Ana. Eram estas as normas burguesas, com inequívocos laivos de religiosidade, mesmo entre os republicanos, que segundo o padrão de época se ensinavam às meninas para ascender à categoria de senhoras pelo casamento, evitando comportamentos reprováveis. Sabendo-se que a Família era entendida, no início do século XX, como uma base fundamental da sociedade e com uma missão divina (Deus, Pátria, Família), impunha-se, acima de tudo, a necessidade de educar a menina dentro da sua classe, para desempenhar bem a sua missão de Dona de Casa, de Esposa e Mãe, com asseio, actividade, economia, tudo o que importa ao governo de um lar. Em suma, a educação de uma menina era bem diferente da de um rapaz, tendo em atenção a missão da mulher, que ia recrutar o seu fundamento na teologia moral da Igreja, mesmo entre os menos praticantes. Claro, que neste tempo, como sempre, também existia alguma malandrice. Segundo O Badalo, e ao arrepio deste tom convencional, foi publicado por esta altura, o interessante anúncio: AMA DE PRIMEIRO LEITE PRECISA-SE. PRECISA-SE UMA AMA DE PRIMEIRO LEITE PARA ALIMENTAR UM MENINO MUITO ROBUSTO E JÁ CRIADO. Um menino robusto e já crescido não estava mal! Era capaz, digo eu, de ser algum marmanjão de vinte anos!!!
O Avô Oliveira faleceu em Matosinhos, muitos anos depois, vítima de doença prolongada, na sua residência, sita na Avenida de Serpa Pinto, nº 729, hoje desaparecida, para dar lugar a um bloco de apartamentos, no dia 19 de Dezembro de 1961. Nunca mais esquecerei esta data, estava eu no Colégio Brotero, porque também foi nesse dia que a União Indiana invadiu e tomou Goa pela força das armas, dando origem ao fim do Império Colonial Português.
Foi o Avô Oliveira, até à sua aposentação, Chefe de Relações Públicas do Banco Português do Atlântico. As qualidades de especialista bancário e no comércio, levaram-no inicialmente a ser convidado para abrir uma filial em Lisboa, da Casa Bancária Pintp Leite, aonde o jovem casal fixou residência e onde o Avô Oliveira. Pouco tempo depois, o bom relacionamento com os lisboetas que bem conhecia, tornaram o Avô Oliveira, um elemento respeitado na praça. Mas as saudades dos pais da Licinha Fleming, menina prendada de dezoito anos, a quem tanto queriam, casada com um homem feito e vivido, fizeram-nos regressar ao Porto. Aqui, o Avô Oliveira, passou para o ramo de seguros, ao qual aliás segundo fui algumas vezes ouvindo comentar em casa, nunca se adaptou plenamente. Algum tempo passado, veio a ser convidado para integrar os quadros da Caixa Geral dos Depósitos, na qual atingiu funções de relevo. Anos mais tarde, ingressou na Casa Bancária Cupertino de Miranda, que se viria a transformar no Banco Português do Atlântico, do qual foi também um dos fundadores, e aonde ficou até se reformar.
Usava capachinho (chinó), que retirava apenas para dormir, muito burguesmente colarinhos engomados, polainas no Inverno e, obviamente, como imagem de marca, um chapéu à bancário. A sua competência e simpatia, contribuíram significativamente para o desenvolvimento do B.P.A..
Quando excedeu o limite de idade, o Avô Oliveira refugiou-se na sua casa de Matosinhos, onde a companhia e o carinho da Família, Mulher, Filho, Nora e Netos, aliviaram os seus sofrimentos até ao termo dos seus dias, com 82 anos.
A Avó Lícia, P. V. Fleming teve a biografia referida há alguns anos n’O Comércio de Leixões, publicação centenária dirigida por Santos Lessa, actualmente suspensa, recordando-se ali uma grande Senhora, Esposa, Mãe e Avó, que se dedicou com energia ao social, às Conferências de S. Vicente de Paulo e foi responsável, durante muitos anos, pelo Lar (inicialmente chamado Refúgio) de Santa Cruz, em Matosinhos, destinado à protecção e educação de raparigas desvalidas, preparando-as para a vida, como se dizia antigamente e aonde existe um memorial de mármore assinalando o facto. Num outro semanário de Matosinhos, ainda em vida, foi-lhe feita uma homenagem com a presença da família próxima, no decurso da qual foi sugerida a atribuição de uma medalha de ouro pela sua acção de benemerência. Esta medalha nunca chegou a ser entregue, por entretanto ter falecido. Não foi, tanto quanto me recordo ou sei avaliar, o paradigma da mulher portuguesa segundo um futuro António Ferro, da propaganda da moral pública e progresso da Nação de Salazar que ainda não despontara, mulher-menina, boneca frágil, calma, servil, obediente, passiva, que procurava no marido o apoio paterno. Pelo contrário, recordo-me bem, era uma pessoa de grande calma, não se perturbando, nem comovendo em vão, irradiando no olhar e gesto, paz e segurança ao redor. Sem desprimor, a sua educação de tipo conservador, era fundamentalmente doméstica. Só mais tarde, as raparigas portuguesas começaram a iniciar um percurso escolar, ao nível do primário e secundário, o que aliás consigo não aconteceu, pois não passou do ensino elementar. O grande papel que a Licinha reservou para si, para nosso orgulho de FO’s, foi o de Esposa, Mãe e Avó. Os Avós Augusto, Johnston de Oliveira e Lícia, Pereira de Vasconcelos Fleming, que em 1916 deram origem aos FO’s que hoje somos, foram um notável e exemplar casal, que deixou grande número de amigos, com os quem conviveu e soube manter as melhores relações e respeitabilidade social. As personalidades dos Avós FO, inseridas no tempo em que floresceram, não estão esquecidas, pois ainda hoje continuam a ser recordadas, especialmente por matosinhenses e claro por nós, os seus descendentes FO’s. Admito perfeitamente, mas aqui já estou a divagar, que a Avó Licinha, tendo consciência do passo que a certa altura iria dar, o casamento, ponderou a escolha de um marido a quem e a pudesse fazer feliz, mas ainda na forma de em geral proceder na vida, digna, recta, expressiva e porque não dizer, sofredora, se necessário. E assim foi, com muita gente mesmo fora de casa a reclamar o seu serviço, a que nunca se furtou, por vezes prazenteiramente! Ou seja, sem prejuízo do tempo para as obras sociais (ser útil ao semelhante), um procedimento que apelasse ao espaço doméstico, alguma cozinha (que belos bifes com batata frita lá se comiam, como recordou a Náná) e regras de convivência exterior.
Os filhos do primeiro casal FO, Fernando A., o Zico que deu origem ao ramo FO de Miramar, e Mário A., que deu origem ao ramo FO de Matosinhos, deram-lhes bastantes netos, e alguns bisnetos como a Raquel, a Paula e o Miguel, de cuja presença apenas a Avó Lícia, ainda de boa saúde e que não prescindia de um copito de branco ao almoço, mas só de branco, pôde gozar em Miramar.

4)

Admito todavia que haja que pense que eu deveria ser já uma peça de museu, pois não troco de telemóvel todos os seis meses, de carro cada cem mil quilómetros, não tenho gps, nem televisor de plasma.
Já passei os sessenta. Isso não é relevante para mais ninguém, salvo para mim ou Aninhas. No entanto, gosto de regressar a momentos antigos, de preferência bem passados e memórias gostosas e doces. Não querendo apenas passar pela vida, com ela dancei pisando-lhe calos, rodopiando depressa, sentindo o vento, salpicando-me com a chuva, aspirando as estações, as primaveras, os verões, os outonos e os invernos…
Um belo dia, a Raquelinha deu-nos uma menina de caracóis e mãos esguias, que transpirava ao chupar sofregamente a tetina do biberão. Aquela menina, sangue do nosso sangue, tornou-se logo no símbolo da mocidade ida, do nosso júbilo e do nosso futuro. O espantoso é que todos desde os pais, aos avós FO’s ou Gaspar’s e tios, se reclamaram de direitos, pelo menos, o seu direito de a amar, ser amado e se rever nela.
Sim, tenho a certeza de que a vida deu à Aninhas e a mim (e falo apenas por nós), a T. e depois os outros dois que se seguiram, como grande compensação pelas mutilações trazidas pela velhice. São três amores novos que temos neste 2006, que vêm ocupar o lugar deixado por quaisquer arroubos ou interesses antigos.
Sim, tenho a certeza que os nossos três netos são melhores que namorados, como diria o Zico se cá estivesse, pois que os calores da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos.
Nem tudo são flores, no nosso caminho de Avós. Há, acima de tudo, o entrave maior, os grandes rivais dos avós como nós, que são os respectivos pais. Não importa que esses pais, sejam a filha ou o filho. Não deixam por isso de ser os pais do nosso neto. Não nos importa que eles, ainda que só com oportunismo, ensinem o(a) menino(a) a dar miminhos e a chamar-nos Minanos. São lisonjas, pensamos nós mesmo assim enlevados, a Aninhas e eu.
No fundo, os pais são mesmo os nossos rivais. Os pais tem todas as vantagens de domesticidade e de uma presença constante. Dormem com eles, dão-lhes banho, e comida, aturam as birras, limpam-lhes o tútú ou levam-nos a fazer chichi, vestem-nos, embalam-nos de noite se ou quando têm pesadelos com a presença de maus.
Contra si tem porém a rotina do dia a dia, a obrigação de ouvir as veementes reclamações, de educar e o grande e inalienável ónus de castigar. Mas…
Já nós, os avós, não temos (não tenho), não queremos (não quero), nem podemos (não posso) ter, direitos semelhantes, oferecemos (ofereço) a sedução da novidade do fim de semana, muitas vezes nos Montes, aonde existe um espantalho para afastar a D. Birra. Moramos noutra casa e noutra terra. Trazemos presentes. Fazemos coisas não programadas. Levamos a passear, e não ralhamos nunca. Deixamos os meninos lambuzar a cara com gelado, mexer na terra com as mãos, sujar a roupa, afugentamos os pesadelos e os maus façanhudos. Não temos pretensões pedagógicas, que deixamos aos pais. Não nos incomodam as rabugices encarniçadas, mesmo com o volume no máximo, que parece uma melodiosa peça de Mozart.
Somos confidentes das horas de algum ressentimento, o último recurso dos momentos de reclamação, das soluções miraculosas para as situações insolúveis, ou de opressão psicológica (?), os aliados nas crises de rebeldia juvenil. Umas férias passadas em nossa casa longe dos pais, é uma fuga à rotina, tem os encantos de uma Aventura dos Cinco. Na nossa casa, não há linha divisória rigorosa entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina doméstica diária. Dormir sem ser obrigado a lavar os dentes, recusar a sopa, meter o dedo no copo de vinho, destruir revistas, esconder coisas, riscar uma parede e depois dizer que não fui eu, ou foi sem querer, não foi Avó?, entornar água no chão, puxar o rabo ao minicão da Tia Paula...
Fazer uma birra e em vez de apanhar um oportuno tabefe, ir para os braços da avó Aninhas, e lá escutar a defesa sobre os perigos e os erros da educação moderna... entre as fungadelas dos pais.
Dizem-nos que no reino dos céus, o cristão vai beneficiar de requintados prazeres. Porém, nenhum está acima do que é entrar na loja do chinês, de mãos dadas num neto caprichoso que não quer desmontar da mota para satisfação do dono e gáudio de populares que se juntaram à porta para assistir à cena. E, ainda recordo, como a Aninhas e eu, nós avós bem-aventurados, tínhamos orgulho em passear na rua a nossa T., de ver os outros morrer de inveja.
Creio poder dizer que sempre houve um tácito entendimento entre os Minanos e netos, mesmo na hora em que os pais castigam, e quando eles olham para nós, sabendo que, se nesse momento não intervimos abertamente, pelo menos lhes damos solidariedade…
Até há coisas negativas que se podem virar em sorrisos, como quando aquela jarra de cristal pintado se quebrou, porque o menino bateu nela com uma bola que chutou. A Aninhas e eu somos capazes de dizer, com o ar mais aliviado, se não agradecido pela maré, que ainda bem ninguém se magoou, pois a culpa foi mesma da bola, não foi? Era apenas uma bugiganga com cem anos, não existe dinheiro que a pague. Para da próxima vez espantar a D. Culpa, já mandámos fazer um eficiente espantalho, que se encontra nos Montes, sempre pronto a servir.
Tanto quanto sei os Mandamentos, dos cristãos romanos, ortodoxos, presbiterianos, calvinistas, judeus, muçulmanos, monárquicos ou até republicanos, são dez, leis imemoriais criadas para reger a relação dos seres humanos entre si e com as coisas. Peça central da nossa cultura ou forma de pensar, para materializar as ideias em pessoas, ou emoções, a síntese dos Mandamentos é amar e ser amado. Nesse desenvolvimento, amar e honrar os Maiores, é um preceito de comportamento, correlacionado com a vida em sociedade e família.
Mas, a tradicional pirâmide das relações sociais virou do avesso no último século. Antes, nunca houve dúvidas que a pater-maternidade era a forma perfeita de amar e ser amado. Cheguei a esta conclusão há muito tempo, especialmente em Alcobaça, não por ser Alcobaça como é manifesto, ao analisar as interacções entre ancestrais e descendentes, aqueles que nunca morrem (os Zicos, a D. Ana e o Dr. Amílcar), estes (a Raquelinha, a Paula e o Miguel) que para a Aninhas e para mim nunca crescem devidamente.
Dentro da estrutura cultural de que falo, ser filho é um passo entre o nascimento e a independência, que permite um dia o saber fazer. A criança é um pestanejo na história de uma família. A feitura dos mais novos começa obviamente na gestação e continua pela vida dentro, na transferência de habilidades e técnicas que permitem entender as palavras, os conceitos, as relações adequadas e necessárias, a evitar ou a alimentar.
Ser filho, é parte extra-uterina da procriação. Mas tão só numa perspectiva material. Há um dia em que o mais novo opta, pelo seu estilo de vida e define actividades não pensadas ou desenvolvidas no seu anterior grupo doméstico. E, se usar a gentileza e emotividade, manipulará muito graciosamente os mais velhos para dentro das suas ideias ou imporá o seu sentir e pensar, definindo nesse momento o termo do nascimento e a libertação das reduzidas definições familiares. E começa, separado dos seus ancestrais, a ser adulto.
A coabitação de gerações nunca foi fácil, mas disso nem a Aninhas nem eu, nos queixamos. Mal começaram os meus meninos a aprender a optar (saíram cedo de casa para ir estudar no Porto ou Lisboa), a amar e ser amados fora do lar, a casa ancestral de Alcobaça passou a ser um sítio de passagem e as opiniões da Aninhas e minhas, cantigas de Santa Maria...
O amor do mais novo não é comparável ao do adulto ainda jovem. O mais novo, tem a paixão e o calor que os seus adultos um dia tiveram. O mais novo ama com o corpo, sente, não pensa. Avança sem reparar nas consequências. Jura lealdade, mesmo ao Pai ou à Mãe, que não sabe se pode ou deve um dia manter, até chegar a outro compromisso.
Lentamente, com a sua inteligência e bom senso, define as formas de agir para converter o seu novo mundo numa actividade que se adeque aos seus objectivos e necessidades. O agir jovem é ousado e aponta aquilo que os velhos, como nós, deveriam"fazer. Deveriam!!!, para não ficarem limitados aos dissentimentos acumulados nos anos de vida com os mais velhos. Esses que eles não querem ouvir, têm agora os seus, aprendidos com a sua própria sabedoria e não o saber do mais grande, um saber alegadamente obsoleto, que precisa de ser evitado.
Se o nascimento dos filhos acaba no dia da sua emancipação, a infância do adulto começa nesse dia.
É hábito, necessidade?, dos mais antigos dar lições aos descendentes, sejam eles crescidos ou já não. Reconheço, em mim, esse vício junto da Raquel, Paula ou Miguel. No que diz respeito, ao Nuno G. só vou dando opiniões jurídicas e já com algum receio. Tenho observado muito benevolentemente a atitude dos meus meninos, ao manifestar uma aceitação parcial, com dia e hora marcados, para continuar a agir com liberdade dentro dos seus novo e nosso antigo grupo familiar. Toca ao adulto saber ver, ouvir e calar. Passa-se a ser filho dos filhos. A aceitar as suas recomendações e as suas imposições, especialmente no que diz respeito à privacidade e à criação dos rebentos. À nossa frente, muito concretamente não o esquece a Aninhas, há uma outra família que, ainda que com origem em nós, é um grupo diferente, para os quais o saber e as nossas experiências, podem não fazer sentido, especialmente na comunicação com a terceira geração.
Eis que passamos a ser filhos, mesmo inadvertidamente, na observação da linguagem, objectivos e comportamentos, dos seres que criamos e, que, natural e culturalmente, um dia também são adultos e pais como nós.
Daí o antigo Mandamento, virado hoje do avesso:
Honra os teus filhos, sê submisso a eles para ter uma longa vida na terra e cumprir as responsabilidades primordiais da família.
No próximo ano, vou fazer sessenta e dois anos, e num passo um pouco menino, algo trôpego e desajeitado, incapaz de dar um chuto na bola, gostaria de continuar a poder ir andando de mãos dadas com a Aninhas ou os netos, procurar musgo para fazer um presépio ou uma cascata joanina, ou numa noite sem nuvens, redescobrir a estrela de cada um. Falo muito do tempo de ontem em que se faziam universos, tinha os braços protectores dos Pais, mas quero ser ainda do de hoje e se possível do de amanhã. Mas escrevo umas patacoadas (livros, artigos?), plantei árvores no pátio da casa e tenho três filhos. Já fiz algo, muito do que queria fazer.

5)

Vou contar uma história, que mete um(a) oliveira, e que aprendi há muitos anos quando vim para Alcobaça. Quem a contava, era o velho Sousa P., de Aljubarrota, que no tempo do Dr. Magalhães passava pelo escritório, para pôr a conversa em dia, como dizia.
Numa manhã de Domingo, um senhor juiz, homem sessentão e com boa situação na vida, passeava a cavalo, ali pelos lados da Serra d’Aire e Candeeiros, quando deparou com um camponês, ainda mais velho que ele, que plantava uma oliveira.
Do alto do seu cavalo, quis saber se o camponês ainda pensava vir a saborear o fruto dessa árvore, que demora uns anos a dar a primeira colheita.
O velhote, levantou-se em sinal de respeito, tirou o barrete e disse:
-Meu senhor, se ainda estou vivo, é porque me alimento do que outros antes de mim fizeram e plantaram. Portanto, planto uma oliveira como eu (o seu nome era Oliveira), para que os meus filhos um dia possam comer dela.
O juiz gostou tanto da resposta, que premiou o camponês com uma moeda. Enquanto este guardava, a moeda na algibeira, abriu-se num sorriso e comentou que, notável foi a rapidez com que a oliveira começou a dar seus frutos.
O juiz voltou a apreciar o comentário do camponês e deu-lhe outra moeda. Tão contente ficou o velhote que levou as mãos em direcção ao céu e disse:
-Meu senhor, o mais admirável desta árvore foi já ter sido capaz de dar duas boas colheitas no mesmo ano.
O juiz mais admirado ainda lhe deu outra moeda. Mas antes que o meu homónimo e bibaço Oliveira reagisse, retomou o caminho rumo
ao seu destino.
Um dia, o Zico estendeu as mãos//Para o nada e fez-se espaço.//Um dia, a Zica estendeu as mãos//E fez-se o encontro.//Um dia, o amor tornou-se vida //Das suas vidas e eu existi.//Mãe, o céu sem limites, revela-me o teu amor//A vastidão do mar, //Fala-me da tua bondade,//As agruras, reflectem o teu heroísmo,//A beleza da flor, orienta o teu caminho.

Tudo isso encerravas no teu enorme peito,//Silenciosa, serena,//Continuaste a labutar no quotidiano da vida.

Um dia o amor se tornou vida,//E eu existi.//Um dia partiste//E eu fiquei.//Obrigado Ziquinha,//Até sempre.