-50 ANOS DO 25 DE
ABRIL-
O PÉ DESCALÇO
José Alberto Vasco
Nascer na Alcobaça de meados da década de
1950 significou também para mim ter começado a estudar no decénio seguinte, em
plena defluência salazarista. Iniciei o período da escola primária ainda no há
muito extinto edifício escolar situado na zona onde presentemente se situa o
parque de estacionamento junto ao mercado municipal, de onde nos transferiram
pouco tempo depois para um novo edifício, aquele onde atualmente se localizam a
Junta de Freguesia e o Juízo de Família e Menores de Alcobaça. Era um miúdo da denominada
classe média e, chegado à escola, uma das primeiras circunstâncias que
identifiquei foi a de haver uma perspicaz diferenciação de classe, favorecendo
os alunos de origem mais rica face aos menos favorecidos. Estes últimos eram
claramente os mais prejudicados, nomeadamente em termos de violência
diretamente exercida sobre si pelos professores. Escapavam a essa agressividade
conjuntural os meninos mesmo ricos e os da classe média, mas havia três ou
quatro alunos mais pobres, que eram habitualmente uma espécie de bombos da
festa de um impiedoso professor, que sempre recordarei como um autêntico
déspota, que não hesitava em espancar impiedosa e impunemente aqueles indefesos
garotos, numa época em que não havia classes mistas. Um dos usualmente mais
agredidos era um colega a que chamávamos “Rui Tonto”, a quem vi desferir sovas
de o levar ao chão, implorando mercê a um agressor que não recuava. A evolução da
vida levou a que esse desafortunado colega tivesse desaparecido da minha escola
e da minha vida, mas nunca o esquecerei como genuíno mártir de um ensino
repressivo, efetivado por compulsivos servidores. Recordo também um outro
colega dessa época, provavelmente o mais pobre de todos nós, pois era o único
que ia sempre completamente descalço para as aulas, tendo mesmo sido cognominado
de “Pé Descalço”.
Finalizado
o ensino primário, transferi-me para o ensino técnico e para a então Escola
Técnica de Alcobaça, hoje Escola Secundária Dª Inês de Castro. Aí concluí o Curso
de Formação de Serralheiro, tendo-me o percurso escolar encaminhado seguidamente
para Leiria e para a frequência das chamadas Secções Preparatórias, cuja
finalidade primordial era a admissão ao Instituto Industrial, proporcionando
também a possibilidade de acesso ao Curso Geral dos Liceus ou à Escola de
Regentes Agrícolas. Mudar-me da pacata Alcobaça para a movimentada Leiria constituiu
então uma determinante convulsão na minha vida, também consolidada nas
disciplinas escolares que passei a frequentar, nomeadamente as de História e
Português, essencialmente esta última, em que era crucial o estudo da
literatura portuguesa. A minha adolescência foi também então enfatizada por uma
apreensão mais acentuada acerca do universo político então vivido em Portugal e
a minha vida nunca mais foi a mesma, nomeadamente pelo espectro da guerra
colonial em que Portugal estava então envolvido e para a qual seríamos presumivelmente
coagidos sem apelo nem agravo. O universo escolar encorajava a sua índole
capciosa e autocrática, evidente nos programas escolares e no relacionamento entre
professores e alunos, condicionando negativamente as nossas vidas e a nossa
vivência social. Essa ambiência e novas e antigas amizades pessoais
conduziram-me às primeiras movimentações no universo político, numa época em
que a nível juvenil as influências mais marcantes e organizadas nesse campo eram
o MJT (Movimento dos Jovens Trabalhadores, que sabíamos ser conotado com o
Partido Comunista Português) e o MRPP (liderado pelo mítico Arnaldo de Matos),
embora a minha inspiração política emergente tivesse sido a partir de então a
social-democracia.
A
nível escolar, a frequência da disciplina de Português tornou-se fundamental na
minha vida, a partir dessa época enriquecida pelo contacto com a produção
literária dos mais reconhecidos escritores portugueses, atraindo-me então
essencialmente Fernão Lopes, Almeida Garrett e Cesário Verde, assumindo a
intrepidez de desconsiderar Bernardim Ribeiro, Camões e Eça de Queirós, entre
outras estrelas da literatura portuguesa que o programa nos impunha, mas mantendo
sempre Fernando Pessoa como uma espécie de reserva estratégica. Uma decisiva
perturbação que nos confrontava era a existência de uma perversa Comissão de
Censura, que maleficamente proibia e esquartejava muito do que nesse período se
pretendia publicar, pretendendo assim defender a opção ideológica vigente.
Calhou-nos então em sorte uma distinta e corajosa professora, que
subversivamente nos foi proporcionando o conhecimento da produção literária de
eminentes escritores portugueses que o programa escolar era constrangido a
ignorar e de que a repressão governamental nos afastava, pela proibição e pela
omissão: Carlos de Oliveira, José Rodrigues Miguéis, Soeiro Pereira Gomes e
Urbano Tavares Rodrigues foram alguns deles, mas o mais significativo de todos
foi Nuno de Bragança, com o seu intrépido romance A Noite e o Riso, tesouro literário que revelou em mim um
inabalável interesse pela escrita. Comecei então a escrever um romance,
intitulado A Greve & Outras Coisas,
que relatava a vivência juvenil no depressivo universo então vivido em
Portugal, povoado pela proibição de direitos fundamentais em termos de
liberdade vivencial e política, evidenciando Portugal como um país em que tudo
nos era proibido, incluindo a Coca-Cola, que ainda hoje recordo como uma das
mais estúpidas proibições daquela época de rústico entorpecimento salazarista.
A
minha vida continuou logicamente a politizar-se, assumindo uma militância aberta
e não conotada, o que me direcionava à distribuição subversiva de comunicados
de movimentos oposicionistas que à partida pouco tinham a ver uns com os
outros, embora fosse comum o reconhecimento da necessidade de que o objectivo
principal seria sempre derrotar o obtuso e indigno regime que nos governava.
Marcelo Caetano era então o rosto do regime que nos superintendia, afrontando diariamente
a nossa liberdade, personificado a nível do ensino por Veiga Simão e pela sua
anunciada e enaltecida Reforma, cujos objetivos nos pareciam pouco claros,
revelando-se como mais uma ameaça às nossas vidas e ao nosso futuro.
Continuei
a ser um estudante dedicado e envolvido, preenchendo uma razoável parte dos
meus tempos livres com a atividade cultural possível, lendo o que conseguia,
frequentando o cinema disponível que me interessava e ouvindo música, a partir
dessa época entusiasmado com a liberdade e arrojo do free jazz, que descobrira através do seminal livro Revolução do Jazz, de autoria do saudoso
Jorge Lima Barreto, complementando o que nele lia com a compra dos respetivos
discos na lendária discoteca que então funcionava no piso superior da
Electrolis, onde descobri também os King Crimson. Continuava a escrever o meu
romance, que narrava essencialmente a vivência de dois jovens amigos, um
estudante e um trabalhador, que entre si partilhavam as dificuldades e
esperanças daqueles tempos de difícil esperança, pois o futuro mais previsível
era a chamada obrigatória para combater numa guerra que nada lhes dizia. Face à
vigente ambiência de proibição, fui partilhando com os amigos mais próximos o
que ia escrevendo no meu A Greve &
Outras Coisas, o que me foi dando a conhecer como escritor, não deixando
também de incentivar alguns dos nossos ímpetos mais revolucionários, que com
maior ou menor relutância íamos manifestando no meio escolar. Essa ambiência
revolucionária ganharia um novo ímpeto quando os trabalhadores da Fábrica de
Limas Tomé Feteira, em Vieira de Leiria, se arrojaram em fevereiro de 1974 numa
corajosa e desafrontada greve, afrontando o regime político reacionário e
fascista que proibia também essa liberdade democrática. Foi então que a Turma
35 da Escola Industrial e Comercial de Leiria se decidiu também a enveredar
pela afronta declarada ao regime e ao seu decadente ensino, iniciando também
uma greve, que, apesar de ser um ato proibido, não deixou de ter então alguns
reflexos e notoriedade exterior. O alvo direto da nossa assumida rebelião foi
uma das nossas professoras, que justificava em plenas aulas a sua má fama e o
terror que inspirava nos seus alunos, afirmando-se essa nossa greve como um
exemplar ato de afrontamento do regime fascista que nos controlava e reprimia
as justas e necessárias liberdades, já então permitidas em qualquer regime
democrático. Essa greve efetivou-se também em fevereiro de 1974, tendo-se quase
imediatamente seguido o usual inquérito, adivinhando-se a presumível expulsão
do ensino de alguns dos seus intervenientes, um dos quais era eu mesmo.
Sensivelmente a meio do março seguinte registou-se uma inesperada substituição
no responsável por essa investigação, facto que inicialmente nos deixou
receosos, mas que pouco tempo depois nos descativou a margem de esperança que
nos poderia facultar a salvação face à punição que eventualmente se antevia,
dado que esse novo responsável pelo inquérito, um outro professor da nossa
escola, se nos revelou como militante clandestino do PCP. Os representantes dos
alunos grevistas souberam isso logo na sua primeira sessão de inquérito, em que
lhes foi assegurado que a colocação desse professor naquele cargo tinha a
intenção de protelar ao máximo a investigação em curso, pois algo de
fundamental se iria passar em Portugal dentro de muito pouco tempo, alterando
definitivamente o nosso presente e o nosso futuro.
Teríamos
essa resposta nessa data brilhante e inesquecível que foi o dia 25 de Abril de
1974 e, efetivamente, o nosso presente e o nosso futuro foram definitivamente
alterados, graças ao esclarecido e heroico grupo de militares que idealizou e
concretizou a revolução que permitiu a Portugal deixar para trás aqueles anos
em que não foi mais que um país moribundo e afastado da realidade democrática e
dos princípios elementares do Estado de Direito. Uma das primeiras alterações a
nível do ensino foi a de finalmente se poderem constituir associações de
estudantes, facto de que uma das minhas primeiras consequências, tal como para
alguns dos outros participantes na greve da Turma 35, foi a de termos sido
eleitos para a direção da Associação de Estudantes da Escola Industrial e
Comercial de Leiria, época em que vivi exemplares momentos de liberdade e
responsabilidade democrática. Outro desses inesquecíveis momentos foi o de dois
desses responsáveis, eu e o meu eterno amigo Carlos Rebelo, termos sido
convidados para escrever o discurso do aluno que representaria os estudantes de
Leiria na histórica e inesquecível manifestação que no dia 1 de maio desse ano
assinalaria na Praça Rodrigues Lobo as primeiras comemorações livres do Dia do
Trabalhador no novo Portugal democrático, discurso que nesse dia foi lido pelo
Carlos, na varanda do Ateneu de Leiria, perante uma praça repleta de povo e
liberdade. Um dos episódios mais curiosos de que me recordo nesses gloriosos
dias foi a prisão do marido da inesquecível professora que nos libertara
literatura proibida nas suas aulas, sob a acusação de ser agente da odiosa
PIDE. Assumi a nova vivência democrática em total empenho e liberdade, embora a
libertadora revolução tenha então presumivelmente liquidado a minha carreira
literária, dado que o meu romance ficou automaticamente desatualizado, nunca
tendo sido publicado. Liquidada ficou também a partir daí a minha carreira
futebolística, dado que estava acertado com um clube da região para na época
seguinte me federar e ir jogar na então I Divisão Distrital. Deixei também
então de estudar, tendo ido trabalhar para a empresa comercial que o meu pai
entretanto fundara, tendo apenas reiniciado os meus estudos quase uma década
depois, concluindo o ensino liceal e tendo depois iniciado o meu catastrófico
percurso pelo Curso de Direito, liquidado numa fulminante prova oral de Direito
Constitucional em que fui literalmente trucidado pelo Professor Gomes
Canotilho.
Como
todas as revoluções, o 25 de Abril tem sido um projeto coletivo de avanços e
recuos, em que o fundamental continua a ser o facto de Portugal ser honrado por
uma Constituição da República que nos permite viver em total liberdade
democrática. Surpreendentemente, há alguns meses, cruzei-me numa rua de
Alcobaça com um senhor que rapidamente reconheci como sendo o antigo colega da
escola primária a que chamávamos “Pé Descalço”. Confesso que foi para mim um
momento de enorme e cristalina felicidade, dado que ele ia acompanhado por uma
senhora, que presumi ser a sua mulher, e por alguns meninos, que presumi serem
seus filhos. Olhei para os pés de todos eles e confirmei, maravilhado, que
todos eles iam devidamente calçados. Refleti com imediata e inexcedível
felicidade que só por isso também valeu plenamente o 25 de Abril, a que aqui
deixo mais este viva!