sábado, 30 de dezembro de 2023

50 ANOS DO 25 DE ABRIL- O PÉ DESCALÇO

 

-50 ANOS DO 25 DE ABRIL-

O PÉ DESCALÇO

 

José Alberto Vasco

 

     Nascer na Alcobaça de meados da década de 1950 significou também para mim ter começado a estudar no decénio seguinte, em plena defluência salazarista. Iniciei o período da escola primária ainda no há muito extinto edifício escolar situado na zona onde presentemente se situa o parque de estacionamento junto ao mercado municipal, de onde nos transferiram pouco tempo depois para um novo edifício, aquele onde atualmente se localizam a Junta de Freguesia e o Juízo de Família e Menores de Alcobaça. Era um miúdo da denominada classe média e, chegado à escola, uma das primeiras circunstâncias que identifiquei foi a de haver uma perspicaz diferenciação de classe, favorecendo os alunos de origem mais rica face aos menos favorecidos. Estes últimos eram claramente os mais prejudicados, nomeadamente em termos de violência diretamente exercida sobre si pelos professores. Escapavam a essa agressividade conjuntural os meninos mesmo ricos e os da classe média, mas havia três ou quatro alunos mais pobres, que eram habitualmente uma espécie de bombos da festa de um impiedoso professor, que sempre recordarei como um autêntico déspota, que não hesitava em espancar impiedosa e impunemente aqueles indefesos garotos, numa época em que não havia classes mistas. Um dos usualmente mais agredidos era um colega a que chamávamos “Rui Tonto”, a quem vi desferir sovas de o levar ao chão, implorando mercê a um agressor que não recuava. A evolução da vida levou a que esse desafortunado colega tivesse desaparecido da minha escola e da minha vida, mas nunca o esquecerei como genuíno mártir de um ensino repressivo, efetivado por compulsivos servidores. Recordo também um outro colega dessa época, provavelmente o mais pobre de todos nós, pois era o único que ia sempre completamente descalço para as aulas, tendo mesmo sido cognominado de “Pé Descalço”.

Finalizado o ensino primário, transferi-me para o ensino técnico e para a então Escola Técnica de Alcobaça, hoje Escola Secundária Dª Inês de Castro. Aí concluí o Curso de Formação de Serralheiro, tendo-me o percurso escolar encaminhado seguidamente para Leiria e para a frequência das chamadas Secções Preparatórias, cuja finalidade primordial era a admissão ao Instituto Industrial, proporcionando também a possibilidade de acesso ao Curso Geral dos Liceus ou à Escola de Regentes Agrícolas. Mudar-me da pacata Alcobaça para a movimentada Leiria constituiu então uma determinante convulsão na minha vida, também consolidada nas disciplinas escolares que passei a frequentar, nomeadamente as de História e Português, essencialmente esta última, em que era crucial o estudo da literatura portuguesa. A minha adolescência foi também então enfatizada por uma apreensão mais acentuada acerca do universo político então vivido em Portugal e a minha vida nunca mais foi a mesma, nomeadamente pelo espectro da guerra colonial em que Portugal estava então envolvido e para a qual seríamos presumivelmente coagidos sem apelo nem agravo. O universo escolar encorajava a sua índole capciosa e autocrática, evidente nos programas escolares e no relacionamento entre professores e alunos, condicionando negativamente as nossas vidas e a nossa vivência social. Essa ambiência e novas e antigas amizades pessoais conduziram-me às primeiras movimentações no universo político, numa época em que a nível juvenil as influências mais marcantes e organizadas nesse campo eram o MJT (Movimento dos Jovens Trabalhadores, que sabíamos ser conotado com o Partido Comunista Português) e o MRPP (liderado pelo mítico Arnaldo de Matos), embora a minha inspiração política emergente tivesse sido a partir de então a social-democracia.

A nível escolar, a frequência da disciplina de Português tornou-se fundamental na minha vida, a partir dessa época enriquecida pelo contacto com a produção literária dos mais reconhecidos escritores portugueses, atraindo-me então essencialmente Fernão Lopes, Almeida Garrett e Cesário Verde, assumindo a intrepidez de desconsiderar Bernardim Ribeiro, Camões e Eça de Queirós, entre outras estrelas da literatura portuguesa que o programa nos impunha, mas mantendo sempre Fernando Pessoa como uma espécie de reserva estratégica. Uma decisiva perturbação que nos confrontava era a existência de uma perversa Comissão de Censura, que maleficamente proibia e esquartejava muito do que nesse período se pretendia publicar, pretendendo assim defender a opção ideológica vigente. Calhou-nos então em sorte uma distinta e corajosa professora, que subversivamente nos foi proporcionando o conhecimento da produção literária de eminentes escritores portugueses que o programa escolar era constrangido a ignorar e de que a repressão governamental nos afastava, pela proibição e pela omissão: Carlos de Oliveira, José Rodrigues Miguéis, Soeiro Pereira Gomes e Urbano Tavares Rodrigues foram alguns deles, mas o mais significativo de todos foi Nuno de Bragança, com o seu intrépido romance A Noite e o Riso, tesouro literário que revelou em mim um inabalável interesse pela escrita. Comecei então a escrever um romance, intitulado A Greve & Outras Coisas, que relatava a vivência juvenil no depressivo universo então vivido em Portugal, povoado pela proibição de direitos fundamentais em termos de liberdade vivencial e política, evidenciando Portugal como um país em que tudo nos era proibido, incluindo a Coca-Cola, que ainda hoje recordo como uma das mais estúpidas proibições daquela época de rústico entorpecimento salazarista.

A minha vida continuou logicamente a politizar-se, assumindo uma militância aberta e não conotada, o que me direcionava à distribuição subversiva de comunicados de movimentos oposicionistas que à partida pouco tinham a ver uns com os outros, embora fosse comum o reconhecimento da necessidade de que o objectivo principal seria sempre derrotar o obtuso e indigno regime que nos governava. Marcelo Caetano era então o rosto do regime que nos superintendia, afrontando diariamente a nossa liberdade, personificado a nível do ensino por Veiga Simão e pela sua anunciada e enaltecida Reforma, cujos objetivos nos pareciam pouco claros, revelando-se como mais uma ameaça às nossas vidas e ao nosso futuro.

Continuei a ser um estudante dedicado e envolvido, preenchendo uma razoável parte dos meus tempos livres com a atividade cultural possível, lendo o que conseguia, frequentando o cinema disponível que me interessava e ouvindo música, a partir dessa época entusiasmado com a liberdade e arrojo do free jazz, que descobrira através do seminal livro Revolução do Jazz, de autoria do saudoso Jorge Lima Barreto, complementando o que nele lia com a compra dos respetivos discos na lendária discoteca que então funcionava no piso superior da Electrolis, onde descobri também os King Crimson. Continuava a escrever o meu romance, que narrava essencialmente a vivência de dois jovens amigos, um estudante e um trabalhador, que entre si partilhavam as dificuldades e esperanças daqueles tempos de difícil esperança, pois o futuro mais previsível era a chamada obrigatória para combater numa guerra que nada lhes dizia. Face à vigente ambiência de proibição, fui partilhando com os amigos mais próximos o que ia escrevendo no meu A Greve & Outras Coisas, o que me foi dando a conhecer como escritor, não deixando também de incentivar alguns dos nossos ímpetos mais revolucionários, que com maior ou menor relutância íamos manifestando no meio escolar. Essa ambiência revolucionária ganharia um novo ímpeto quando os trabalhadores da Fábrica de Limas Tomé Feteira, em Vieira de Leiria, se arrojaram em fevereiro de 1974 numa corajosa e desafrontada greve, afrontando o regime político reacionário e fascista que proibia também essa liberdade democrática. Foi então que a Turma 35 da Escola Industrial e Comercial de Leiria se decidiu também a enveredar pela afronta declarada ao regime e ao seu decadente ensino, iniciando também uma greve, que, apesar de ser um ato proibido, não deixou de ter então alguns reflexos e notoriedade exterior. O alvo direto da nossa assumida rebelião foi uma das nossas professoras, que justificava em plenas aulas a sua má fama e o terror que inspirava nos seus alunos, afirmando-se essa nossa greve como um exemplar ato de afrontamento do regime fascista que nos controlava e reprimia as justas e necessárias liberdades, já então permitidas em qualquer regime democrático. Essa greve efetivou-se também em fevereiro de 1974, tendo-se quase imediatamente seguido o usual inquérito, adivinhando-se a presumível expulsão do ensino de alguns dos seus intervenientes, um dos quais era eu mesmo. Sensivelmente a meio do março seguinte registou-se uma inesperada substituição no responsável por essa investigação, facto que inicialmente nos deixou receosos, mas que pouco tempo depois nos descativou a margem de esperança que nos poderia facultar a salvação face à punição que eventualmente se antevia, dado que esse novo responsável pelo inquérito, um outro professor da nossa escola, se nos revelou como militante clandestino do PCP. Os representantes dos alunos grevistas souberam isso logo na sua primeira sessão de inquérito, em que lhes foi assegurado que a colocação desse professor naquele cargo tinha a intenção de protelar ao máximo a investigação em curso, pois algo de fundamental se iria passar em Portugal dentro de muito pouco tempo, alterando definitivamente o nosso presente e o nosso futuro.

Teríamos essa resposta nessa data brilhante e inesquecível que foi o dia 25 de Abril de 1974 e, efetivamente, o nosso presente e o nosso futuro foram definitivamente alterados, graças ao esclarecido e heroico grupo de militares que idealizou e concretizou a revolução que permitiu a Portugal deixar para trás aqueles anos em que não foi mais que um país moribundo e afastado da realidade democrática e dos princípios elementares do Estado de Direito. Uma das primeiras alterações a nível do ensino foi a de finalmente se poderem constituir associações de estudantes, facto de que uma das minhas primeiras consequências, tal como para alguns dos outros participantes na greve da Turma 35, foi a de termos sido eleitos para a direção da Associação de Estudantes da Escola Industrial e Comercial de Leiria, época em que vivi exemplares momentos de liberdade e responsabilidade democrática. Outro desses inesquecíveis momentos foi o de dois desses responsáveis, eu e o meu eterno amigo Carlos Rebelo, termos sido convidados para escrever o discurso do aluno que representaria os estudantes de Leiria na histórica e inesquecível manifestação que no dia 1 de maio desse ano assinalaria na Praça Rodrigues Lobo as primeiras comemorações livres do Dia do Trabalhador no novo Portugal democrático, discurso que nesse dia foi lido pelo Carlos, na varanda do Ateneu de Leiria, perante uma praça repleta de povo e liberdade. Um dos episódios mais curiosos de que me recordo nesses gloriosos dias foi a prisão do marido da inesquecível professora que nos libertara literatura proibida nas suas aulas, sob a acusação de ser agente da odiosa PIDE. Assumi a nova vivência democrática em total empenho e liberdade, embora a libertadora revolução tenha então presumivelmente liquidado a minha carreira literária, dado que o meu romance ficou automaticamente desatualizado, nunca tendo sido publicado. Liquidada ficou também a partir daí a minha carreira futebolística, dado que estava acertado com um clube da região para na época seguinte me federar e ir jogar na então I Divisão Distrital. Deixei também então de estudar, tendo ido trabalhar para a empresa comercial que o meu pai entretanto fundara, tendo apenas reiniciado os meus estudos quase uma década depois, concluindo o ensino liceal e tendo depois iniciado o meu catastrófico percurso pelo Curso de Direito, liquidado numa fulminante prova oral de Direito Constitucional em que fui literalmente trucidado pelo Professor Gomes Canotilho.

Como todas as revoluções, o 25 de Abril tem sido um projeto coletivo de avanços e recuos, em que o fundamental continua a ser o facto de Portugal ser honrado por uma Constituição da República que nos permite viver em total liberdade democrática. Surpreendentemente, há alguns meses, cruzei-me numa rua de Alcobaça com um senhor que rapidamente reconheci como sendo o antigo colega da escola primária a que chamávamos “Pé Descalço”. Confesso que foi para mim um momento de enorme e cristalina felicidade, dado que ele ia acompanhado por uma senhora, que presumi ser a sua mulher, e por alguns meninos, que presumi serem seus filhos. Olhei para os pés de todos eles e confirmei, maravilhado, que todos eles iam devidamente calçados. Refleti com imediata e inexcedível felicidade que só por isso também valeu plenamente o 25 de Abril, a que aqui deixo mais este viva!

                                             

 

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O NOSSO PRESÉPIO

 

O NOSSO PRESÉPIO

 

FLeming de OLiveira

 

 

Presépio, em português, refere-se ao local do nascimento de Jesus em Belém, na companhia de José e da Virgem Maria.

Recorde-se que, conforme o Novo Testamento, por motivo de recenseamento de toda a Galileia, José e a Virgem Maria foram para as imediações da Judeia, na cidade de Belém. De acordo com a mesma fonte, após o nascimento, à falta de melhor, Jesus foi envolto em panos e deitado numa manjedoura de palha destinada à alimentação de gado, pois não havia lugar para eles na estalagem, e foi visitado, após o nascimento, por pastores avisados por um anjo, e, mais tarde, não na manjedoura, mas na casa de Jesus, pelos Três Reis Magos, Belchior, Gaspar e Baltazar, vindos do Oriente, guiados por uma estrela, os quais ofereceram ouroincenso e mirra ao Menino.

Segundo o Novo Testamento, estes acontecimentos ocorreram no tempo de Herodes, que teria mandado matar todas as crianças até 2 anos de idade com receio de perder o seu trono para o futuro rei dos judeus.

Tornou-se costume em várias culturas de origem mediterrânea, muito concretamente em Portugal, montar um presépio por alturas do  Natal.

O primeiro presépio do mundo terá sido feito como um cenário vivo por S. Francisco de Assis, em 1223. Nesse ano, em vez de festejar a noite de Natal na Igreja, o Francisco fê-lo na floresta, para onde mandou transportar uma manjedoura, um boi e um burro, para melhor explicar o Natal aos camponeses que não conseguiam entender a história do nascimento de Jesus. Quando hâ una anos estive na zona de Assis durante 4 dias, tive oportunidade de constatar a marca do Santo na cidade e muito concretamente os presépios, aliás na montagem um pouco diferentes do nosso “tradicional”. Mais vistosos? Diferentes.

O Presépio “Tradicional” Português é feito com musgo, vegetação e peças de cerâmicas avulsas.

Em Portugal, o presépio tem tradições muito antigas e enraizadas. Em casa de meus Pais (onde havia 8 filhos!) era montado com cerimonial no início do Advento, naturalmente ainda sem a figura do Menino colocada apenas na noite de Natal, e depois da Missa do Galo, a que nunca faltávamos. Perto do presépio eram postos os presentes a distribuir quando chegássemos a casa.

O presépio era desmontado a seguir ao Dia de Reis, 6 de janeiro, com um emocionado até ao próximo ano

Presépio “Tradicional” Português é, ao contrário do que encontramos  noutros países, formado por figuras tão díspares que não correspondem exatamente à época que alegadamente deveriam representar. À exceção das figuras da Sagrada Família, dos Pastores e dos Reis Magos, todas as demais  foram adicionadas com vista a dar representação, o mais portuguesa possível, à  Natividade.

Mas é assim que gostamos.

domingo, 24 de dezembro de 2023

REINALDO GUERRA MADELENO UM DOUTOR “HABILIDOSO”

 

 

REINALDO GUERRA MADELENO

UM DOUTOR “HABILIDOSO”

 

 

Fleming de Oliveira

 

 

 

 

  Em meados de 1992, o Distrito de Leiria[1] voltou a ser “publicado” ao fim de vários anos de interrupção, pois cessara em 1982 com 36 números, envolvido em polémicas escandalosas, desinteressantes, muito direcionadas e sem leitores.

  Foi um número ad hoc para o Cartório Notarial de Alcanena. Anunciava uma tiragem de 3.000 exemplares, não referia o preço de venda, o local de impressão, a ficha técnica, o número de registo do título, o nome, a firma ou denominação social do proprietário, etc. e a formatação/paginação era muito grosseira. Também ficcionou um Francisco Neto (Francisco José Neto Rodrigues, natural da República do Zaire, sem outros dados) como diretor do jornal. O jornal destinava-se a justificar a aquisição de 800.690 m2 de terreno na Serra dos Candeeiros, a favor de um tal Francisco Luís Ogando Araújo Leite, referido apenas como residente em Lisboa.

  A notícia correu pela Benedita e arredores causando espanto, se não alarmismo, e começou a dizer-se que o advogado Reinaldo Guerra Madaleno tinha feito mais uma “habilidade”. Quem denunciou a situação foi o Pórtico, jornal que se publicava na Benedita e ao qual chegou uma cópia da escritura outorgada no dia 26 de março de 1992, no Cartório Notarial de Alcanena.

  Em Alcobaça, Caldas da Rainha, Rio Maior, Porto de Mós ou Batalha a realização da escritura era suscetível de levantar objeções. Segundo o texto da mesma, Francisco Luís Ogando Araújo Leite – pessoa que na zona ninguém conhecia, mas que o ajudante do notário disse conhecer – seria dono de uma área de terreno com cerca de 800.690 m2 na Serra dos Candeeiros, com o valor patrimonial de 1.034$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça/CRP Alcobaça sob o nº814-Freguesia da Benedita, sem qualquer registo de aquisição, que teria adquirido verbalmente em comum e partes iguais por alturas de 1969/1970 a dois casais da Benedita cujo nome referiu mas que ninguém conhecia e a mais outras pessoas que não identificou – o primeiro ajudante de notário disse de novo, serem pessoas do seu conhecimento – alegadamente herdeiros de foreiros mas sem fazer a respetiva prova – intervenientes no contrato de enfiteuse celebrado com a Câmara Municipal de Alcobaça em 1857 como veio a ser reconhecido no processo 6/69- 2ª Sec. que correu seus termos no T. J. Alcobaça e a seguir se volta a referir.

  A ser verdade, o que não era, Araújo Leite desde essa altura possuía o terreno, cortando o mato, explorando pedreiras, exercendo todos os actos como um proprietário pleno, sem interrupção, ostensivamente, sem oposição e com o conhecimento de toda a gente, praticando enfim os atos semelhantes a um verdadeiro e titulado proprietário.

  Aproveitando a ausência do notário Dr. José Alberto Sá Marques de Carvalho transferido para outro cartório e ainda não substituído, Araújo Leite acompanhado de Guerra Madaleno, compareceu no cartório com três testemunhas, sendo uma o Francisco Neto, que disseram ser do seu conhecimento o que se consignava na escritura. Ainda hoje não se sabe se o ajudante de notário agiu como cúmplice, se era apenas ingénuo, descuidado ou incompetente. Madaleno tratou da documentação para a escritura realizada fora do horário normal de serviço.

  Conforme a Lei do Notariado este tipo de escritura tem de ser publicitada num jornal da localidade onde se situa o prédio ou num dos jornais mais lidos na região e só passados 30 dias, se não houver reclamação, se pode fazer o averbamento.  Publicada em O Alcoa, no Pórtico ou num jornal de âmbito nacional, o assunto daria nas vistas, pelo que a solução foi ficcionar um número do Distrito de Leiria, com data de 17 de abril de 1992, onde se mencionava a escritura. Número e exemplar, apenas para consumar a fraude[2].

  Em fevereiro de 1969 foi proposta no Tribunal de Alcobaça contra a Câmara Municipal a ação 6/69-2ª Sec. patrocinada por Guerra Madaleno em nome de 16 pessoas, tidas como residentes no Casal Gregório, Charneca do Casal do Guerra e Freires, as quais se arrogavam serem foreiros em comum e sem determinação de parte ou direito, de uma área de terreno no Casal do Guerra, sendo a Câmara Municipal titular do domínio direto.

  Por sentença do T.J. Alcobaça de abril de 1971,foi proferida sentença que, em suma, decidiu:

a)    Os autores reconhecidos como sendo em comum e partes iguais titulares do domínio útil (foreiros) sobre aquela área do Casal do Guerra, juntamente com outros não identificados, que não intervieram no processo judicial.

b)   A Câmara Municipal reconhecida como titular do domínio direto.

  O Tribunal da Relação de Coimbra em junho de 1972, confirmou a sentença, tal como o Supremo Tribunal de Justiça, em marco de 1973.

  Os autores e os não identificados tendo em conta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e a extinção dos foros (mas não dos baldios), passaram a ser em comum donos de uma área de terreno imprecisamente delimitada e em metragem.

  Não seria possível dizer em 1992 que, há mais de 20 anos, Araújo Leite havia ali adquirido o terreno, mas realizou-se a escritura e fez-se o averbamento.

  O prédio continua sem registo de aquisição. Em 19 de dezembro de 1989 foi recusada a inscrição de 1/14 avos a favor de João Maria Felizardo, em 23 de junho de 1992 a inscrição a favor de Francisco Luís Ogando Oliveira Leite e em 21 de dezembro de 1992 de novo recusada a inscrição a favor de João Maria Felizardo. Mas Guerra Madaleno não desistiu, e em 22 de outubro de 1995 viu recusada a inscrição de aquisição de 2/8 a favor de Rui Martins Felizardo e mulher Joaquina Martins Felizardo[3].

 

  Reinaldo Guerra Madaleno nasceu a 18 de novembro de 1936, no lugar de Pedra Redonda/Benedita. Frequentou os Seminários de Santarém e Almada, com aproveitamento e empenho regulares. A 28 de janeiro de 1964 concluiu o curso de Direito na Universidade de Lisboa. Exerceu advocacia com escritório em Lisboa até ser suspenso pela Ordem dos Advogados, foi presidente da Direção do Ginásio Clube de Alcobaça de 1981 a 1985, sendo que na época de 1982 a 1983 este clube jogou na Primeira Divisão. Em 17 de outubro de 2003, concorreu às eleições do Benfica, pese embora, haver sido constituído arguido num processo a decorrer no Tribunal de Loulé, acusado de oito crimes de burla e um de associação criminosa, pela compra e venda ilícita de apartamentos no Algarve[4]. Guerra Madaleno e dois colaboradores, um homem e uma mulher, contraíam empréstimos bancários em nome de indivíduos em situação carenciada. Depois, compravam em nome de terceiros apartamentos no Algarve que arrendavam, enquanto deixavam de pagar aos bancos as prestações dos empréstimos. De acordo com a acusação, o procedimento arrastava-se até à venda dos apartamentos em hasta pública, garantido a Guerra Madaleno proveitos económicos elevados e ilícitos. Constava que era sócio maioritário de 12 sociedades, sedeadas na generalidade na zona de Lisboa, ligadas ao imobiliário.

 

  Madaleno apresentou a sua Lista com uma mensagem fantasiosa, asseverando que tenho todas as possibilidades de ganhar as eleições (do Benfica), pois não há solução, nem à esquerda nem à direita. Madaleno começou por criticar Manuel Vilarinho pois ele afirma que pode ganhar, mas isso não é verdade. É impossível que ele ganhe sem dinheiro, e prometeu por à disposição do Benfica 15 milhões de contos para ser o maior clube da Europa. Já em relação a Vale e Azevedo, também foi cáustico, pois, É preciso cortar o mal pela raiz. O clube não pode passar a vida nos tribunais[5]. O Ginásio Clube de Alcobaça voltaria à Primeira Divisão, desta vez teria sucesso e permaneceria pelo menos 5 anos épocas – se necessário como clube satélite do Benfica – instalaria em Alcobaça um polo da Faculdade de Agronomia ou uma Escola Agrária. Foi diretor/dono das revistas Economia e Desenvolvimento e Manifesto onde era o redator, que utilizava como instrumento de promoção pessoal.

 

   Em 1998 foi suspenso pela Ordem dos Advogados por falta de idoneidade para o exercício da profissão. Havia cumprido cerca de 5 anos de prisão efetiva. Faleceu a 29 de agosto de 2011.

 

 



[1]  O proprietário, diretor e redator Reinaldo Guerra Madaleno,

[2] A BNPortugal, recebeu o Distrito de Leiria, até ao nº 38, de 1982.

-Informação da BNP por José Luís Narciso/Área de Referência e Acesso Geral (2022).

 

[3] Os 4 requerimentos apresentavam inúmeras e insanáveis irregularidades, desconformidades com a conhecida e pública realidade, além de conterem pedidos inadmissíveis, como a apropriação de baldios.

-Informação da CRP de Alcobaça, em 3 de setembro de 2022.

[4] Correio da Manhã.

[5] Idem.

VITORINO FRÓIS, JOSÉ TANGANHO, CONCHITA CINTRON E UMA BURRICADA

 

 

 

VITORINO FRÓIS,

JOSÉ TANGANHO,

CONCHITA CINTRON

E

UMA BURRICADA

 

Fleming de Oliveira

 

 

   1901 e 1902, durante a II Guerra Anglo-bóer, inúmeros civis e militares sul-africanos refugiaram-se em Moçambique, principalmente na zona de Lourenço Marques.

 Receosos que os Bóeres se organizassem e voltassem para continuar a guerra, os britânicos pressionaram o governo português para a sua deportação para longe, para Portugal. O realismo impôs-se à necessidade de manter uma ligação política com Londres. Portugal não teve alternativa em termos diplomáticos.

  No Portugal de 1900, em localidades como Caldas da Rainha, Alcobaça, Peniche, Tomar e Abrantes assistiu-se a um esforço inigualável por parte de pessoas e organizações que se uniram para oferecer uma resposta eficaz ao acolhimento e acompanhamento de refugiados vencidos numa guerra longínqua, com a qual, aparentemente, não tinham relação.

 Talvez a principal razão se tenha devido não apenas à tradicional hospitalidade portuguesa, mas também aos persistentes sentimentos antibritânicos decorrentes do Ultimato.

 

  Uma comissão de senhoras de Caldas da Rainha ligadas ao bem-fazer, pensou promover uma tourada e uma quermesse em benefício das crianças bóeres aí alojadas, mas ao ter conhecimento de que elas não se encontram numa necessidade tão grave como suponham, resolveu desistir da tourada, efetuando apenas a quermesse, cujo produto fez reverter em benefício do Hospital de Santo Izidoro.

  Se os calvinistas[1] nada tinham a opor aos jogos do críquete, rugby ou à caça, já a participação nas touradas encontrava-se-lhes vedada, pois é chocante ver como os bois eram tão maltratados.

  Nos princípios do século XX, em Portugal não se questionava a existência de touradas sem bandarilhas. Os calvinistas, encaravam a tourada, não como uma questão de gosto ou tradição, mas civilizacional. Os portugueses contrapunham que tourada sem sangue é a antítese de tourada.

  Alguns exilados não acataram a proibição, pois Vitorino Fróis, organizou uma novilhada na sua propriedade, em honra dos oficiais bóeres. Depois ofereceu-lhes um jantar com orquestra e fogo-de-artifício.

  Exibicionista?

  Conforme José Ferreira Tempero recolheu de seu pai, Fróis, que costumava dizer eu não morro, nem que me matem, encontra-se sepultado em Alfeizerão. Preparou a última morada de forma meticulosa. Como tinha muitos pinhais, mandou cortar o melhor pinheiro para fazer um caixão à medida. As tábuas ficaram guardadas, ao lado de uma lápide em mármore com o nome, data de nascimento e, em aberto, a data do falecimento, que veio a ser utilizada no cemitério de Alfeizerão.

  A relação de Vitorino Fróis com D. Carlos vinha, entre o mais, do interesse de ambos pela festa brava. A ganadaria da Casa de Bragança estava situada no Alentejo, aonde Vitorino Fróis ia por vezes e a manada, que no ano de 1901, pastava em Ameixieira, era composta por 75 cabeças. As vacas eram oriundas de uma ganadaria espanhola e das ganadarias portuguesas de Máximo Falcão e Emílio Infante da Câmara. O primeiro semental, segundo José Tanganho, foi o toiro Caraça, com mais de 500kg e ferro Infante da Câmara, lidado por Vitorino Fróis, e corrido mais 10 vezes. Este animal veio a ser pegado de caras por D. Carlos, num festival onde foram convidados amigos como Simão da Veiga (pai), Conde de Arnoso, José Calazans (forcado), Duarte Pinto Coelho, Teodoro Gonçalves, Alfredo Marreca e Vitorino Fróis.

  Contava-se que Vitorino Fróis, por alturas da década de 1920 foi fazer uma corrida à Real Maestranza de Sevilha, estimulada pela rivalidade entre portugueses e espanhóis. Antes da corrida, o encarregado dos cavalos, veio comunicar-lhe que tinha visto um indivíduo a aguçar os chifres do toiro que lhe saíra na sorte para a lide. Perante isto, Fróis ordenou-lhe que fosse comprar duas navalhas de ponta e mola e que as amarrasse abertas nos cornos do boi. Quando o animal entrou na arena o público entrou em histeria. Vitorino Fróis saiu-se muito bem da lide sem que as pontas das navalhas tocassem no cavalo ainda que ao de leve, pelo que na tradição tauromáquica espanhola saiu da praça em ombros.

 

  Dizia-se, também, que pela mesma altura, convidado por aficionados espanhóis para um jantar, depois de uma lide bem-sucedida em Zafra, estando à mesa, um empregado abeirou-se dele e disse-lhe que não jantasse, porque corria o risco de ser envenenado. Fróis arranjou uma desculpa, e não assistiu ao jantar. No dia seguinte, convidou o dito empregado a ir para a sua quinta de Alfeizerão e, comunicou à família e empregados, que aquele iria por lá ficar enquanto quisesse, com direito a cama, mesa e roupa lavada.

  Será talvez outra lenda pois, ao que consta, nunca tal pessoa veio para Alfeizerão.

 

  Quando António Tempero Júnior, cessou as funções de feitor na Quinta Nova de S. José para se dedicar ao comércio e agricultura por conta própria, foi sucedido por José Bernardo Tanganho, que granjeou fama como cavaleiro tauromáquico, depois de vencer em outubro de 1925, o Circuito Hípico de Portugal, uma volta a Portugal a cavalo com iniciativa do “Diário de Notícias”, aonde participaram 39 concorrentes, dos quais apenas 3 eram civis.

  Numa entrevista ao” Século Ilustrado” em 1958, Tanganho contou que, estava eu um dia nas Caldas da Rainha, com o tenente-coronel José Mousinho que era genro de Vitorino Fróis, que foi o nosso primeiro mestre do toureio a cavalo. Creio que ainda era da família do Mousinho de Albuquerque. Bom. Estávamos nós a tomar café na barraca de um judeu qualquer, quando vimos passar a cavalo o capitão Silva Dias. Vejo-o todos os dias, disse eu. Que é que ele anda a fazer? Anda a treinar o cavalo para o raid, explicou-me o José Mousinho. Qual raid? A Volta a Portugal a cavalo. Cá para mim resolvi logo. Também vou entrar nisso. Tenho uma égua que não há quem possa com a vida dela. Era a égua de uma tipóia de aluguer com que eu me governava. Mas toda a gente me queria tirar aquilo da cabeça. Tu és doido? Os militares andam a treinar os cavalos há três meses e já só faltam quinze dias. E prosseguiu: Agarrei no animal e, sem parar, fui com ele das Caldas a Alcobaça, Nazaré, S. Martino, Foz do Arelho, Peniche. Mas acabei por desistir da égua, quando vi que ela tinha uma assentadura[2]. Nessa altura, quando viram que eu tencionava mesmo levar a minha por diante, apareceram-me várias pessoas a oferecer cavalos. Escolhi o do lavrador António Joaquim, do Cartaxo, um cavalo que andava também engatado a uma charrete, e levei-o das Caldas à Foz do Arelho. Quando lá cheguei, fiquei uns dez ou doze dias em exercícios, amarrava o cavalo a uma bateira e punha-o a fazer força para ganhar pulmão.

  O País vibrou com o raid que se disputou em dezoito etapas, ao longo de 24 dias e 1.458 km, sob sol e chuva, umas vezes a pé, outras a cavalo montado. Inicialmente desapercebido, aos poucos foi suscitando interesse pela rivalidade entre o Capitão Rogério Tavares e o civil (caldense) J. Tanganho. À partida eram 39 cavaleiros, sendo 3 os civis.  Os restantes eram militares, mal-amados pelo clima de revoluções e golpes que se viviam. Afirmava-se, que o civil estava a dar água pela barba ao militar. Tanganho, com 32 anos, e de origens modestas, representava, para o povo, a luta entre um civil de poucos recursos e os militares dotados de pergaminhos. Cada cavaleiro levava uma arma para se defender dos assaltantes ou abater o cavalo ferido.

  Rompi três pares de botas em dezoito dias. Andava dez metros a cavalo e vinte a pé, para o animal se aguentar. E percorria 100, 150 e até 250 quilómetros por dia, sem horário fixo.

  Na etapa Odemira-Monchique, a ser percorrida através da serra, o guia que devia acompanhar os concorrentes, não conhecia o caminho, pelo que estes  andaram 3 horas perdidos, até darem com o casebre de um pastor. O percurso de Moncorvo a Bragança foi feito debaixo de um autêntico dilúvio. Em Arcos de Valdevez, não havia cavalariças, nem ração. Em Chaves, a empresa das Águas das Pedras Salgadas ofereceu dormida aos militares na estância termal, enquanto Tanganho pernoitou no estábulo, com o cavalo.  O comerciante António Joaquim Rocha, proprietário do cavalo montado por Tanganho, deu uma festa à chegada deste ao Cartaxo e ofereceu todo o champanhe que havia na vila. Tanganho perdeu deste modo mais tempo do que o suposto. Ao chegar a Vila Franca de Xira, o meu cavalo começou a fraquejar e houve quem me desse uma garrafa de vinho do Porto para o animal beber e arribar. O cavalo bebeu e passados alguns metros estava com uma grande bebedeira. E para ali vim eu, com o cavalo a curti-la. Tive de o trazer à mão e foi assim que o capitão Rogério Tavares chegou a Lisboa em primeiro lugar, isto é, à minha frente.

  Na chegada a Lisboa, apesar da chuva, os caminhos que levavam ao Pote de Água tinham muito movimento, bem como o Campo Grande. Ao passar um grupo de cavaleiros que constituíam a guarda avançada, dizia-se que era o capitão Tavares que iria ganhar a corrida. Quando este passou, o povo ficou em silêncio, ninguém queria acreditar. Nessa altura José Tanganho vinha ainda a cerca de 7 quilómetros, a pé, com o cavalo pela mão, consolado por um grupo de apoiantes, que davam vivas ao que consideravam ser o vencedor moral. Quando finalmente chegou ao Campo Grande, dois bobem-intencionados bombeiros quiseram oferecer a Tanganho um cálice de porto, mas a multidão gritava ao ver fardas, não bebas que te querem envenenar.

  Tendo o cavalo do capitão Tavares morrido durante a noite, ao que se diz por exaustão, Tanganho sagrou-se vencedor do raid pois ficou à frente nas provas finais, trote e saltos de sebes, realizadas no Jockey Club. Foi o delírio. O público invadiu a pista, levou Tanganho em triunfo, organizando um cortejo até à Câmara Municipal, onde estava preparada uma receção para consagração dos vencedores e entrega de prémios. A classificação ficou assim ordenada:1º) - José Tanganho; 2º)- Ten. Brandão de Brito; 3º)- Cap. Silva Dias.

  Daí em diante, Tanganho passou a exibir-se no Coliseu dos Recreios (Lisboa) e Palácio de Cristal (Porto), com o cachet de vinte mil escudos, quantia elevada para a época.

  A 8 de Outubro, Castello Lopes estreou, no cinema Condes, O Bicho da Serra de Sintra, filme de Artur Costa de Macedo e João de Sousa Fonseca. Em complemento projetou-se Touradas Portuguesas, com os cavaleiros Simão da Veiga (Filho), D. Ruy Zarco da Câmara, António Luís Lopes e José Tanganho. No dia 16 de novembro, o Cinema Tivoli, estriou o documentário Circuito Hípico de Portugal.

  Por insistências de Vitorino Fróis, Tanganho tomou alternativa como cavaleiro tauromáquico, em 1926 no Campo Pequeno.

 

 

  Numa quarta-feira de outubro de 1907, pelas 8 horas e com o apoio da Câmara Municipal e a participação da charanga do Quartel de Artª. 2, uma burricada partiu da porta de armas à conquista dos 44 quilómetros a cumprir no tempo máximo de 10h, com escalas em S. Martinho junto à baía e Nazaré junto á praia – em ambos os casos para reabastecimento e descanso dos animais e montadores – tão grande era a jornada que não excluía o corta-mato. Vitorino Frois associou-se ao evento e, na sua quinta em Alfeizerão, disponibilizou refrescos aos concorrentes.

  Os alcobacenses iam fazendo apostas sobre a chegada dos burriqueiros, até que, perto das 13 horas, já se vislumbrava um. Tudo pasmou, porque era um assombro de velocidade burriqueira, mais lesta que o previsto. As 13 horas a baterem, e Joaquim Santos, da Maiorga, estava a entrar no controlo, rodeado pelo rapazio e populares festejando com vivas e palmas, às quais só o jerico de murcho e cabisbaixo, parecia indiferente.

  Ao longo de uma hora foram chegando os restantes concorrentes, de modo que, antes de 15 horas estavam todos, mas em geral muito cansados, tal como os animais famintos e sedentos. A esta parte da festa juntou-se a Real Fanfarra Alcobacense, tendo o comandante do quartel entregue os prémios aos 5 primeiros que chegaram (1 da Maiorga e vencedor – Joaquim Santos, 1 de Alcobaça – António Barbosa, 1 da Cela – Joaquim Correia, 2 de Évora – os irmãos Soares) e  2$000 réis ao dono do jerico vencedor que, com os demais, teve direito ração melhorada. Aconteceu que o burro do concorrente da Cela, o moleiro Joaquim Correia, não resistiu ao esforço e morreu ao fim da tarde.

 

  Tanganho, foi preparador de cavalos da cavaleira tauromáquica Conchita Cintrón, nascida no Chile em agosto de 1922. Umas vezes ela ia Alfeizerão, outras ia ele à Quinta do Índio. Por muitos considerada peruana, dado neste país ter vivido muitos anos e feito aprendizagem, atingiu notoriedade em Espanha, Portugal e frequentou Alfeizerão. Consuelo Conchita Cintrón Verrill, também conhecida pelo apodo de A Deusa de Ouro, revelava na arena graça, estilo e ousadia, uma combinação conhecida em Espanha por Arte Duende[3].

  Conchita Cintrón deixou marca entre nós, como criadora do cão de água português, raça em vias de extinção. Veio para a Europa para tourear em Espanha, o que implica matar touros na arena, o que lhe não era permitido pelo franquismo por receio de que uma cornada a pudesse desnudar em plena praça. Conchita pretendia que a última corrida da temporada de 1945 em Jaén, fosse a última da sua carreira em Espanha. Aí alternou com os afamados matadores Manolo Vasquez Antonio Ordoñez. Após lidar o touro a cavalo, solicitou ao Diretor de Corrida, a autorização para desmontar e matar o touro, o que lhe foi negado, tendo aquele ordenado a sua saída da arena e mandado um novilheiro matar o animal. Conchita, desmontou do cavalo, agarrou numa espada e numa muleta e avançando para o animal, lidou-o e simulando a estocada fez-lhe uma festa com a mão. Os espectadores entraram em delírio, lançando para a arena chapéus e flores. Conchita quando saiu da arena foi detida por violação da lei. Devido aos protestos dos espectadores e temendo um levantamento popular, o governador da província de Jaén, Ramon Sanchez mandou libertá-la[4].

  Vasco Bensaúde, rico comerciante e armador que tinha começado a salvar da extinção o cão de água português, teve conhecimento de uma bem-sucedida criadora de cães dessa raça, casada com o português, D. Francisco Castelo Branco, sobrinho do seu professor de equitação tauromáquica D. Ruy Zarco da Câmara[5]. Tão bem-sucedida foi com o cão que criava numa quinta situada na margem sul do Tejo perto de Setúbal, a Quinta do Índio, que Bensaúde convidou Conchita Cintrón e marido para almoçarem, onde fez aquela a oferta de que, por sua morte, o seu canil ficaria para ela, já que os seus herdeiros não se interessavam por esta atividade. Conchita nunca mais se encontrou com Bensaúde[6], pelo que a família a contactou para ir buscar o legado de 14 cães, e respetivos ficheiros. Registou o novo canil, com o nome Al-Gharb e começou a criar e a apresentar os cães em exposições e concursos. Achava que os esforços de Bensaúde e os seus na seleção, recuperação e preservação da raça, mereciam ser reconhecidos e considerando ser Portugal um país de gente sem recursos para manter tão maravilhosos cães, recusava-se a vendê-los para o mercado nacional, sendo apenas alguns oferecidos a pessoas de extrema confiança e jamais fêmeas.

  Com o 25 de Abril, alguns portugueses viram as propriedades ocupadas pelos trabalhadores agrícolas e sindicatos. Foi o caso da Quinta do Índio, então com 32 cães. Muitos dos animais foram soltos ou fugiram e quando no fim do Verão de 1974, D. Francisco de Castelo Branco conseguiu aceder à propriedade restavam 15 animais, a maioria gravemente doente. Levou-os ao Canil Municipal de Lisboa, mas segundo o enfermeiro de serviço, alguns poderiam ser salvos, tendo-se assim recusado a abater 3.

  Conchita Cintrón, portuguesa por casamento, saiu do país com a família para o México, tendo regressado nos finais da década de 1980. Em 3 de Agosto de 1995, o Governo português atribui-lhe a Medalha de Mérito Cultural. Em agosto de 2006, na Praça de Touros do Campo Pequeno, foi madrinha (simbólica) da alternativa da cavaleira Ana Baptista. Faleceu em Lisboa com 86 anos, a 17 de fevereiro de 2009. 

  A sua memória destaca-se como uma repreensão a cada um de nós que afirmavam que uma mulher deve perder algo da sua feminilidade, se ela pretender competir com os homens, escreveu Orson Welles sobre Conchita Cintrón, na introdução a “Memoirs of a Bullfighter”, que esta escreveu.

 

 

 

 

 



[1] Os bóeres, na generalidade, eram calvinistas.

[2] Compressão, produzida pela cava superior da ferradura na face plantar do casco do cavalo.

[3] António Barbosa Guerra (Maiorga), amigo do autor (2012).

[4] António Barbosa Guerra, ouviu falar deste episódio, aquando de uma corrida de touros em Jerez de la Frontera.

[5] Filho do 9º. Conde da Ribeira Grande, nasceu em 1888, faleceu em 1952 e esteve a viver no Perú por razões políticas. Aí conheceu Conchita Citrón e deu-lhe aulas de equitação.

[6]  Morreu em agosto de 1967.