JUSTIÇA PORTUGUESA NOS TEMPOS DO PREC.
-O CASO ZÉ DIOGO
(julgamento popular/condenado o morto!).
-DESOCUPAÇÃO EM
JULGAMENTO POPULAR (Lisboa/Boa-hora).
-JÁ NEM SE
RECORDAVAM DA LUA DE MEL.
-Tribunal Cívico
sobre a Reforma Agrária.
-Tribunal Cívico Humberto
Delgado.
-Tribunal Russel.
Fleming de Oliveira
José Diogo, assalariado rural, foi acusado de ter morto à facada
Em sua defesa, o réu invocou a provocação da vítima e um
longo rol de ações prepotentes ao longo do
“tempo da outra senhora”.
Depois de peripécias algo rocambolescas que o caso
provocou, dada a atenção (política) de que foi objeto, o réu foi julgado e
condenado regularmente. De uma das vezes em que o julgamento esteva agendado
quando o processo corria no Tribunal de Tomar (os advogados de defesa eram José
Augusto Rocha, Amadeu Lopes Sabino e Luís Filipe Sabino e de acusação Proença
de Carvalho), o Coletivo presidido pelo Corregedor Soares Caramujo, que lhe
havia imposto uma caução de 50.000$00, marcou nova data (adiou) para outubro.
No exterior (na escadaria do edifício), organizou-se um
Tribunal Popular, composto por 20 elementos selecionados entre a assistência
(operários da cintura industrial de Lisboa e assalariados rurais do sul).
José Diogo (homicida confesso), foi absolvido, apesar de
o “tribunal” ter reconhecido que, a ação, sendo um ato de violência individual
não podia ser considerada revolucionária, enquanto que a vítima foi “condenada
postumamente”, pela “opressão e
exploração que exerceu sobre o povo” !
A fiança foi paga por Américo Duarte (o telecomandado
deputado da UDP na Assembleia Constituinte, como diz Melo Biscaia e refiro
noutro local), e à noite, José Diogo, compareceu num comício do partido no
Campo Pequeno, que o vitoriou como herói da revolução proletária.
Este caso é interessante, pois põe em confronto
diferentes graus de regulação das formas de direito. Para o direito segundo o
Tribunal Popular, isto é a legalidade revolucionária, a ação da vítima e réu,
eram eticamente semelhantes.
Se a ação do acusado não era considerada como
revolucionária, estava todavia isenta de culpa, como resposta ao comportamento
provocatório da vítima.
Em novembro de 1975, no Tribunal da Boa-Hora, estava
marcado o julgamento de Maria Rodrigues, acusada de ter ocupado uma casa
clandestina, melhor dizendo, um cubículo clandestino pertencente a Viúva
Rodrigues & Rodrigues, Ldª.
Perante a decisão do Juiz em realizar o julgamento na
Sala de Audiências, as cerca de 400 pessoas que haviam comparecido para
demonstrar a sua solidariedade com a acusada, convocaram um Tribunal Popular
com Júri, que realizou o julgamento no pátio, e decidiu que “a senhoria era especuladora, exploradora e
opressora do povo e, como tal, sua inimiga”.
As denunciantes, eram “fascistas criminosas, inimigas do povo”, pelo que iriam ser levadas
a tribunal popular, quando o povo assumisse o poder. A inquilina/ocupante foi
absolvida, com o reconhecido direito a permanecer na casa, enquanto precisasse.
Ainda foi decidido criar uma equipa de vigilantes para
defender a Maria Rodrigues, do “capital e
dos provocadores”.
E o
caso do taxista pouco escrupuloso que prestava serviço no aeroporto de Lisboa,
e que tentou enganar dois pombinhos que regressavam da lua de mel de Maiorca?
Na
viagem de regresso a casa, o taxista teve pouca sorte, porque a recém casada
apercebeu-se de que a tarifa que lhes estava a ser cobrada, era imprópria. O
caso envolveu a polícia e acabou no tribunal, cerca de dois anos depois, pois
que a justiça portuguesa é normalmente lenta, muito lenta.
Menos
normal foi o tom dissonante dos depoimentos dos antigos noivos. Não foram
rigorosos e nada esclarecedores.
“Não se lembram?”, perguntava o juiz surpreso, “era a vossa lua de mel. Concerteza
que se recordam daquele dia!”
Pois
é, a vida moderna e a morosidade da justiça têm consequências estranhas.
Os noivos,
entretanto, divorciados, tinham varrido das respetivas memórias as recordações
que importavam para o caso.
No dia 6 de julho de
1979, pelas 22 horas, iniciou-se na Voz
do Operário, em Lisboa, a primeira sessão do
“Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária”.
A comissão promotora
deste singular tribunal cívico, era integrada por nomes como Rui Luís Gomes,
Paulo Quintela, Teixeira Ribeiro, Bernardo Santareno, Ary dos Santos, Carlos
Paredes, Carlos do Carmo, Fernando Lopes Graça, João de Freitas Branco, Luís
Albuquerque, Rui Polónio de Sampaio, Helena Cidade Moura, Alexandre Cabral,
Urbano Tavares Rodrigues, Óscar Lopes, Avelãs Nunes, Mário Murteira, Luís
Francisco Rebelo, César Oliveira, Miriam Halpern Pereira, José Gomes Ferreira,
António Hespanha, Gomes Canotilho, Boaventura Sousa Santos, Jorge Leite e
Xencora Camotim.
O processo,
alegadamente, obedeceria aos rituais próprios de um julgamento regular, sendo o
tribunal presidido pelo juiz desembargador Aníbal de Castro e contava, na
qualidade de juízes, nomes como o historiador Armando de Castro, o escritor
Manuel da Fonseca ou os professores universitários Maria Lúcia Lepecki, Orlando
de Carvalho e Vital Moreira. Perante uma assistência variada, que integrava
trabalhadores rurais alentejanos e convidados estrangeiros, o advogado
comunista Fernando Luso Soares desempenhou, com facilidade, o papel de acusador
público, sendo ouvidos, como testemunhas, José Saramago, Lino de Carvalho ou
Carlos Carvalhas, entre outros.
Feitas as alegações
da acusação, o acórdão decidiu “condenar
o latifúndio, reconhecer a
legitimidade da reforma agrária” e, enfim, “condenar a ofensiva contra a reforma agrária”.
Tudo se passaria ali
como se de um julgamento normal se
tratasse, não fora a circunstância de só existir uma parte.
O princípio do
contraditório não teve lugar. No “Tribunal
Cívico sobre a Reforma Agrária”, apenas existiu uma acusação e um acusador,
não se prevendo que os réus apresentassem defesa ou sequer comparecessem. Do
extenso Rol de Testemunhas, donde constavam muitos funcionários do PC (nenhuma
fora chamada para contestar a legitimidade da reforma agrária, criticar alguns
excessos, abusos ou referir aspetos menos conseguidos, constrangedores, do
processo de ocupações levado a cabo).
À distância de 40
anos, é difícil ajuizar o motivo pelo qual se realizou esta encenação
político-judiciária, o que levou pessoas, a oferecerem o prestígio de seus
nomes, a um simulacro de processo judicial que não passava de uma manifestação
puramente política. Se o desfecho era conhecido à partida, chamar tribunal não
passava de uma figura de estilo, duvidosa quanto à forma, inútil quanto aos
resultados e, acima de tudo, questionável quanto à ética dos procedimentos.
Por esse tempo,
outras organizações levaram a cabo iniciativas semelhantes, como o “Tribunal Cívico Humberto Delgado”,
promovido pela Associação dos Ex-Presos Políticos Antifascistas. É certo também
que existiram precedentes estrangeiros, com destaque para o “Tribunal Russell”, em Estocolmo, sobre a
participação dos EUA no Vietname.
O verdadeiro réu na
Voz do Operário, condenado “in absentia”, era com efeito, o
processo histórico, para recorrer à fraseologia marxista que esteve presente
nas sessões e depoimentos.
Se a incapacidade de
reverter o Rumo da História, como diria Sartre, é sintoma de independência,
poder-se-á dizer que o Tribunal da Voz do Operário, pese ter ouvido apenas uma
das partes, sem se preocupar em assegurar o contraditório, foi mesmo assim, uma
instância independente.
Mas de uma
independência que resulta tão-só da impotência dos julgadores em alterarem a
Marcha da História.