segunda-feira, 17 de setembro de 2018
Ainda Há Homens de Barba Rija
AINDA HÁ HOMENS DE
BARBA RIJA
Fleming de Oliveira
Gosto de colaborar com
o “Região de Cister”, o que acontece
quase a partir do momento em que saiu a público pela primeira vez. Nessa
altura, a apresentação gráfica era muito incipiente e os textos vinham com
inúmeras e desesperantes gralhas. Mas era um desafio estimulante.
Ao
tempo a sede, era perto do Centro de Emprego.
Bem
sei caro Senhor Diretor e pacientes Leitores, que este tipo de crónicas/
apontamentos periódicos a que aqui me dedico, são tão frágeis, como a pena que
esvoaça ao sabor da brisa do momento. São mesmo voláteis e salvo nas mãos de
persistentes guardadores de cacos, essas palavras fugidias, vadias mesmo,
assumem-se como restos ou ossos de um mundo em extensão, esfumam-se sem deixar
rasto e nem passam à história. São fogos-fátuos, calendarizados e temporais.
Por
isso, talvez a melhor maneira de lhes dar sentido de os não ver amarrados ao
passado e ao esquecimento onde amanhã jazem, é compilá-las e publicá-las em
livro.
Pode
ser que um dia me dedica a essa “tarefa
por coisa nenhuma”, se a minha Mulher não entender que é uma forma tola de
gastar dinheiro.
Naquela tarde encontrava-me
no supermercado junto às prateleiras que vendem artigos de barbear, enquanto a
minha Mulher andava na faina das compras.
Ele
aproximou-se devagarinho e de forma discreta, pondo-se de lado a olhar para mim,
como que estivesse na dúvida “se era eu
ou não”. Era um individuo com cerca de oitenta anos, de estatura mediana,
usando um casaco escuro de corte tradicional, usado, mas bem escovado e calçando
botas rurais. Depois de perceber que era mesmo eu, perguntou cautelosamente se
eu me recordava dele.
Na
verdade, embora a cara fosse vagamente conhecida, não fazia nenhuma ideia quem
era ele, mas todavia por uma questão de cortesia, retorqui que “sim, obviamente sabia muito bem quem era”.
Foi meu cliente, há anos, num assunto que não me deixou qualquer impressão
relevante.
Estabelecidos
estes laços de confiança, perguntou-me sempre delicada e cautelosamente se eu
lhe indicava um “creme” adequado a
sua barba e idade. Explicou que não estava habituado a fazer este tipo de
compras (é o filho que normalmente se encarrega disso) e até me adiantou a
marca muito conhecida que usa, “com um
preço muito em conta”, mas que embora já a tivesse procurado nas
prateleiras não encontrava.
Expliquei-lhe,
“doutoralmente”, que as espumas de
barbear estão divididas para peles sensíveis e para peles normais e não sabendo
o seu caso perguntei-lhe se me permitia que eu escolhesse.
Pensando
bem e tendo conta a sua aparência fisionómica, cara enrugada e algo
envelhecida, sugeri-lhe uma marca muito conhecida (que aliás não é a sua usual)
que anunciava uma hidratação de peles sensíveis.
Quando
lhe expliquei a minha opção e a característica do produto, o homem pareceu
ligeiramente aborrecido, retorquindo que “não
queria creme para mulher que não quer perder sinais de juventude, mas sim um produto para um homem de barba
rígida e de saúde”.
Engoli
em seco, disse que tinha razão balbuciei qualquer coisa de circunstância, mas
ele acabou por aceitar a minha sugestão.
Um Lugar lá no céu
UM LUGAR LÁ NO CÉU
FLeming de OLiveira
-Possivelmente os meus leitores já não se recordem do
episódio que ocorreu em inícios de 2016, a propósito do trabalho voluntário.
Lembrei-me
dele e daí escrever o apontamento que segue.
Entre
outras considerações, Catarina Martins afirmou, bombasticamente, que “trabalho voluntário é uma treta. Se é
trabalho, tem de ter contrato. Voluntariado é o que as pessoas podem fazer
depois de terem um contrato de 35 horas semanais, quando se querem dedicar a
outra atividade”.
Este
comentário fez com que o Professor Marcelo (ainda não P.R.) respondesse, que, “de quando em vez, ouve-se uma ou outra voz
na sociedade portuguesa, um pouco estranha, quase aberrante, a dizer: Não é bom
haver trabalho voluntário, deve haver prioridade ao trabalho pago. o trabalho
voluntário de que falamos vai para além da atividade profissional de muitos; e
noutros casos representa uma forma própria, autónoma, de realização pessoal,
que não tem a ver com atividades profissionais desenvolvidas no passado”.
O
Professor Marcelo asseverou o que a maioria dos Portugueses já sabia
intuitivamente, que independentemente dos problemas da vida, das desconfianças,
das tristezas, das expectativas não concretizadas, a disponibilidade para o
trabalho voluntário é inata em cada um.
Recordo
ter lido em fonte autorizada (I.N.E.) que se calcula que em Portugal quatro em
cada cem horas de trabalho, consiste em trabalho voluntário de mais de um
milhão de portugueses, quase 12% da população.
Para
uma certa esquerda (digo eu), a caridade e o voluntariado continuam a ser
encarados, fundamentalmente, como uma forma de as pessoas aliviarem a
consciência, sem encararem o problema estrutural da pobreza. Ao darem umas
moeditas a um sem abrigo ou arrumador de carros ou ao encherem uns sacos de
compras, essas pessoas limitam-se a dar uma parte insignificante do seu
rendimento ou do seu tempo, para viverem melhor consigo. Estas práticas, longe
de resolverem o problema, perpetuam-no, porque os mais pobres enquanto viverem
da “caridadezinha”, resignar-se-ão à
sua irremediável condição, e o Estado aproveita estes apoios pontuais para se
eximir das suas responsabilidades.
Os
que apelidam a caridade da “caridadezinha”,
depositam uma esperança (utópica) no serviço e capacidade do Estado, seja num
S.N.S. ou na S.S., que não temos. Colocam-se na teorização de um sistema
abstrato e idílico que a todos chega e socorre, desdenhando da ajuda presente e
pontual, concretizada através de pequenos gestos.
Há
várias sugestões sobre o que deve ser o combate contra a pobreza. Algumas
delas, pressupõem que a caridade, a esmola à qual se torce o nariz, é uma
antítese da transformação social. Errado (digo eu), pois deve/pode fazer-se uma
e outra coisa, investir no combate à desigualdade (seguramente o objetivo mais
difícil que existe), ao mesmo tempo que se partilha o que se tem.
Não
tenho, porém, a certeza se a caridade e o voluntariado em muitos casos
preocupam-se menos resolver problemas de quem precisa e mais no sacrifício do
caridoso em detrimento das carências do necessitado. Refiro-me ao caridoso ao “profissional”, ainda que não retire
proventos materiais…
A
Madre Teresa é louvada pela sua dedicação aos pobres, por ter segurado a mão de
quem se finava e amado quem era miserável. Mas se tivesse promovido a educação,
saneamento básico, campanhas de vacinação ou de medicina preventiva, salvando
gente em vez de a amar até à morte, as pessoas concediam-lhe outra distinção?
-Fui com minha Mulher às
compras, num dia em que se recolham donativos para o “Banco Alimentar Contra a Fome”. Quando ia a entrar no supermercado
ouvi uma senhora, que distribuía os sacos de plástico, falar com um homem dos
seus 50 anos, de calças de ganga, sapatilhas e uma estafada t-shirt
publicitária de uma empresa, que se desculpava por não aceitar o saco que ela
lhe estendia para colocar ofertas.
Querem
saber o que a senhora lhe respondeu?
- “Sim, estou a ver,
também é pobrezinho, não é?”
Há
anos que não ouvia este "pobrezinho",
como antigamente era mais ou menos usual dizer-se, mas que tem vindo a ser
substituído por "carenciado".
Confesso que o "pobrezinho"
me incomodou, não por o preferir a "carenciado",
mas por o "pobrezinho" me
cheirar a “caridadezinha” vindo
daquela senhora, que poderia qualificar de “profissional”
já que está em todas.
Pode
parecer que não tem importância de maior utilizar uma ou outra expressão. Mas
como sou cada vez mais desconfiado, se não incrédulo (talvez injustamente),
parece-me que faz toda a diferença. Vejo a "caridade(zinha)”
daquela senhora como uma atitude egoísta e de desprezo, na medida em que quando
a pratica está mais centrada em si própria, preocupada em garantir um lugar no
Céu.
O
Povo Português, tem dado, sobejas e exemplares provas de solidariedade em favor
de povos estranhos ou concidadãos, sempre que a necessidade a isso tem dado
azo. As situações de enorme dificuldade por que o País passou no último verão,
acarretaram demonstrações de grande e preocupada solidariedade, por parte dos
que têm pouco, perante os que perderam muito.
Não
estou, obviamente, contra as pessoas que, livremente, de forma organizada ou
individual e para lá de quaisquer direitos ou deveres (legais), dão
gratuitamente coisas e/ou o tempo e/ou dedicação. Por isso não levem a mal as
minhas observações, tanto mais que não sou, nem teria autoridade para ser
moralista.
Numa
comunidade evoluída, as pessoas têm direito, desde logo, a uma vida digna, não
oferecida pela boa vontade de alguém, não dependente de quem apareça com
disponibilidade para a concretizar, mas assumida pela comunidade. O "Estado Social", é necessário para
que ninguém precise da caridade. A caridade é, por natureza, discricionária,
ninguém pode ser obrigado a ser caridoso, pois caridoso é quem quer, quando
quer, como quer, com quem quer.
-Os governantes que
implementam “medidas impopulares”,
ainda que benéficas para o futuro, encontram uma resistência feroz e o apoio
tíbio de uns poucos. Vão além do seu tempo e forçam passagem através de uma
maioria reivindicativa. “Ainda não
descobri a maneira infalível de governar. Mas aprendi a fórmula certa de
fracassar: querer agradar a todos, ao mesmo tempo”, afirmava o Presidente
John Kennedy.
Sabia
a relação entre o dever cumprido e o julgamento do tempo. Sim, a história, esse
“juiz imparcial”, repara injustiças,
mas tem o péssimo hábito de andar devagar. É sabido o intervalo entre o aplauso
do “Tempo Que Passa” e o aplauso da “História”.
Se
o governante se deixou fascinar pelo aplauso do seu tempo, bem sabendo que
implementar as necessárias reformas seria enfrentar insatisfações dos
instalados, se cumpre apenas o que é expectável, faltou-lhe a perceção de
Abraham Lincoln (Presidente do E.U.A.), que no meio das dificuldades e
vicissitudes do cargo, dizia que, “se
fosse responder a todas as críticas e ofensas que lhe eram direcionadas, não
faria mais nada”. E deixou como legado uma frase lapidar e por isso muito
conhecida: “Pode-se enganar o povo
durante algum tempo e parte do povo durante todo o tempo, mas não pode enganar
todo o povo todo o tempo”.
Somos um povo de Boas Pessoas
Somos
um povo de boas pessoas
FLeming de OLiveira
Salvo erro foi Eça de
Queirós quem escreveu que “somos um povo
de boas pessoas”.
No
meu tempo de estudante em Coimbra e na casa onde vivia e estudava, formávamos
um grupo que passava horas a discutir tudo e nada, com aquela segurança e
certeza que só existem na juventude. Abordávamos temas tão importantes como “saber se há vida depois da morte”, “como é a
melhor tática de meter conversa/engatar uma pequena” ou mesmo “se a Académica tinha condições para ganhar
no domingo ao Sporting”.
Neste
grupo havia um que se destacava por ser muito especulativo como nos dizíamos, capaz
de encontrar os argumentos menos previsíveis ou criar as situações mais
insuspeitas ou divertidas. Era o Lopes que também gostava de escrever uns
artigos para o jornal lá da terra e que terminado o curso na Faculdade de
Letras enveredou pelo jornalismo com sucesso. Hoje em dia é diretor de uma revista,
mas então era um rapaz com opiniões e soluções tão consistentes como as nossas.
Numa
noite que se prolongou pela madrugada, interrompida para ir beber uma
cervejinha ao “Mandarim”, o Lopes
tentou convencer-nos que o povo português é essencialmente “socialista”, somos todos bons rapazes e
que ninguém fica indiferente em ver uma situação de desconforto, penúria ou de
sofrimento.
Dizia
o Lopes para valorizar a sua tese “quero
evitar equívocos, eu sou so-cia-lista!”. Olhou em redor da mesa, e perante
o nosso espanto, repetiu com força: ”Eu
sou socialista! So-cia-lista! Levantou-se, cruzou os braços sobre o peito, bebeu
mais um trago de brandy, ergueu a face congestionada, e repetiu: “Abaixo o Salazar, eu sou so-cia-lis-ta”.
A discussão em torno desta inflamada declaração de princípios foi vivíssima,
sem que pudesse haver acordo quanto ao que seria realmente um socialista há 40 e tal anos. Para a
encerrar entendeu-se questionar o próprio Lopes. E soltou: "Quero uma nova conceção da Propriedade, do Trabalho, do Casamento, da
Educação, etc... em oposição às soluções dadas pela Igreja e as instituições
que as realizam e nos governam...”
Eu,
pelo menos eu, fiquei sem saber concretamente o que era um socialista, como
ainda pior fiquei com o remate do Cardoso: "Então, mais ou menos, somos todos socialistas..."
Claro
que por espírito de contradição e agitar o debate, discordamos perentoriamente
dessa tão generalizada opinião e a partir de certa altura na falta de melhores
argumentos ficamos por aí, sem pensar mais no assunto, salvo o Lopes.
Um dos “bons” hábitos que tínhamos, Lopes
incluído, era ir assistir ao domingo, pelo meio dia, ao “santo sacrifício da saída da missa”, na Igreja de Santa Cruz.
Num
determinado domingo o Lopes, sem nos avisar, arranjou um miúdo, vestiu-o com
roupa velha e usada, sujou-lhe a cara, recomendou-lhe para por o ar mais infeliz
que soubesse e foi sentá-lo num degrau à porta da Igreja, com um pires de
plástico para receber moedas. No chão e em frente colocou um cartão em que
dizia numa letra irregular: “Tenho fome, fui
abandonado pelos meus pais”.
Quando
saímos no fim da missa, passamos por um catraio a pedir esmola, tendo já no
respetivo pires algumas moedas, a que o Lopes para nosso espanto (até pecava
por ser algo forreta) acrescentou mais uma.
O
Lopes sem se denunciar, sugeriu atravessarmos a rua e vermos melhor a saída. Claro
que assim também víamos a forma como o rapaz se comportava. O Lopes esperou um
bocado até o ir buscar. Quando chegou à sua beira, encontrou-o muitíssimo
contente, pois naqueles minutos da saída da missa, tinham caído varias moedas e
até uma nota de 20 no pires de plástico, de tal modo que o catraio disse que já
não saia dali.
Tinha
recolhido mais de trinta escudos, pelo que o Lopes teve de o tirar à força e
levá-lo por uma orelha num meio de grandes protestos até nós, que não estávamos
ainda a perceber bem a cena.
Não pretendo fazer o
papel de moralista, mas a pequena moral que se pode tirar, é que no tempo do
Eça, há quarenta e tal anos, éramos como hoje “um povo de boa pessoa”, mas que se não se puser a pau é aldrabado.
Creio
que esta historia, que juro ser verdadeira, podia repetir-se hoje se fosse
possível por uma criança a pedir à porta do nosso Mosteiro. Também não quero
entrar no comentário politico, mas sabendo-se que não votei no Costa, penso que
de há quatro anos para cá também andamos a ser aldrabados e não obstante alguns
discursos mais elaborados, receio mesmo que nos levem os poucos anéis que ainda
restam, como um turismo não consistente, uma saúde e de transportes
ferroviários em rutura ou uma indústria (pelo menos em Alcobaça) que não
recupera.
Caro
Senhor Diretor Joaquim Paulo, e prezados Leitores ou deixamos de ser mesmo boas
pessoas ou temos de mudar “isto”.
quinta-feira, 13 de setembro de 2018
Não precisava de ter ido a Coimbra
NÃO PRECISAVA DE TER IDO A COIMBRA…
FLeming de OLiveira
-Sempre que vou a Lisboa em trabalho ou sozinho, e tenho que ficar para a noite, vou jantar a esse snack-bar, pelo que sou, de certo modo, já conhecido. Fui lá, no dia do recente jogo Portugal-Irão, a contar para o Mundial de Futebol.
De dentro do balcão, vinha uma voz forte, num rosto congestionado pela comoção. A conversa, com um ajudante que ia empratando, era ouvida com indiferença ou sorrisos pelos circunstantes. Tratava-se do alegado "roubo " a Portugal de um penalti, aliás reclamado insistentemente por um Português (onde já se viu isto?), Carlos Queirós.
Sentei-me ao balcão, e encomendei mecanicamente o jantar, sem olhar para a lista. De trás do balcão, sorridente e solícito, o empregado, furibundo, cumprimentou:
“Boa noite, senhor doutor ”.
Terminado o jantar, virou-se para mim com um
“Senhor doutor, o costume? "
E para o lado para o ajudante:
"Tira aí uma bica curta em chávena aquecida, para o senhor doutor e uma nata ".
E acrescentou, acolhedor:
“Estava tudo bem? "
O “senhor doutor”, que sou eu como perceberam os Leitores, estava com pressa de vir para Alcobaça, mas não resistiu à conversa cruzada que atravessava o balcão. Enquanto escorropichava a bica, saiu-me (imprudentemente):
"Aquilo, talvez tenha sido penalti ".
Ainda não tinha acabado a frase, já estava arrependido.
“Para que te metes aonde não és chamado? diz-me por vezes a minha Mulher, que sabe muito da vida, pois também foi professora durante muitos anos e lidou com meninos muito “sabidos”.
De dentro do balcão, feita súbita trincheira, o empregado empolgou-se nada discretamente:
"Penalti? Essa agora! Foi um roubo, uma vigarice, uma descarada! Queriam dar o jogo àqueles morcões? A FIFA é uma cambada de gatunos! E o Queirós não é menos, devia ter vergonha nas trombas".
Já sacudia as migalhas da nata no casaco, quando adiantei de forma supostamente salomónica:
"Cada um olha as coisas como lhe parece. Boa noite ".
Moedas deixadas sobre o balcão, fui embora. Gosto de ver um bom jogo de futebol na TV, mas não sou, nem de perto ou de longe, um entendido ou “doente”.
Foi então que ouvi, de trás da trincheira, fruto de uma comoção não contida:
"Ó senhor doutor! Para ver o que se passou, não precisava de ter ido a Coimbra! Vá mas é “multiópticas”".
-Admito, pelos olhares, de outros clientes e demais pessoal do restaurante, que terão pensado que o “senhor doutor”, é muito capaz de na próxima vez ir jantar a outro sítio.
“Afinal, não tem cada um direito a ter a sua opinião? Estamos num país livre…”, pensei para mim.
Já no carro e na autoestrada de regresso, ouvi pela rádio que para Queiroz só devia ter havido um vencedor claro: o Irão.
“Só um vencedor deveria ter surgido deste jogo e devia ter sido o Irão. Merecíamos ganhar. Sou um mau perdedor, orgulhoso, mas frustrado. Não estou de bom humor, como podem ver. Devia ter existido pelo menos mais um penálti contra Portugal, pelo menos um”.
Estamos num país livre sem dúvida, mas na dúvida vou à “multiópticas”, e não a Coimbra.
E, afinal, parece que o empregado do restaurante tinha razão, não foi mesmo penalti, e assim vou continuar a ir a este restaurante.
É a crise
É A CRISE!
Fleming de OLiveira
Pertenço a uma geração
desajustada, obrigada a saber a tabuada, aprender caligrafia, fazer redações, conhecer
os nomes dos rios, serras, linhas férreas, etc, que utilizava giz e a lousa, fazia
exames e neles tinha que provar saber e onde um sete (chumbo) era estar mais
abaixo que um cão. Levava “bolos”,
era suspenso por “manguelice” (expressão
tripeira, conforme a minha sabida origem, que significa malandrice) e expulso
do Liceu D. Manuel II por mau comportamento.
Aos sábados de tarde, marchava ao comando de Chefes de Quina como o
Lopes e desfilava no 10 de junho cantando o Hino da Mocidade (Portuguesa).
Tolhido
de raciocínio, fiquei incapaz de compreender subtilezas do mundo moderno, tenho
dificuldade em compreender as razões de certos fenómenos e situações impostas
pelo Poder, que vamos tendo.
Há dias no Centro de
Saúde uma senhora, na casa dos quarenta e picos, passou a olhar-me fixamente,
indecisa se eu era ou não. Quando perguntou e confirmou que era mesmo eu, pediu-me
se podia falar. “Claro que sim”. Está
separada do marido, é doméstica e tem problemas de relacionamento com o filho. Eu
disse-lhe que o local não era o melhor para falar de assuntos delicados, havia
pessoas à volta e não tinha a Lei à mão. A conversa foi continuando e a certa
altura referi que já atendera perguntas mais ou menos parecidas, mas uma “consulta assim, era a primeira vez”. E
acrescentei que “se o processo pegar,
vamos começar a ver advogados atendendo clientes bebendo um copo na discoteca,
padres ouvindo em confissão na esplanada do nosso Mosteiro e médicos a
auscultarem doentes no parque de estacionamento automóvel, tudo muito prático,
rápido, económico e moderno”.
Sorrimos,
eu, ela, e uma senhora que assistiu calada.
Entretanto,
fui chamado para a consulta com o Dr. José Tomás e, quando regressei à sala de
espera, ela já lá não se encontrava.
Não
muito depois, encontramo-nos na Esplanada
do Bibi e a senhora, com a familiaridade e o à vontade de um conhecimento
anterior, foi ter comigo e comentou: “Sabe
doutor a sua conversa foi muito útil, estou a dar-me muito melhor com o meu
filho, este belo rapaz que aqui vê. Mas desculpe o mau jeito do outro dia. Sabe
o que faz isto? É a crise”.
E aqui, caros leitores, está
a minha simplória contribuição sobre os tempos que correm, em termos nada sisudos
e competentes como os usados e bem pelo meu Amigo Rasquilho, neste jornal.
Quarenta e tal anos
de democracia não chegaram (nem admira, comparados com trezentos anos de
Inquisição e quase cinquenta de Estado Novo) para o “D”, Democratizar a cultura, o conhecimento ou resolver o problema
do emprego. Entretanto, uns tantos procuraram libertar o País do lastro desses ancestrais
défices científicos, educativos e sociais.
Bem
sei que em matéria de bibliotecas, arquivos, defesa do património, reabilitação
urbana, centros interpretativos, museus, etc., etc. (esta é a minha área de
devaneio) a atualidade nada tem a ver com o passado. Mas não chega para
contrariar o pedantismo da “Alta Cultura”
perante as minorias e, da “Baixa Cultura”
perante a maioria dos que pastam, se abstém de votar e já nem sequer procriam.
Trago
no bolso um caderninho onde anoto para este ou outros “apontamentos vadios”, o que me vem de fora e de dentro. É um
registo de coisas passadas ou de inspirações futuras. E, como os meus espaços
privilegiados de audição são as salas de espera ou o café, é aí a “pescaria” que recolho.
Faz-me
gargalhar (nada benevolamente, aliás) apontarem-se direitos individuais aos
pais que são violados num Sistema Judicial que demora “séculos” a despachar sobre atos essenciais, que demora anos a
decidir sobre a vida de crianças, tolhido nos meandros de leis e respostas tecnocráticas,
em gabinete. Um Sistema a rolar por uma
teia de códigos elaborados, não para promoverem a Democracia (cuja essência e
princípio sagrado é segundo aprendi uma justiça “justa”, célere, eficaz e acessível), mas para permitirem o descrédito
do estado democrático e a repulsa por algumas instituições. É por isto tudo e mais
um rol sem conta de atentados à nossa liberdade e direitos (como as listas de
espera do SNS e a concentração dirigista dos meios de comunicação, com especial
referência ao que se passa na informação das televisões), e o mundo de filhos,
afilhados, enteados e sobrinhos que têm emprego, enquanto o resto do País
vegeta, que detesto “malandragem” , e
dou o acordo a quem diz que quatro décadas de
“democracia não impediram a política de se constituir numa impostura, a arte de
conduzir os homens, enganando-os”.
O
meu Pai, republicano portuense, mas por princípio do “contra”, pouco antes de morrer, em 1994 referindo-se ao que via à
volta, dizia que tudo isso lhe metia repulsa. Lá tinha as suas razões. E os pais sabem muito…
OS MAIAS NA ESCOLA
FLeming de OLiveira
Tenho que começar por fazer uma declaração de interesses.
Eça de Queiroz é, para mim, o grande
romancista, e OS MAIAS a sua obra-prima. Ainda nos meus tempos de estudante
pré-universitário, “devorei” OS
MAIAS, não apenas por obrigação, mas por devoção. Admito que, para isso, tenham
contribuído os meus Pais, que dispunham em casa de uma boa biblioteca (que
felizmente herdei em parte), e que fomentavam nos filhos a necessidade de
conhecer o que de bom e fundamental, existe na nossa cultura. Quando tive
lições de literatura com o Professor Óscar Lopes, recordo como me salientava a
qualidade dos textos queirosianos e a sua relevância para se saber escrever um
bom português.
Como já tenho dito e escrito, pertenço a
uma geração hoje considerada “inabilitada”,
do tempo em que se aprendiam as linhas de caminho-de-ferro (apeadeiros e
ramais), a ter boa caligrafia, as serras e rios (e afluentes), os Reis de
Portugal, não havia vergonha da nossa História Trágico-Marítima, se lia Camões,
tinha 2 anos de latim (para quem pretendesse seguir o ramo das Humanidades),
não havia máquinas de calcular, muito menos computadores, e que escrever bem
era um atributo muitíssimo importante para entrar e prosseguir no ensino
superior, no meu caso a Faculdade de Direito.
Mas hoje tenho visto Colegas e
Magistrados, sem dúvida juridicamente sabedores, cujo português escrito, não
será (muito) melhor do que o do meu neto de 16 anos, sem ofensa para este.
A obra OS MAIAS não vai,
afinal, desaparecer da lista de leitura para o ensino secundário, como o Ministério da Educação/ME chegou a propor!!!
As chamadas aprendizagens essenciais vão ser aplicadas
a partir do próximo ano letivo, num processo que começará, no caso do
secundário, pelo 10.º ano. Para o ME, se bem percebi, a definição destas aprendizagens,
que esteve principalmente a cargo das Associações de Professores (conheço mesmo
uma professora que ainda dará aulas por mais uns cinco anos e que diz que não
ensina Camilo, pois já não estamos em tempo de “amores de perdição ou salvação”), é necessária para resolver o
problema da “extensão” dos atuais
programas e permitir que seja fixado um “conjunto
essencial de conteúdos” que os alunos devem saber em cada disciplina.
Na anterior versão do ME, os documentos
propostos para a disciplina de Português, omitiam as obras de Eça de Queirós
que deveriam ser lidas no secundário, “referindo
apenas que os alunos teriam de ler um livro deste autor”.
O programa da disciplina, que ainda se
encontra em vigor, determina que a abordagem a Eça de Queirós, incluída na
matéria do 11.º ano, passa pela leitura de OS MAIAS ou A ILUSTRE CASA DE RAMIRES.
A
supressão de OS MAIAS na versão inicial apresentada do ME, deu origem a um coro
de protestos de académicos, pessoas cultas (onde não se encontravam
necessariamente políticos…), e professores talvez todos eles “inabilitados”.
Não foi apenas em relação a Eça que o ME
recuou. Nas listas de leitura apresentadas para o 10.º, 11.º e 12.º ano, voltam
a ser inscritas as obras de Almeida Garrett (o “teatral” FREI LUÍS DE SOUSA, Alexandre Herculano (O MONGE DE
CISTER) e Camilo Castelo Branco (os démodé amores de salvação e perdição), que
tinham desaparecido da versão inicial das aprendizagens essenciais, onde foram
substituídas por “escolher um romance”
de um destes três autores. Interrogo-me que romance camiliano aquela Senhora
Professora vai escolher…
A Presidente da Associação de Professores
de Português, justificou esta opção, com “a
necessidade de diminuir o número de obras propostas para leitura”, se permitir
“o alargamento das opções que podem ser
tomadas pelos docentes”, a quem ficaria entregue a escolha dos livros que
os alunos deveriam ler.
Também no 12.º ano, o ME desistiu de
retirar a abordagem ao conto, enquanto género literário. Na lista de leitura
para este ano de escolaridade voltam a estar incluídos contos de Manuel da
Fonseca, Maria Judite de Carvalho e Mário de Carvalho, que muito aprecio.
Nunca me assumi como uma pessoa
especialmente preparada para emitir opiniões nesta matéria, por isso subscrevo
ser "uma opção desejável, até por se
tratar de um género breve que os jovens nas sociedades de hoje privilegiam como
é possível constatar na blogosfera onde narrativas breves e micronarrativas
ocupam lugar de relevo”.
O ensino da literatura no nosso ensino secundário morreu
há muito tempo!
O medo, o comodismo, a
falta de cultura literária (mesmo de alguns “docentes” como referi), os exames nacionais, o ensino “sebenteiro” deram cabo do gosto pela
leitura. O ME assiste impávido e sereno a este enterro, piscando à direita e à
esquerda, sorrindo de soslaio para uma corte de acríticos que seguem atrás do “defunto”.
Se o facto
permitir/impor que Os Maias sejam lidos na Escola, tudo bem, embora haja coisas
que quando se tornam oficializadas ou obrigatórias desenvolvem um efeito
perverso ..., pelo que se a minha opinião ou vontade valessem alguma coisa,
gostaria muito mais que a leitura decorresse de um gosto cultivado.
É bom salientar quando
o bom senso prevalece. Mas ainda bem que houve toda esta dinâmica.
Claro que o português
terá liberdade para ao longo da vida ir escolhendo as suas leituras (10% dos
alunos do ensino secundário nunca leram um livro do princípio ao fim, e os pais,
como é usual dizerem, não têm tempo para essas futilidades…) mas, para base do
ensino secundário, aconselharia que a escolha não fosse volátil.
DEDICATÓRIA AOS MEUS
AMIGOS
Fernando Pessoa e FLeming de OLiveira
-Os amigos são para as ocasiões?
Não,
caros leitores os “amigos” são para
sempre.
A
amizade é um prazer, uma satisfação, um gosto. Não deve depender de favores ou
ajudas. Pede-se, dá-se, recebe-se,
esquece-se e, nesse caso, não se fala mais nisso.
São
para as ocasiões?
Costumamos
dizer que amigos de verdade são os que estão ao teu lado em ocasiões
difíceis...
Mas
não estou de acordo com essa antiga máxima popular! Os amigos verdadeiros são
os que estão a compartilhar a tua felicidade! Porque num momento difícil,
qualquer “Zé” se aproxima de ti. Mas
o teu inimigo jamais suportaria compartilhar a tua felicidade!
O
desvalor da amizade, tal como da solidariedade a que me referi há tempos neste
espaço de jornal, deve-se a uma persistente instrumentalização que tem sofrido.
É o perverso instrumento de cunhas, palavrinhas segredadas ao ouvido,
cumplicidades e compadrios. Por isso, essas amizades se fazem e desfazem como
se fossem circunstanciais tratos políticos ou comerciais.
Se
alguém “não corresponde”, se não
cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como “o mau” amigo, o “o ingrato” e sumariamente afastado. Tenho
necessidade de pensar e acreditar que os Amigos são com quem (não obstante a
distância) estamos em contacto. Podemos até gostar mais deles do que eles de
nós. Não me interessa, nunca encarei como questão de balança.
Os
amigos são úteis?
Não
caros leitores, não são úteis, têm mesmo de ser “inúteis”.
Bom,
tenho de explicar para não haver mal-entendidos e me possa ser permitido
continuar a colaborar com o Região de Cister, os amigos devem bastar só por si,
existir. O porquê, o onde e o quando não me interessam. A amizade não tem ponto
de partida, nem percurso, nem objetivo. É impossível lembrarmo-nos de como nos
tornámos amigos de alguém ou pensarmos no futuro que vai ter essa relação.
É
por isso que dura para sempre, porque não contém expectativas nem planos, nem
ansiedade.
-"Um
dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas atiradas fora,
das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e
momentos que partilhamos.
Saudades até dos momentos de lágrimas, da angustia, das
vésperas dos fins-de-semana, dos finais de ano, enfim...do companheirismo
vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje já não tenho tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado.
Seja pelo destino ou por algum desentendimento, cada um
segue a sua vida.
Talvez continuemos a encontrar-nos, quem sabe... nas
cartas que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices... os
dias vão passar, meses... anos... até este contacto se tornar cada vez mais
raro.
Vamo-nos perder no tempo...
Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e
perguntarão:
-Quem são aquelas pessoas?
Diremos... que eram nossos amigos e.… isso vai doer tanto!
-Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos
da minha vida!
A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...
Quando o nosso grupo estiver incompleto... reunir-nos-emos
para um último adeus a um amigo.
E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos.
Então, faremos promessas de nos encontrarmos mais vezes
daquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a
viver a sua vida isolada do passado.
E perder-nos-emos no tempo...
Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes
que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de
grandes tempestades...
Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem
morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus
amigos!"
-Este texto que acabo de transcrever e que utilizo como
cartilha, é de Fernando Pessoa, agradecendo desde já ao nosso Diretor Joaquim
Paulo tê-lo publicado pois embora seja um autor estudado no ensino secundário e
frequentemente matéria de exame de português, creio que a generalidade dos
alunos o desconhece. É pena porque contem uma verdadeira compilação de
sentimentos e comportamentos profundos e que só com o tempo e a idade se
percebem.
E
já estou hoje com Pessoa, relembro com a devida vénia mais este texto
muitíssimo elucidativo:
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus
que se haviam zangado. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam
zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos
tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro
outra, ou um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via
as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério
idêntico ao do outro. Mas cada um via uma coisa diferente, e cada um portanto,
tinha razão.
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
-Boas férias se ainda as não gozou.
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