domingo, 14 de fevereiro de 2021

HUMBERTO DELGADO, A CELA E ELEIÇÕES - FLEMING DE OLIVEIRA

Ouvi contar a um antigo Presidente da Câmara de Alcobaça, que em 1958 algumas mesas de voto no Concelho de Alcobaça, chegaram a aparecer mais boletins, do que total de inscritos nos cadernos eleitorais. Talvez por isso, corre a tese, que Delgado ganhou as eleições de 1958. Os resultados fornecidos pelo Regime, deram a nível nacional 75,8% dos votos a Américo Tomás e 23,6% a Humberto Delgado.



Todavia, muitos entendem que esta diferença, não é apenas o fruto de fraude stritu sensu, no momento do apuramento dos votos, mas também o efeito de uma enorme máquina manipulatória ou intimidatória, que se iniciava com o recenseamento eleitoral. Na prática, só era facilitado o recenseamento aos que eram de confiança. A oposição não tinha acesso aos cadernos eleitorais, encontrava-se impedida de fiscalizar o acto e competia-lhe distribuir pelos eleitores os boletins de voto. No dia das eleições, havia operações como a alteração dos resultados, fazendo circular transportes que permitiam que se arregimentassem pessoas ou que se votasse mais que uma vez.

De acordo com o antigo G.N.R. e falecido soldado Joaquim Meneses, que não gostava falar de política, embora ouvisse falar das chapeladas, isso era tema tabu na corporação. Sobre as eleições presidenciais de 1958, a imprensa de Alcobaça, foi bastante sóbria, referindo, de forma meramente circunstancial os candidatos da oposição, o Advogado de Lisboa, Arlindo Vicente, afeto ao PC (antes de desistir), bem como o Gen. Humberto Delgado, ainda tratado deferentemente como S. Ex.ª. Joaquim Meneses, encontrou-se algumas vezes, com Humberto Delgado, na sua quinta. A Igreja de S. Bento está na propriedade de Delgado. Aquando da festa de S. Pedro, deslocava-se para lá uma patrulha da G.N.R., de que Meneses fez parte várias vezes. Quando esta chegava, Delgado dava pessoalmente instruções à cozinheira para servir um bom almoço e ser bem tratado. Falava cordialmente, embora com banalidades com os elementos da patrulha, dizendo-lhes que ali só havia boa gente e para estarem à vontade. Meneses salientava que os elementos da G.N.R., antes de saírem em serviço no dia das eleições, tinham de ir votar, o que no seu caso fazia por dever de ofício. Ia votar nas listas da U.N., pois no dia anterior, o comandante do Posto, no cumprimento de instruções de cima, dizia-lhes que aonde o voto tinha de ser colocado.

 

 

O saudoso Francisco Leonardo Eusébio foi sacristão da Cela, entre 1952 e 1956, altura em que era Pároco João de Sousa. Através dessas funções conheceu Humberto Delgado que indo à missa e não prescindia de cumprimentar na sacristia o Pe. João de Sousa, enquanto se desparamentava. Nas Festas de S. Pedro, havia romaria a partir da Capela de S. Bento, com sermão, missa cantada, procissão, e a participação da (extinta) Banda, que atuava num coreto improvisado, enquanto que o povo se distraía, na conversa e nos comes e bebes.


A procissão, saía da Capela, com a banda a tocar, ia até ao Largo da C.P., onde dava a volta. Por altura das festas, Delgado costumava convidar para almoçar, os principais responsáveis da organização, Igreja (padre e sacristão) incluída. Foi assim na qualidade de sacristão, que Francisco Eusébio foi algumas vezes almoçar a casa de Delgado e com ele trocou algumas palavras. Apesar de respeitar Delgado, mas não propriamente com as suas ideias políticas, Francisco Eusébio não participou na campanha eleitoral, porque sendo membro da União Nacional, não podia aparecer como opositor do regime. Mas também não queria aparecer a apoiar Delgado.

A eletricidade chegou à Cela, e graças ao empenho de Delgado. Dizia-se que num fim de semana em que este veio à quinta, terá dito ao motorista, que o caminho era sempre em frente Este terá levado a informação tanto à letra que o carro se despistou e caiu numa ravina. Ninguém saiu ferido, mas Delgado chegou a casa muito irritado e sujo, tendo este sido ao que se diz o grande pretexto para reclamar, com todo o peso da sua posição, a luz elétrica para a freguesia.

Quando nos anos trinta do século XX se levou a cabo o Plano de Rega dos Campos da Cela, o governo pretendeu lançar uma taxa sobre os utentes, a qual foi por considerada muito pesada e difícil de pagar. Sabe-se que Delgado interveio para a abolir, o que veio a acontecer, aliás era interessado como regante. Francisco Eusébio foi também tesoureiro da Junta e Regedor, nomeado pela Câmara presidida por Tarcísio Trindade. A Regedoria funcionava em sua casa. Como regedor, sem nada ganhar, competia-lhe fazer pessoalmente notificações, zelar pela manutenção em geral da ordem. Não obstante, ter de alinhar com o regime, louvava-se de nunca ter tido contactos com a PIDE, conhecido algum agente ou lidado com informadores, nem ter sofrido pressões para fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A Cela era (é) uma terra de fraco desenvolvimento, com uma população essencialmente rural e as manifestações que, porventura, houvesse contra o governo, aconteciam aos domingos na taberna.

Não existem registos de notícias de grandes manifestações de apoio expresso em Alcobaça ao candidato Américo Tomás, mas outrossim à política do governo, salvo depois de se saber os resultados eleitorais, com os encómios habituais. É também impossível saber até que ponto os resultados aqui foram viciados, como reconhecia esse antigo Presidente da Câmara Municipal, pois a fiscalização das urnas foi inexistente, e as chapeladas vulgares. Dos 6.174 eleitores inscritos no concelho, votaram 4.755, dos quais 3.044 em Tomás e 1.704 no Gen. Delgado. O antigo G.N.R., Hermínio de Oliveira, falecido não há muito era uma personalidade estruturalmente diferente de Joaquim Meneses. Dizia ter saudades do exercício da autoridade à moda antiga. Meneses era alegadamente incapaz de tratar uma pessoa a bofetão ou pontapé.

 


A G.N.R. de Alcobaça, nos anos de 1960, como recordava Hermínio Oliveira, chegou a receber mandados para captura do General Humberto Delgado, quando ele viesse a casa na Cela Velha. Assim, com esse objetivo chegaram a sair algumas patrulhas, integrando-se nelas o soldado Hermínio Oliveira. O Gen. Delgado foi por elas visto a entrar ou sair de casa, mas, respeitando-o (nunca perdendo de vista o sentido hierárquico e da autoridade), a patrulha da G.N.R. não tomou qualquer iniciativa e ao regressar ao Posto, e tendo de apresentar o respetivo relatório, fazia consignar que a pessoa em causa, não fora vista, nem encontrada. Estes mandatos expedidos do Tribunal de Alcobaça repetiam-se ciclicamente, mas, Oliveira reclamava-se de nunca ter tomado nenhuma atitude, contra o General Delgado, que independentemente de saber ser um político da Oposição era considerado, antes do mais, uma pessoa de bem, de respeito, uma autoridade e importante para o País.

Mas a G.N.R. de Alcobaça não procedia desta maneira respeitosa, para com toda a gente. Embora não fosse prática legalizada ou mesmo reconhecida pelos comandos ou subalternos, a verdade é que esta corporação utilizava com frequência meios musculados.