sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
Isto não é letra de Fado
Isto não é letra de
fado
FLeming de OLiveira
Diz-se que um escritor
americano, cujo nome não recordo, inventou uma definição para os lugares intermédios entre os de trabalho
e o círculo da família. Chama-lhes pátria
da conversa e referia-se a bares, cafés, etc, sítios onde as pessoas se
encontram para beber um copo, petiscar e, sobretudo, conviver. Em Portugal,
tendo em conta a escala e hábitos, já foram rotulados como o fórum dos pobres.
Seguramente,
e não estavam a pensar nisso, estes enquadramentos adaptam-se bem à função
social dos tascos e tabernas na vida portuguesa do antigamente, não apenas nos
meios rurais, mas também na cidade. Embora a minha família “tripeira” os não frequentasse, sabia
como eram espaços de encontro e de conversa, lugares para espantar a solidão,
salas de jogo da bisca, da sueca e de leitura do Jornal de Notícias, quando o
tasqueiro assim o comprava. Eram fundamentalmente “santuários” de comes e bebes baratos e à descrição, embora
afastados da fama que os associava a antros de perdição. Na cidade compacta
onde vivi, popular e operária, nos largos e ruas onde havia gente, os tascos
constituíam elementos fundamentais ao equilíbrio dos lazeres e da estabilidade
em que a comunidade se arrumava a horas ou fora delas. Na cidade, engolidos na
enxurrada do desordenamento e da fuga dos habitantes para a periferia, a
maioria dos tascos desapareceu no estilhaçar de territórios que faziam a
comunidade inclusiva. Nos meios rurais, por mimetismo ou razões alegadamente de
progresso, também desapareceram ou perderam as características. Não, não
conheço nenhum tasco interessante em Alcobaça.
Quando
vou ao Porto, gosto de dar um giro na companhia de um cunhado que se virou para
Lisboa e por razões profissionais até tem de “torcer” pelo Benfica, por alguns desses espaços que resistem descaracterizados,
mas que devem ser encarados como património e locais de memória da história e
identidade da “minha” cidade, mais do
que propriamente a “minha”
personalidade. Aí encontro uns bolinhos de bacalhau (grandes e feitos sem
batota), umas iscas, um verde tinto servido à maneira numas canequinhas de
barro ou um serrabulho em malguinhas de metal, tudo acompanhado com uma bela
broa.
Nunca tive uma visão
fadista e fatalista da realidade que me desculpem os admiradores do fado
triste. Também não aprecio a queda para o coitadinho. Mas uma coisa é achar que
a vida não é fado - prefiro o malhão, o
fandango ou o vira do Minho- outra a
ignorar as dificuldades dos muitos que andam por aí. Na minha infância
portuense não a senti, mas vi fome escancarada em certas zonas do burgo, por
vezes em níveis absolutamente insuportáveis. Ainda hoje me persegue a imagem de
uma mulher caída no centro da cidade, lá para os lados da Rua de Santa
Catarina, desmaiada de fome, mas que alegadamente u8m polícia municipal dizia
que fora da queda.
Tirando
isso, a primeira vez que vi bandos de garotos, quais sombras silenciosas, a
comer restos de comida em caixotes de rua foi no Brasil, em S. Paulo, ao raiar
da madrugada, nas traseiras do meu hotel na Avenida Paulista. Isto foi há uns
30 anos e pensei que não voltaria a ver tal espetáculo. Enganei-me. Por obra de
uma democracia que já se dizia de sucesso e de “democratas” que a tomaram de assalto em beneficio próprio ou dos
interesses que representam, reencontrei nas ruas de Portugal a certas horas e
locais, imagens e indignidade que a sordidez da miséria arrasta.
Honra
seja feita ao Presidente Marcelo na vigorosa e emocionante campanha que tem
desenvolvido para tentar por cobro a esta tragédia, e não me venham certos
políticos, muito tecnocratas, dizer que estão assim porque gostam, não querem
trabalhar, etc, etc.
Enquanto
isto se mantiver e o autismo do Terreiro do Paço prosseguir no desmantelamento
de uma sociedade com valores estabelecidos e o Presidente da República não
conseguir levar a bom termo a sua missão, receio mesmo que um dia destes não
sejam apenas os sem-abrigo a comer dos caixotes do lixo.
Amigos leitores, isto não é letra de fado.
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
Farturas que fazem bem à alma
FARTURAS FAZEM BEM À ALMA
Fleming de OLiveira
Desde que me lembro, fiquei rendido às barracas de feira, saltimbancos, circo ambulante e rulotes, graças ao “Senhor da Pedra” (Miramar), uma das romarias antigamente mais importantes da zona do Porto, hoje como muitas outras absolutamente descaracterizada, onde assentava um mundo de pavilhões de delicias, encantos, tentações e sonhos, tudo num cenário de tecnologias rudimentares, mas que mesmo assim funcionavam a contento.
Aprecio e respeito, pois considero ser uma questão de coragem e solidariedade, o pessoal que percorria o país levando a festas e arraiais a oportunidade de uma pequena evasão nos carrosséis com cavalinhos, pistas de carrinhos de choque, poço da morte, e outras fantasias como o vendedor da banha da cobra, sem esquecer os muito prosaicos matraquilhos. E as tendas a vender louça de barro, quando de chineses só sabíamos terem olhos em bico e serem amarelos.
O “Senhor da Pedra”, com a componente religiosa (sermão, missa cantada e procissão) e lúdica, era uma romaria tão relevante que o famoso “Cantares de Manhouce” gravou um disco com um número a ele dedicado, interpretado pela voz incomparável de Isabel Silvestre. Quem vai ao Senhor da Pedra “vai e torna a ir…”
Caros Leitores, até vos digo que acho mais harmoniosa e humana cada terra, enquanto se encontram barracas de feira.
Antigamente, com aquele nada conforme os rigores do “jet set”, tentavam-me as vendedeiras de doçarias vindas das funduras da tradição e do tempo e só já não me excitam a pituitária porque tudo se encontra envolvido em celofane, não se sujam as mãos e é muito assético.
Pelo gosto de viver com algum sabor reminiscente da infância, aguardo ainda com algum alvoroço a chegada da Feira de S. Bernardo e aí faço os possíveis fazer calmamente o circuito das farturas e dos churros, essa extraordinária atração mediterrânica a que não resisto. E quando estou com os meus netos, nunca dispenso uma deslocação às pipocas às cores e algodão doce. Já cheguei uma vez a interromper as férias, fora de Alcobaça, para não perder esta oportunidade. Mal me cheira a S. Bernardo, fico alerta ansiando a chegada dos barraqueiros trazendo alegria, o convívio e a degustação não conformada com as ementas saudáveis com que nos bombardeiam o juízo e o estômago. E quando vejo o apagar das luzes, o desmontar das tendas e o partir para outro destino, acontece que não consigo furtar-me ao chegar melancólico de alguma tristeza.
Agora que partiram esses tão simples encantos e neste início de outono, irei tentar confortar-me e procurar uma barraca de pão quente com chouriço, se possível cozido em forno a lenha. Se a não encontrar, tenho que convencer a minha Mulher a repor a funcionar o forno a lenha da minha casa dos Montes.
Nessa altura, convidarei o nosso diretor Joaquim Paulo. Quem não convido, seguramente, é o meu amigo e consciencioso médico Dr. Jorge Araújo, pois proibiu-me com ar circunspeto e por razões alegadamente muito sérias de comer gorduras. Mas eu respondi-lhe de pronto que “feitas com óleo vegetal não é gordura é natureza” e que esta alimentação “faz muito bem a alma”.
sexta-feira, 19 de outubro de 2018
Uma Questão de Ética
UMA QUESTÃO ÉTICA
FLeming de OLiveira
No tempo do arroz de quinze, a “Cidade” era habitada por uma pequena e média burguesia que lhe conferia um aspeto ponderado, cortês e muito sensato. Era uma postura que se afirmava contra a “Situação”, desprezava o Terreiro do Paço e desconfiava tudo o que vinha de Lisboa, muito especialmente do Benfica.
A vida pautava-se, em suma, pelo respeito por princípios assumidos hereditariamente, a que eu poderia chamar redutoramente de “Senso Comum” princípios muito elementares.
1)-Ser poupado (gastar menos do que se ganha, para viver tranquilo).
2)-Pagar o que se deve (as dívidas são sagradas e caloteiro é atributo abaixo de cão).
3)-Cumprir com a palavra dada (o meu avô materno nunca assinou um contrato, pois um aperto de mão validava o compromisso e nem por isso deixou de ser um comerciante respeitado e importante).
4)-Viver a economia do aproveitamento (os fatos mandavam-se virar, passavam para o filho, os colarinhos e punhos das camisas eram substituídos e os buracos das meias cozidos pelas Mãos de Fada das mães).
5)-A comida era assunto de muito respeito (do prato comia-se tudo, acabava-se a limpá-lo com o pão e as sobras guardavam-se para outra refeição. Pão caído no chão apanhava-se, dava-se um beijinho e a seguir comia-se com apetite).
6)-Pagar era a pronto (o que se comprava era a contado, estilo “toma lá dá cá”. O primeiro automóvel que o meu pai comprou, um Morris Minor preto de duas portas, foi em segunda mão ao gerente de uma casa comercial do Porto).
7)-Cumprir com o trabalho (pontualidade, assiduidade, competência eficácia, pois ser chamado de trabalhador era tão importante como ser apelidado de sério).
Este ambiente tripeiro (não se esqueça que sou natural do Porto e vivo em Alcobaça “apenas” há 40 e muitos anos), seria agora apelidado de reacionário e castrador.
Não esqueço que havia os vigaristas que atuavam junto das estações de S. Bento e Campanhã aldrabando os incautos e os carteiristas com assento nos elétricos e nas romarias do Senhor de Matosinhos ou do Senhor da Pedra e no futebol, embora com os seus códigos de ética profissional que a polícia conhecia e de certo modo respeitava.
Este tempo considerado atrasado e repressivo, conforme os valores que hoje nos comandam, e em que cresceu a minha geração “inabilitada”, foi varrido por uma realidade que subverteu valores de um mundo tido por “decente”, pelos de gastar, atropelar, consumir até a exaustão, comprando a crédito, comendo e bebendo à grande e à francesa, dar golpes de milhões em bancos e empresas público-privadas (têm a desfaçatez de dizer estão a “poupar”, embora com o dinheiro dos outros, para cobrir o défice que eles e amigos contraíram!), enfim desprezar a inocência e a honradez, trepar por qualquer preço, etc. etc..
Manuela Ferreira Leite, Ministra da Educação, avançara com a imposição de uma prova global no 10.º ano e a eterna questão das propinas.
Teve a oposição da Academia que se manifestou em Lisboa, em enorme protesto com centenas de milhares de alunos.
Desprezaram o “respeitinho” devido ao poder, excederam-se na linguagem e exibições menos elegantes de tenros traseiros!
Há anos numa qualificação e generalização que, pessoalmente, acho rascas, disse-se que temos uma “geração rasca”.
Errado!!!, temos um País de “gente rasca” que o degradou até aos limites da sua capacidade de resistência e promoveu a sua destruição cívica. A “gente rasca” é também um produto da geração adulta de hoje nos facilitismos oferecidos, no fomento negligente de irresponsabilidades, no paternalismo. Uma geração “velha” que prescindiu de transmitir os princípios da liberdade responsável.
A ausência de ética, de moral, de princípios gera, consequentemente, comportamentos políticos da mesma natureza, sem moral e sem ética. Alimenta e pratica a mentira, a manipulação, o golpe, as jogadas de interesses.
Um desrespeito profundo pela Lei. Eles são a Lei. Para eles, Lei é não haver Lei. Mudam-na da noite para o dia, ao sabor dos seus interesses e dos interesses dos seus.
Recordo os donos de duas lojas do Porto que, ante a falência, optaram por se suicidarem, enquanto outros senhores, devoristas e gastadores que hipotecam o nosso futuro, fazem discursos moralistas e apelam ao voto. O à vontade com que se ouve uns meninos (as), com ar palerma e convicto (as), falar de despedimentos, de machadadas nas reformas dos velhos que os sustentaram, é uma coisa obscena e que exigiria resposta dos mais velhos.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
Ainda Há Homens de Barba Rija
AINDA HÁ HOMENS DE
BARBA RIJA
Fleming de Oliveira
Gosto de colaborar com
o “Região de Cister”, o que acontece
quase a partir do momento em que saiu a público pela primeira vez. Nessa
altura, a apresentação gráfica era muito incipiente e os textos vinham com
inúmeras e desesperantes gralhas. Mas era um desafio estimulante.
Ao
tempo a sede, era perto do Centro de Emprego.
Bem
sei caro Senhor Diretor e pacientes Leitores, que este tipo de crónicas/
apontamentos periódicos a que aqui me dedico, são tão frágeis, como a pena que
esvoaça ao sabor da brisa do momento. São mesmo voláteis e salvo nas mãos de
persistentes guardadores de cacos, essas palavras fugidias, vadias mesmo,
assumem-se como restos ou ossos de um mundo em extensão, esfumam-se sem deixar
rasto e nem passam à história. São fogos-fátuos, calendarizados e temporais.
Por
isso, talvez a melhor maneira de lhes dar sentido de os não ver amarrados ao
passado e ao esquecimento onde amanhã jazem, é compilá-las e publicá-las em
livro.
Pode
ser que um dia me dedica a essa “tarefa
por coisa nenhuma”, se a minha Mulher não entender que é uma forma tola de
gastar dinheiro.
Naquela tarde encontrava-me
no supermercado junto às prateleiras que vendem artigos de barbear, enquanto a
minha Mulher andava na faina das compras.
Ele
aproximou-se devagarinho e de forma discreta, pondo-se de lado a olhar para mim,
como que estivesse na dúvida “se era eu
ou não”. Era um individuo com cerca de oitenta anos, de estatura mediana,
usando um casaco escuro de corte tradicional, usado, mas bem escovado e calçando
botas rurais. Depois de perceber que era mesmo eu, perguntou cautelosamente se
eu me recordava dele.
Na
verdade, embora a cara fosse vagamente conhecida, não fazia nenhuma ideia quem
era ele, mas todavia por uma questão de cortesia, retorqui que “sim, obviamente sabia muito bem quem era”.
Foi meu cliente, há anos, num assunto que não me deixou qualquer impressão
relevante.
Estabelecidos
estes laços de confiança, perguntou-me sempre delicada e cautelosamente se eu
lhe indicava um “creme” adequado a
sua barba e idade. Explicou que não estava habituado a fazer este tipo de
compras (é o filho que normalmente se encarrega disso) e até me adiantou a
marca muito conhecida que usa, “com um
preço muito em conta”, mas que embora já a tivesse procurado nas
prateleiras não encontrava.
Expliquei-lhe,
“doutoralmente”, que as espumas de
barbear estão divididas para peles sensíveis e para peles normais e não sabendo
o seu caso perguntei-lhe se me permitia que eu escolhesse.
Pensando
bem e tendo conta a sua aparência fisionómica, cara enrugada e algo
envelhecida, sugeri-lhe uma marca muito conhecida (que aliás não é a sua usual)
que anunciava uma hidratação de peles sensíveis.
Quando
lhe expliquei a minha opção e a característica do produto, o homem pareceu
ligeiramente aborrecido, retorquindo que “não
queria creme para mulher que não quer perder sinais de juventude, mas sim um produto para um homem de barba
rígida e de saúde”.
Engoli
em seco, disse que tinha razão balbuciei qualquer coisa de circunstância, mas
ele acabou por aceitar a minha sugestão.
Um Lugar lá no céu
UM LUGAR LÁ NO CÉU
FLeming de OLiveira
-Possivelmente os meus leitores já não se recordem do
episódio que ocorreu em inícios de 2016, a propósito do trabalho voluntário.
Lembrei-me
dele e daí escrever o apontamento que segue.
Entre
outras considerações, Catarina Martins afirmou, bombasticamente, que “trabalho voluntário é uma treta. Se é
trabalho, tem de ter contrato. Voluntariado é o que as pessoas podem fazer
depois de terem um contrato de 35 horas semanais, quando se querem dedicar a
outra atividade”.
Este
comentário fez com que o Professor Marcelo (ainda não P.R.) respondesse, que, “de quando em vez, ouve-se uma ou outra voz
na sociedade portuguesa, um pouco estranha, quase aberrante, a dizer: Não é bom
haver trabalho voluntário, deve haver prioridade ao trabalho pago. o trabalho
voluntário de que falamos vai para além da atividade profissional de muitos; e
noutros casos representa uma forma própria, autónoma, de realização pessoal,
que não tem a ver com atividades profissionais desenvolvidas no passado”.
O
Professor Marcelo asseverou o que a maioria dos Portugueses já sabia
intuitivamente, que independentemente dos problemas da vida, das desconfianças,
das tristezas, das expectativas não concretizadas, a disponibilidade para o
trabalho voluntário é inata em cada um.
Recordo
ter lido em fonte autorizada (I.N.E.) que se calcula que em Portugal quatro em
cada cem horas de trabalho, consiste em trabalho voluntário de mais de um
milhão de portugueses, quase 12% da população.
Para
uma certa esquerda (digo eu), a caridade e o voluntariado continuam a ser
encarados, fundamentalmente, como uma forma de as pessoas aliviarem a
consciência, sem encararem o problema estrutural da pobreza. Ao darem umas
moeditas a um sem abrigo ou arrumador de carros ou ao encherem uns sacos de
compras, essas pessoas limitam-se a dar uma parte insignificante do seu
rendimento ou do seu tempo, para viverem melhor consigo. Estas práticas, longe
de resolverem o problema, perpetuam-no, porque os mais pobres enquanto viverem
da “caridadezinha”, resignar-se-ão à
sua irremediável condição, e o Estado aproveita estes apoios pontuais para se
eximir das suas responsabilidades.
Os
que apelidam a caridade da “caridadezinha”,
depositam uma esperança (utópica) no serviço e capacidade do Estado, seja num
S.N.S. ou na S.S., que não temos. Colocam-se na teorização de um sistema
abstrato e idílico que a todos chega e socorre, desdenhando da ajuda presente e
pontual, concretizada através de pequenos gestos.
Há
várias sugestões sobre o que deve ser o combate contra a pobreza. Algumas
delas, pressupõem que a caridade, a esmola à qual se torce o nariz, é uma
antítese da transformação social. Errado (digo eu), pois deve/pode fazer-se uma
e outra coisa, investir no combate à desigualdade (seguramente o objetivo mais
difícil que existe), ao mesmo tempo que se partilha o que se tem.
Não
tenho, porém, a certeza se a caridade e o voluntariado em muitos casos
preocupam-se menos resolver problemas de quem precisa e mais no sacrifício do
caridoso em detrimento das carências do necessitado. Refiro-me ao caridoso ao “profissional”, ainda que não retire
proventos materiais…
A
Madre Teresa é louvada pela sua dedicação aos pobres, por ter segurado a mão de
quem se finava e amado quem era miserável. Mas se tivesse promovido a educação,
saneamento básico, campanhas de vacinação ou de medicina preventiva, salvando
gente em vez de a amar até à morte, as pessoas concediam-lhe outra distinção?
-Fui com minha Mulher às
compras, num dia em que se recolham donativos para o “Banco Alimentar Contra a Fome”. Quando ia a entrar no supermercado
ouvi uma senhora, que distribuía os sacos de plástico, falar com um homem dos
seus 50 anos, de calças de ganga, sapatilhas e uma estafada t-shirt
publicitária de uma empresa, que se desculpava por não aceitar o saco que ela
lhe estendia para colocar ofertas.
Querem
saber o que a senhora lhe respondeu?
- “Sim, estou a ver,
também é pobrezinho, não é?”
Há
anos que não ouvia este "pobrezinho",
como antigamente era mais ou menos usual dizer-se, mas que tem vindo a ser
substituído por "carenciado".
Confesso que o "pobrezinho"
me incomodou, não por o preferir a "carenciado",
mas por o "pobrezinho" me
cheirar a “caridadezinha” vindo
daquela senhora, que poderia qualificar de “profissional”
já que está em todas.
Pode
parecer que não tem importância de maior utilizar uma ou outra expressão. Mas
como sou cada vez mais desconfiado, se não incrédulo (talvez injustamente),
parece-me que faz toda a diferença. Vejo a "caridade(zinha)”
daquela senhora como uma atitude egoísta e de desprezo, na medida em que quando
a pratica está mais centrada em si própria, preocupada em garantir um lugar no
Céu.
O
Povo Português, tem dado, sobejas e exemplares provas de solidariedade em favor
de povos estranhos ou concidadãos, sempre que a necessidade a isso tem dado
azo. As situações de enorme dificuldade por que o País passou no último verão,
acarretaram demonstrações de grande e preocupada solidariedade, por parte dos
que têm pouco, perante os que perderam muito.
Não
estou, obviamente, contra as pessoas que, livremente, de forma organizada ou
individual e para lá de quaisquer direitos ou deveres (legais), dão
gratuitamente coisas e/ou o tempo e/ou dedicação. Por isso não levem a mal as
minhas observações, tanto mais que não sou, nem teria autoridade para ser
moralista.
Numa
comunidade evoluída, as pessoas têm direito, desde logo, a uma vida digna, não
oferecida pela boa vontade de alguém, não dependente de quem apareça com
disponibilidade para a concretizar, mas assumida pela comunidade. O "Estado Social", é necessário para
que ninguém precise da caridade. A caridade é, por natureza, discricionária,
ninguém pode ser obrigado a ser caridoso, pois caridoso é quem quer, quando
quer, como quer, com quem quer.
-Os governantes que
implementam “medidas impopulares”,
ainda que benéficas para o futuro, encontram uma resistência feroz e o apoio
tíbio de uns poucos. Vão além do seu tempo e forçam passagem através de uma
maioria reivindicativa. “Ainda não
descobri a maneira infalível de governar. Mas aprendi a fórmula certa de
fracassar: querer agradar a todos, ao mesmo tempo”, afirmava o Presidente
John Kennedy.
Sabia
a relação entre o dever cumprido e o julgamento do tempo. Sim, a história, esse
“juiz imparcial”, repara injustiças,
mas tem o péssimo hábito de andar devagar. É sabido o intervalo entre o aplauso
do “Tempo Que Passa” e o aplauso da “História”.
Se
o governante se deixou fascinar pelo aplauso do seu tempo, bem sabendo que
implementar as necessárias reformas seria enfrentar insatisfações dos
instalados, se cumpre apenas o que é expectável, faltou-lhe a perceção de
Abraham Lincoln (Presidente do E.U.A.), que no meio das dificuldades e
vicissitudes do cargo, dizia que, “se
fosse responder a todas as críticas e ofensas que lhe eram direcionadas, não
faria mais nada”. E deixou como legado uma frase lapidar e por isso muito
conhecida: “Pode-se enganar o povo
durante algum tempo e parte do povo durante todo o tempo, mas não pode enganar
todo o povo todo o tempo”.
Somos um povo de Boas Pessoas
Somos
um povo de boas pessoas
FLeming de OLiveira
Salvo erro foi Eça de
Queirós quem escreveu que “somos um povo
de boas pessoas”.
No
meu tempo de estudante em Coimbra e na casa onde vivia e estudava, formávamos
um grupo que passava horas a discutir tudo e nada, com aquela segurança e
certeza que só existem na juventude. Abordávamos temas tão importantes como “saber se há vida depois da morte”, “como é a
melhor tática de meter conversa/engatar uma pequena” ou mesmo “se a Académica tinha condições para ganhar
no domingo ao Sporting”.
Neste
grupo havia um que se destacava por ser muito especulativo como nos dizíamos, capaz
de encontrar os argumentos menos previsíveis ou criar as situações mais
insuspeitas ou divertidas. Era o Lopes que também gostava de escrever uns
artigos para o jornal lá da terra e que terminado o curso na Faculdade de
Letras enveredou pelo jornalismo com sucesso. Hoje em dia é diretor de uma revista,
mas então era um rapaz com opiniões e soluções tão consistentes como as nossas.
Numa
noite que se prolongou pela madrugada, interrompida para ir beber uma
cervejinha ao “Mandarim”, o Lopes
tentou convencer-nos que o povo português é essencialmente “socialista”, somos todos bons rapazes e
que ninguém fica indiferente em ver uma situação de desconforto, penúria ou de
sofrimento.
Dizia
o Lopes para valorizar a sua tese “quero
evitar equívocos, eu sou so-cia-lista!”. Olhou em redor da mesa, e perante
o nosso espanto, repetiu com força: ”Eu
sou socialista! So-cia-lista! Levantou-se, cruzou os braços sobre o peito, bebeu
mais um trago de brandy, ergueu a face congestionada, e repetiu: “Abaixo o Salazar, eu sou so-cia-lis-ta”.
A discussão em torno desta inflamada declaração de princípios foi vivíssima,
sem que pudesse haver acordo quanto ao que seria realmente um socialista há 40 e tal anos. Para a
encerrar entendeu-se questionar o próprio Lopes. E soltou: "Quero uma nova conceção da Propriedade, do Trabalho, do Casamento, da
Educação, etc... em oposição às soluções dadas pela Igreja e as instituições
que as realizam e nos governam...”
Eu,
pelo menos eu, fiquei sem saber concretamente o que era um socialista, como
ainda pior fiquei com o remate do Cardoso: "Então, mais ou menos, somos todos socialistas..."
Claro
que por espírito de contradição e agitar o debate, discordamos perentoriamente
dessa tão generalizada opinião e a partir de certa altura na falta de melhores
argumentos ficamos por aí, sem pensar mais no assunto, salvo o Lopes.
Um dos “bons” hábitos que tínhamos, Lopes
incluído, era ir assistir ao domingo, pelo meio dia, ao “santo sacrifício da saída da missa”, na Igreja de Santa Cruz.
Num
determinado domingo o Lopes, sem nos avisar, arranjou um miúdo, vestiu-o com
roupa velha e usada, sujou-lhe a cara, recomendou-lhe para por o ar mais infeliz
que soubesse e foi sentá-lo num degrau à porta da Igreja, com um pires de
plástico para receber moedas. No chão e em frente colocou um cartão em que
dizia numa letra irregular: “Tenho fome, fui
abandonado pelos meus pais”.
Quando
saímos no fim da missa, passamos por um catraio a pedir esmola, tendo já no
respetivo pires algumas moedas, a que o Lopes para nosso espanto (até pecava
por ser algo forreta) acrescentou mais uma.
O
Lopes sem se denunciar, sugeriu atravessarmos a rua e vermos melhor a saída. Claro
que assim também víamos a forma como o rapaz se comportava. O Lopes esperou um
bocado até o ir buscar. Quando chegou à sua beira, encontrou-o muitíssimo
contente, pois naqueles minutos da saída da missa, tinham caído varias moedas e
até uma nota de 20 no pires de plástico, de tal modo que o catraio disse que já
não saia dali.
Tinha
recolhido mais de trinta escudos, pelo que o Lopes teve de o tirar à força e
levá-lo por uma orelha num meio de grandes protestos até nós, que não estávamos
ainda a perceber bem a cena.
Não pretendo fazer o
papel de moralista, mas a pequena moral que se pode tirar, é que no tempo do
Eça, há quarenta e tal anos, éramos como hoje “um povo de boa pessoa”, mas que se não se puser a pau é aldrabado.
Creio
que esta historia, que juro ser verdadeira, podia repetir-se hoje se fosse
possível por uma criança a pedir à porta do nosso Mosteiro. Também não quero
entrar no comentário politico, mas sabendo-se que não votei no Costa, penso que
de há quatro anos para cá também andamos a ser aldrabados e não obstante alguns
discursos mais elaborados, receio mesmo que nos levem os poucos anéis que ainda
restam, como um turismo não consistente, uma saúde e de transportes
ferroviários em rutura ou uma indústria (pelo menos em Alcobaça) que não
recupera.
Caro
Senhor Diretor Joaquim Paulo, e prezados Leitores ou deixamos de ser mesmo boas
pessoas ou temos de mudar “isto”.
quinta-feira, 13 de setembro de 2018
Não precisava de ter ido a Coimbra
NÃO PRECISAVA DE TER IDO A COIMBRA…
FLeming de OLiveira
-Sempre que vou a Lisboa em trabalho ou sozinho, e tenho que ficar para a noite, vou jantar a esse snack-bar, pelo que sou, de certo modo, já conhecido. Fui lá, no dia do recente jogo Portugal-Irão, a contar para o Mundial de Futebol.
De dentro do balcão, vinha uma voz forte, num rosto congestionado pela comoção. A conversa, com um ajudante que ia empratando, era ouvida com indiferença ou sorrisos pelos circunstantes. Tratava-se do alegado "roubo " a Portugal de um penalti, aliás reclamado insistentemente por um Português (onde já se viu isto?), Carlos Queirós.
Sentei-me ao balcão, e encomendei mecanicamente o jantar, sem olhar para a lista. De trás do balcão, sorridente e solícito, o empregado, furibundo, cumprimentou:
“Boa noite, senhor doutor ”.
Terminado o jantar, virou-se para mim com um
“Senhor doutor, o costume? "
E para o lado para o ajudante:
"Tira aí uma bica curta em chávena aquecida, para o senhor doutor e uma nata ".
E acrescentou, acolhedor:
“Estava tudo bem? "
O “senhor doutor”, que sou eu como perceberam os Leitores, estava com pressa de vir para Alcobaça, mas não resistiu à conversa cruzada que atravessava o balcão. Enquanto escorropichava a bica, saiu-me (imprudentemente):
"Aquilo, talvez tenha sido penalti ".
Ainda não tinha acabado a frase, já estava arrependido.
“Para que te metes aonde não és chamado? diz-me por vezes a minha Mulher, que sabe muito da vida, pois também foi professora durante muitos anos e lidou com meninos muito “sabidos”.
De dentro do balcão, feita súbita trincheira, o empregado empolgou-se nada discretamente:
"Penalti? Essa agora! Foi um roubo, uma vigarice, uma descarada! Queriam dar o jogo àqueles morcões? A FIFA é uma cambada de gatunos! E o Queirós não é menos, devia ter vergonha nas trombas".
Já sacudia as migalhas da nata no casaco, quando adiantei de forma supostamente salomónica:
"Cada um olha as coisas como lhe parece. Boa noite ".
Moedas deixadas sobre o balcão, fui embora. Gosto de ver um bom jogo de futebol na TV, mas não sou, nem de perto ou de longe, um entendido ou “doente”.
Foi então que ouvi, de trás da trincheira, fruto de uma comoção não contida:
"Ó senhor doutor! Para ver o que se passou, não precisava de ter ido a Coimbra! Vá mas é “multiópticas”".
-Admito, pelos olhares, de outros clientes e demais pessoal do restaurante, que terão pensado que o “senhor doutor”, é muito capaz de na próxima vez ir jantar a outro sítio.
“Afinal, não tem cada um direito a ter a sua opinião? Estamos num país livre…”, pensei para mim.
Já no carro e na autoestrada de regresso, ouvi pela rádio que para Queiroz só devia ter havido um vencedor claro: o Irão.
“Só um vencedor deveria ter surgido deste jogo e devia ter sido o Irão. Merecíamos ganhar. Sou um mau perdedor, orgulhoso, mas frustrado. Não estou de bom humor, como podem ver. Devia ter existido pelo menos mais um penálti contra Portugal, pelo menos um”.
Estamos num país livre sem dúvida, mas na dúvida vou à “multiópticas”, e não a Coimbra.
E, afinal, parece que o empregado do restaurante tinha razão, não foi mesmo penalti, e assim vou continuar a ir a este restaurante.
É a crise
É A CRISE!
Fleming de OLiveira
Pertenço a uma geração
desajustada, obrigada a saber a tabuada, aprender caligrafia, fazer redações, conhecer
os nomes dos rios, serras, linhas férreas, etc, que utilizava giz e a lousa, fazia
exames e neles tinha que provar saber e onde um sete (chumbo) era estar mais
abaixo que um cão. Levava “bolos”,
era suspenso por “manguelice” (expressão
tripeira, conforme a minha sabida origem, que significa malandrice) e expulso
do Liceu D. Manuel II por mau comportamento.
Aos sábados de tarde, marchava ao comando de Chefes de Quina como o
Lopes e desfilava no 10 de junho cantando o Hino da Mocidade (Portuguesa).
Tolhido
de raciocínio, fiquei incapaz de compreender subtilezas do mundo moderno, tenho
dificuldade em compreender as razões de certos fenómenos e situações impostas
pelo Poder, que vamos tendo.
Há dias no Centro de
Saúde uma senhora, na casa dos quarenta e picos, passou a olhar-me fixamente,
indecisa se eu era ou não. Quando perguntou e confirmou que era mesmo eu, pediu-me
se podia falar. “Claro que sim”. Está
separada do marido, é doméstica e tem problemas de relacionamento com o filho. Eu
disse-lhe que o local não era o melhor para falar de assuntos delicados, havia
pessoas à volta e não tinha a Lei à mão. A conversa foi continuando e a certa
altura referi que já atendera perguntas mais ou menos parecidas, mas uma “consulta assim, era a primeira vez”. E
acrescentei que “se o processo pegar,
vamos começar a ver advogados atendendo clientes bebendo um copo na discoteca,
padres ouvindo em confissão na esplanada do nosso Mosteiro e médicos a
auscultarem doentes no parque de estacionamento automóvel, tudo muito prático,
rápido, económico e moderno”.
Sorrimos,
eu, ela, e uma senhora que assistiu calada.
Entretanto,
fui chamado para a consulta com o Dr. José Tomás e, quando regressei à sala de
espera, ela já lá não se encontrava.
Não
muito depois, encontramo-nos na Esplanada
do Bibi e a senhora, com a familiaridade e o à vontade de um conhecimento
anterior, foi ter comigo e comentou: “Sabe
doutor a sua conversa foi muito útil, estou a dar-me muito melhor com o meu
filho, este belo rapaz que aqui vê. Mas desculpe o mau jeito do outro dia. Sabe
o que faz isto? É a crise”.
E aqui, caros leitores, está
a minha simplória contribuição sobre os tempos que correm, em termos nada sisudos
e competentes como os usados e bem pelo meu Amigo Rasquilho, neste jornal.
Quarenta e tal anos
de democracia não chegaram (nem admira, comparados com trezentos anos de
Inquisição e quase cinquenta de Estado Novo) para o “D”, Democratizar a cultura, o conhecimento ou resolver o problema
do emprego. Entretanto, uns tantos procuraram libertar o País do lastro desses ancestrais
défices científicos, educativos e sociais.
Bem
sei que em matéria de bibliotecas, arquivos, defesa do património, reabilitação
urbana, centros interpretativos, museus, etc., etc. (esta é a minha área de
devaneio) a atualidade nada tem a ver com o passado. Mas não chega para
contrariar o pedantismo da “Alta Cultura”
perante as minorias e, da “Baixa Cultura”
perante a maioria dos que pastam, se abstém de votar e já nem sequer procriam.
Trago
no bolso um caderninho onde anoto para este ou outros “apontamentos vadios”, o que me vem de fora e de dentro. É um
registo de coisas passadas ou de inspirações futuras. E, como os meus espaços
privilegiados de audição são as salas de espera ou o café, é aí a “pescaria” que recolho.
Faz-me
gargalhar (nada benevolamente, aliás) apontarem-se direitos individuais aos
pais que são violados num Sistema Judicial que demora “séculos” a despachar sobre atos essenciais, que demora anos a
decidir sobre a vida de crianças, tolhido nos meandros de leis e respostas tecnocráticas,
em gabinete. Um Sistema a rolar por uma
teia de códigos elaborados, não para promoverem a Democracia (cuja essência e
princípio sagrado é segundo aprendi uma justiça “justa”, célere, eficaz e acessível), mas para permitirem o descrédito
do estado democrático e a repulsa por algumas instituições. É por isto tudo e mais
um rol sem conta de atentados à nossa liberdade e direitos (como as listas de
espera do SNS e a concentração dirigista dos meios de comunicação, com especial
referência ao que se passa na informação das televisões), e o mundo de filhos,
afilhados, enteados e sobrinhos que têm emprego, enquanto o resto do País
vegeta, que detesto “malandragem” , e
dou o acordo a quem diz que quatro décadas de
“democracia não impediram a política de se constituir numa impostura, a arte de
conduzir os homens, enganando-os”.
O
meu Pai, republicano portuense, mas por princípio do “contra”, pouco antes de morrer, em 1994 referindo-se ao que via à
volta, dizia que tudo isso lhe metia repulsa. Lá tinha as suas razões. E os pais sabem muito…
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