terça-feira, 19 de abril de 2022

Entrevista na rádio de Cister




Tempos muito censurados - Apresentação no Museu do Vinho







UM “AMERICANO” EM S. MARTINHO DO PORTO

 

UM “AMERICANO”

EM

S. MARTINHO DO PORTO

 

“Carro americano”, ou simplesmente “americano”, foi o nome usado em Portugal para designar um meio de transporte ligeiro coletivo de passageiros, por vezes de carga, precursor do bonde, utilizado na segunda metade do século XIX. Tal como este, também se movia sobre carris, embora por tração animal. Em 1832 fazia o percurso Nova Iorque-Harlem e em 1834 circulava em Nova Orleães. O  americano” iria propagar-se pela Europa continental.

Inicialmente a linha era saliente, o que transtornava a circulação pedestre e provocava frequentes acidentes, pelo que seria substituída por carris embutidos no pavimento­.

Nas últimas décadas do séc. XIX existiram vários serviços “americanos” em Portugal, aceitando  carga e passageiros em regime de transporte público, por vezes sazonal / turístico-balnear em Braga, Coimbra, Figueira da Foz, Funchal, Lisboa, Pedernais/S. Martinho do Porto, Porto, Póvoa de Varzim/Vila do Conde.

A primeira linha de “americanos” do país, especificamente para transporte de passageiros, iniciava-se na Porta Nobre (Miragaia) e seguiria por Massarelos até à Foz do Douro e Matosinhos. Tratou-se da primeira concessão de transporte público no Porto, pelo que a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) considera-a como a sua fundação.



Muitas pessoas da nossa região desconhecem que o “americano”  funcionou por aqui, a partir de 1856  e durante cerca de 30 anos, especialmente para facilitar o escoamento de toros e madeira serrada do Pinhal de Leiria. O responsável pelo projeto da linha foi o Eng. Joaquim Simões Margiochi, neto de Francisco Simões Margioch (1774-1838) matemáticoprofessoroficial da marinha e do exército, Deputado pela Estremadura entre  1821 e 1823, que  interveio ativamente em março de 1821, na oitava sessão da Assembleia Constituinte, no debate sobre a abolição da Inquisição, de cujo projeto de lei foi o autor.

Em 1861, os carris de madeira foram substituídos por carris de ferro, importados de Inglaterra juntamente com material circulante, o que facilitou notoriamente o serviço.

O troço da via do “nosso americano”  tinha início em Pedreanes – lugar situado na orla este do Pinhal de Leiria a cerca de 2 Km a norte da Marinha Grande – e dispunha de estações na Marinha Grande –  bifurcação das atuais estradas para S. Pedro de Moel e Moita –, Martingança, Valado dos Frades, Mouchinha e  S. Martinho do Porto, numa extensão de 36 km. Para São Martinho do Porto transportava os produtos do Pinhal, com vista a embarque marítimo para Lisboa, e na volta trazia da Martingança, areia e calcário para a Real Fábrica dos Vidros, pedra e cal para construção de estradas e do edifício da Fábrica da Resinagem da Marinha Grande. Esta fábrica trabalhou de início por conta dos Serviços Florestais e a partir de 1868, arrendada a particulares. Naquelas estações também se procedia à substituição do gado.

Este transporte era composto por nove vagões, transportando cada um cerca de 4 500 kg de carga, e um de passageiros.

Segundo crónicas do tempo, havia passageiros que levavam espingardas e se entretinham a caçar nos percursos em que o comboio era mais lento, as subidas, pois que nas descidas aproveitava o seu próprio peso e era mais rápido.




O “americano” fazia carreira todos os dias úteis da semana. Demorava de Pedreanes a S. Martinho do Porto cerca de 8 horas, mas no sentido inverso cerca de 6 horas. Tendo deixado de pertencer à Administração das Matas em 1866, passou para a Direção das Obras Públicas do Distrito de Leiria. No contrato estabelecido para o ano de 1862, foi acordado o serviço de cinco boieiros (condutores/guarda de bois), sendo que apenas um deles ocupava os seus animais em permanência, e auferia a remuneração de 390 reis de junta de gado por vagão. No contrato firmado no ano seguinte com Maria Carvalha, expressamente referida como boieira de profissão, esta tinha de apresentar na estação do Valado dos Frades seis bois, às segundas, quartas e sextas-feiras, sendo o frete anual das madeiras entregue a quatro boieiros. Este contrato estipulava ainda "que cada junta será obrigada a puxar somente um vagão ganhando em cada dia trezentos e cinquenta reis" e que cada falta ao serviço implicava  a indemnização de 5.000 réis.



Várias câmaras municipais do Oeste defenderam que a linha férrea entre Lisboa e o Porto deveria circular por Torres VedrasPenicheÓbidosCaldas da RainhaAlcobaça e Leiria, contra os planos do governo central, que queria levar a linha pelo interior do país. As autarquias do Oeste argumentaram que a região precisava de boas vias de comunicação, de forma a desenvolver o seu potencial mineiro, agrícola e turístico, e que os concelhos de Santarém e Tomar, por onde o Estado queria levar o caminho de ferro, não tinham tanta prioridade, uma vez que contavam já com uma extensa rede de navegação fluvial, centrada nos rios TejoNabão e Zêzere.

Em 1885, com o início da construção da Linha do Oeste, que aproveitou parte do traçado existente e com a chegada em 1887 à Marinha Grande dos comboios a vapor, o “nosso americano”  foi desativado.

Ramalho Ortigão,  em “Banhos de Caldas e Águas Minerais” escreveu que, “De S. Martinho do Porto, onde se chega das Caldas dentro de uma hora, pode-se seguir para a Marinha Grande por um caminho de ferro americano puxado por bois nas encostas e impelido pelo seu próprio peso nos declives da estrada”.

Aquela obra – hoje algo esquecida–, é um interessante guia sobre as termas portuguesas, num tempo em que o termalismo, concretamente em Caldas da Rainha, foi recuperado como tratamento natural e fonte de saúde. Celebrando os poderes curativos e terapêuticos da água, a prosa elegante de Ramalho leva-nos em viagem pelo país, com descrições apuradas, informações que nunca se desatualizaram e um apuradíssimo recorte literário.

A Revolução Industrial, a máquina a vapor, arte e o engenho de muitos homens propiciaram no século XIX, uma mudança radical no sistema dos transportes e da mobilidade, que alastrou a todo o mundo. O Americano não tinha qualquer hipótese de se manter. Longe ficavam os tempos em que eram gastos cinco dias numa liteira carregada por animais para ir de Lisboa ao Porto e quase dia e meio na Mala-posta (cerca de 34 horas), que note-se, só em 1859 passou a ligar as duas cidades principais do país. Esta, mudava 23 vezes ao longo do percurso as duas parelhas de cavalos que puxavam a diligência.

A Mala-Posta surgiu em Portugal inserida no processo de extinção do Ofício do Correio-Mor, que durante cerca de dois séculos esteve na posse da família Gomes da Mata, passando a ser explorado pelo Estado em 1797.

Nessa altura, na maior parte dos países europeus, os correios a pé ou a cavalo já tinham dado lugar ao transporte em carruagem e abrangiam também o transporte de passageiros.

José Mascarenhas Neto, ao ser nomeado para o cargo de Superintendente Geral dos Correios e Postas do Reino, instituiu o serviço da Mala-Posta, sendo de sua autoria o Methodo para construir as Estradas de Portugal» e as «Instruções para o estabelecimento das Diligências entre Lisboa e Coimbra.

Este regulamento estabelecia, além das normas de conduta que envolviam pessoal e passageiros, os percursos, as paragens e respetivos horários nas Estalagens e Casas de Posta, que deveriam ser assinaladas com as Armas Reais.

Com Fontes Pereira de Melo no Ministério das Obras Públicas, a partir de 1852, operaram-se grandes remodelações nos serviços de comunicações. É utilizado o método Mac-Adam» na estrada Lisboa-Porto, foram adquiridas novas carruagens francesas e novos cavalos. As estações de muda também sofreram alterações, passando a ter um estilo arquitetónico tipificado e a servir para os viajantes cearem e pernoitarem.

Apesar do bom serviço que as diligências prestavam ao tempo, a sua extinção era irreversível com o aparecimento do comboio, muito embora se mantivessem em atividade durante mais algum tempo, como atestam os respetivos Manuais do Viajante da época.

O comboio foi, pois, o elemento determinante na revolução dos transportes, condicionando ou sendo condicionado pela localização de fábricas e  contribuindo em alguns casos decisivamente para o estabelecimento e desenvolvimento de novos agregados populacionais.

Aquando da introdução do caminho de ferro entre nós alguns  detratores insistiram na ideia de privilegiar o transporte fluvial, por causa dos constrangimentos que a orografia do país colocava à implantação da via férrea. 

NOTA: Foram aqui utilizados elementos de opinhaldorei. blgspot.com, de J.M. Gonçalves, de António Maduro in Cadernos de Estudos Leirienses, nº 17 – maio de 2017 e Fleming de Oliveira in Tempos Muito Censurados.

As imagens foram recolhidas em Diário Ilustrado, de 1877 e no referido blog.














Tempos muito censurados - comentário de Jorge Pereira Sampaio

 

Desde há vários anos que o Dr. Fernando Fleming de Oliveira nos tem presenteado com novas e interessantes publicações. Depois de várias décadas como advogado mas também com marcante papel no serviço público, o autor tem-se dedicado à pesquisa e divulgação de temas ligados à história de Alcobaça, desde a presença dos bóeres à implantação da República, passando por Pedro e Inês, não esquecendo um exaustivo livro sobre personalidades de Alcobaça, onde se salienta um espírito congregador e democrático, tentando abarcar uma tipologia variadíssima de personagens, num total de algumas centenas de registos biográficos.

O livro trazido agora a público congrega épocas diversificadas como o período da Inquisição e o Estado Novo - tempos muito censurados - como lhes chamou no título da obra. Ao longo de cerca de 240 páginas, numa edição cuidada, com a chancela da Hora de Ler. São muitos os subtemas que, duma forma clássica, desenvolve os cinco capítulos deste livro. Generalizando com o enquadramento nacional e além continente, chegando ao Brasil, Fleming de Oliveira não deixa, contudo, de festejar a petite-histoire, sempre saborosa de se ler, de realidades passadas em Alcobaça e na sua região. Desse modo, viajamos à presença do Rei D. Miguel em Alcobaça ou ao papel de Frei Fortunato de S. Boaventura, em tempos mais recuados, ou ficamos a conhecer um alcobacense presente na Rotunda no 28 de Maio ou a passagem do cantor e compositor Zeca Afonso como professor nesta localidade. Utilizando fontes variadíssimas, o autor constrói um livro que tem o condão de, após se começar a ler, dificilmente se conseguir parar. E é esse convite que fazemos incitando à sua leitura.