CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
(I)
Uma pequena e
necessária, observação liminar.
Não sou alcobacense, mas tripeiro assumido, vivo e trabalho em
Alcobaça (1) há mais de 40 anos Quando ali cheguei, regressado da Guiné em 20 de
Abril de 1974, cumpri todo o tempinho da
tropa, não conhecia qualquer pessoa, para além de alguns familiares de minha
Mulher.
Hoje em dia, reparto a vida entre as minhas
casas de Alcobaça e a de Montes, onde tenho interesses por via conjugal e,
quando necessário, por dever de ofício, o escritório de advocacia em Alcobaça.
As considerações que
se seguem sobre o tempo da outra senhora,
são pois fruto dos contactos que vim a estabelecer e das pessoas e amigos que
fui ouvindo, como alcobacense de adopção.
Recordo, aos mais novos, que a expressão tempo
da outra senhora é hoje, normalmente
associada ao Estado Novo (2),
tempo em que havia censura, um regime de partido único e autoritário e um
Chefe.
Esta
expressão é anterior ao 25 de Abril e terá origem nas relações domésticas. A
Senhora era a dona da casa e aí punha e dispunha. Era ela quem ditava as leis
da organização e gestão da casa, a cumprir pela criadagem. Quando a Senhora da
casa morria, havia uma nova Senhora (a filha, a nora, a nova esposa), a ditar a
organização da casa, pelo que essa organização ou gestão era, naturalmente,
diferente. E surgiu assim e naturalmente a expressão o tempo da outra senhora, distinto do atual e aqui vai ser
utilizado doravante.
Quando
muda o regime político (e concretamente o Chefe), mudam as leis, muda a forma
de organização do Estado e começa, então, a falar-se do tempo da outra senhora quando se pretende referir
a situações referentes a essa época anterior, situações essas que não existem
mais ou foram alteradas definitivamente.
O Estado Novo deu
lugar a uma literatura, combatida com brutalidade e censura, que a tentaram
abafar. Não a impediu de todo as ideias, que só podem ser abafadas com outras
ideias.
Apesar da censura não se aplicar previamente, aos livros, estes eram
apreendidos, retirados do mercado e os autores ou editores sujeitos
penalizações civis e/ou criminais. Foi o caso de Mestre Aquilino, beirão de
Terras do Demo, tão manso quanto bárbaro, terno quanto feroz, fradesco,
libertário e citadino, no dizer de Urbano Rodrigues. Quando os Lobos Uivam, é uma obra de ficção (?), saída a público em
fins de 1958, que aborda cruamente alguns aspectos do sistema jurídico-político
do Estado Novo. A outra senhora considerou
o livro injurioso para com as instituições e a autoridade, concretamente a PIDE
e os Tribunais, movendo-lhe um processo-crime, por alegados crimes de abuso de
imprensa. (3)
O MP acusou Aquilino Ribeiro, que se
autoconsiderava um obreiro das letras,
de crimes contra o bom nome de Portugal, de fazer a apologia de actos contra a
Segurança do Estado, de injúrias, de ofensa à honra de agentes de autoridade e
de abuso de liberdade de imprensa. Aquilino suscitou exuberantemente a crítica
ao funcionamento do sistema judicial, considerando a acusação uma questão
meramente política.
Em Portugal, correu um abaixo-assinado
subscrito por cerca de 300 intelectuais, a reclamar o arquivamento do processo.
Em França, onde Aquilino era o escritor português mais referenciado da época,
François Mauriac (4), escreveu em
sua defesa.
Em ambos os casos, sem sucesso.
Sem se intimidar, Aquilino declarou que sou um pouco como os velhos robles de cerne
revesso. Não consinto machadada. A machadada salta muitas vezes na mão de quem
a maneja contra tais árvores.
Com 74 anos de idade, Aquilino Ribeiro,
viu-se em 1959 arrostado à barra do Tribunal Criminal Plenário de Lisboa,
acusado de Delito de Opinião. A acusação assentava no argumento que a censura tem impedir a subversão da opinião
pública e deverá ser exercida por forma a defende-la de todos os factores que a
desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem
comum !!!
Para o seu Advogado, mais do que provar umas pretensas ofensas a tais e tais pessoas ou
denunciar um ataque a certa estrutura política, o que parece procurar-se é
coarctar o direito de um escritor fazer qualquer obra de ficção em que por
transposição imaginativa tome posição acerca dos problemas que respeitem ao
meio em que está integrado. Quer dizer, pretende-se relegar o artista à
situação de simples escrevinhador de histórias, que não têm outra função senão
a de divertir o bom burguês satisfeito com a vida e com o mundo. Acabar-se-á de
uma vez para sempre com a liberdade de pensar, e ninguém pense mais em emitir
juízos quanto à sociedade em que vive, passando todas as estruturas a ser
inatacavelmente perfeitas, e nelas tudo correndo panglossicamente (5) pelo
melhor. Seria o último estádio de um lento processo com fim de esmagar toda e
qualquer manifestação de inteligência, de aniquilar o indivíduo como ser
pensante e de o acorrentar bovino e passivo ao arado de que o Poder segura a
rabiça. A obra literária, tornada meio de embrutecimento e de nirvanação, iria
caindo aos poucos num formalismo académico, num anedotário para bacocos, todas
as formas destituídas, a preceito, de conteúdo. E adeus literatura, adeus
cultura, adeus personalidade nacional (…)
A advocacia nos Tribunais
Criminais Plenários (6) era no tempo
da outra senhora difícil e perigosa.
Poder-se-ia falar de muitos casos, mas o que implicou o Dr. Manuel João da
Palma Carlos (7), (irmão do
Professor Doutor Adelino Palma Carlos), teve especial repercussão no meio. Ouvi
falar dele, pela primeira vez, ainda estudante liceal, através do conhecido
Advogado portuense, Dr. Artur Santos Silva, pai do Dr. Artur Santos Silva (fundador do BPI e antigo Administrador da
Gulbenkian).
Palma Carlos defendia no Tribunal Criminal
Plenário de Lisboa, alguns acusados, que aliás se encontravam em cumprimento de
penas, salvo um tal Humberto Lopes, em liberdade sob caução, acusados de
pertencerem a uma célula comunista, a funcionar dentro do Forte/Prisão de
Peniche.
Após a leitura da sentença, Palma Carlos
requereu que o seu constituinte continuasse em liberdade e, como o tribunal
indeferiu a pretensão, pretendeu ditar para acta um requerimento no sentido de
ser explicitada a razão do indeferimento, alicerçada na suposta e pretensa perigosidade
do réu. A verdade é que, tanto para o MP, como para os juízes Desembargadores,
nada mais havia a explicar, a acrescentar, pois desde logo, o requerimento não tinha pertinência e, em
consequência, nem iria ficar registado em acta.
Palma Carlos, Advogado corajoso, afirmou em
alto e bom som que podem V. Exªs julgar
como lhes apetecer, com prova ou sem prova, mas o que não podem é deixar de
consignar na acta, o que na audiência se passa.
O juiz-presidente, (Desembargador, tal como
os asas do coletivo, dois presidentes dos juízos criminais das respectivas comarcas, considerou gravemente impróprias, ofensivas, tais
palavras pelo que logo instaurou ao Advogado um processo sumaríssimo, de modo a
ser imediatamente julgado, como aconteceu.
No regime do Estado Novo e nos Tribunais
Plenários, era admissível/possível passar, sem transição, de advogado ou até de
testemunha a réu, ver decidir com arbitrariedade, eliminado da ata o que não
fosse conveniente, mandar expulsar e recolher aos calabouços os réus que
pretendessem exprimir-se com alguma liberdade. O tribunal considerando
ofensivas as expressões de Palma Carlos condenou-o a sete meses de prisão, a
igual período de multa a 40$00 por dia, a um ano de proibição do exercício da
advocacia, contado este após cumprida a pena de prisão. Em recurso, que subiu
diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, veio a decisão a ser parcialmente
revogada, no referente à pena de prisão, bem como à proibição do exercício da
advocacia. A pena de multa manteve-se, pelo que Palma Carlos tendo-se
recusado (por questão de princípio) a
pagá-la, iria cumprir a pena de prisão, pelo que veio a quantia a ser suportada
pela Ordem dos Advogados.
Voltando a Aquilino Ribeiro, sou de opinião
acompanhando os melhores críticos que a sua escrita, caracteriza-se por uma excepcional riqueza lexicológica e pelo uso de
uma linguagem de matriz popular, plena de provincianismos, o que nem sempre a
torna acessível. Óscar Lopes escreveu que Aquilino só pode ser lido com um dicionário na mão, pois há fuga ao termo e ao giro frásico, que não
evita que se não estivermos divorciados
do povo rural, meçamos o alcance do vocabulário. Aquilino foi um estilista
e, por isso, a linguagem vernácula, sem
estrangeirismos, e arejada, é frequentemente condimentada com expressões que
oscilam entre o grotesco e a sátira. Apesar de ter optado por uma
literatura de tradição, Aquilino Ribeiro procurou ao longo da vida uma
renovação contínua de temas e processos, tornando-se difícil sistematizar a
temática da sua vasta obra, desde a biografia à polémica, das memórias ao
jornalismo, da crónica à literatura infantil. Num número considerável de obras,
Aquilino reflete cenas da sua vida, como o convívio com as pessoas do campo,
especialmente das Beiras, a educação ministrada pelos padres, as múltiplas
conspirações políticas, as prisões, as fugas rocambolescas ou os exílios. O
leitor vê-se envolvido com as personagens beirãs, seus costumes, tradições e
modo de falar.
Aquilino Ribeiro, não obstante o seu fundo
regionalista, não era um provinciano.
Para José Augusto França, in Os Anos 20 em Portugal, estudo de factos
sociopolíticos (1992) Aquilino Ribeiro era
um serrano, com a sua pátria própria, nas terras de Sernancelhe, tanto como em
Paris com uma prática sem deslumbramento, assumindo-se mesmo pitorescamente no
sorver ruidoso da sopa, como amigos de
então o recordavam, ao mesmo tempo que lia entusiasmadamente Anatole France. (8)
Em 1963, a Sociedade Portuguesa de Escritores, presidida por Ferreira de Castro, (9) tomou a iniciativa de comemorar o
cinquentenário da carreira literária de Aquilino, mas este faleceu pouco antes.
Ferreira de Castro antecipava, a homenagem nacional que, em 19 de setembro de
2007, se traduziu na transferência dos restos mortais, do Cemitério dos Prazeres
para o Panteão Nacional. A data foi escolhida porque, em 2007, se comemoraram
os 50 anos da publicação de A Casa Grande
de Romarigães. A honra foi-lhe concedida pela Assembleia da República,
sendo este o quarto português a ser transladado para o Panteão Nacional, depois
de Humberto Delgado (1990), Amália Rodrigues (2001) e Manuel de Arriaga (2004).
Hoje, talvez haja menos gente a ler Aquilino
Ribeiro, mas como diz Gonçalo M. Tavares, a
literatura não existe sem o que está para trás. Espante-se que, ao invés de
outros escritores, menores nenhum
texto de Aquilino é de leitura obrigatória nos manuais escolares de português.
Recordo, salvo erro, que a minha primeira leitura de Aquilino, ocorreu no
antigo quarto ano do liceu, numa Selecta Literária. Aquilino desapareceu dos
manuais escolares do regime democrático.
Nem tudo foram elogios a Aquilino Ribeiro,
aquando da transladação, tendo havido alguma contestação, embora localizada e
sem desenvolvimento.
Muitos mais que desafiaram a censura no tempo da outra senhora poderiam ser aqui
citados, num rol sem conta.
A repressão da cultura e dos seus obreiros
nas várias e distintas facetas, constituiu uma saga feroz, que só terminou
quando o regime caiu. O Lápis Azul
riscou notícias, livros, letras de fados ou peças de teatro, apagou anúncios
publicitários, caricaturas e pinturas de parede. É vulgar associar-se a Censura
a cortes parciais, por vezes totais, nas provas de tipografia, a que os jornais
estavam obrigados, antes da publicação. Mas a Censura também atuava, impondo a
publicação das chamadas Notas Oficiosas. Há
escritores e editores que as recordam como uma violência terrível, a obrigatoriedade de publicar as notas oficiosas,
ou seja o jornal não tinha direito de omitir a publicação. Salazar confrontado
uma vez com esta situação de intromissão, argumentou que não sei precisamente o que se passou (…). Fui consultado, quando se recusou a publicação (…). É claro que V. Exª poderia reclamar, e
teria por si a lei, se a nota excedia as dimensões comuns. Se o tivesse feito
certamente obteria justiça ou prescindindo-se da publicação (…), ou ordenando-se a sua publicação por partes
em dias sucessivos, ou ainda pagando o custo excedente. Devo, porém, dizer que não tem sido preciso
obrigar nenhum periódico a publicar as notas do governo, mesmo as mais
extensas: todos têm prestado esse serviço, voluntariamente.
A Constituição de 1975 aboliu, formal e
totalmente a censura.
O
Lápis Azul
começou, como escudo de proteção do
golpe de Gomes da Costa (1926), e, pouco a pouco, foi-se transformando numa
espécie de guardião do tríptico Deus,
Pátria e Família. Menos de um mês após o golpe militar, foi instituído o
regime de Censura Prévia,
alegadamente como medida transitória, enquadrada na suspensão das garantias
constitucionais da I República. A 24 de Junho de 1926, os jornais passaram a
anunciar que este número foi visado pela
Comissão de Censura, tinham de remeter quatro provas para a Comissão e não
podiam deixar espaços em branco, após os cortes. Gomes da Costa havia anunciado
que não estava disposto a criar a censura à imprensa, pelo menos enquanto os jornais não me incomodarem.
Apesar dos diplomas enunciarem que a todos é lícito manifestar livremente o seu
pensamento por meio da imprensa, o regime de censura prévia militar, manteve-se até ao fim da Ditadura, isto é,
com a entrada em vigor da Constituição de 1933.
Em breve, começaram a surgir os jornais
clandestinos e a 16 de Abril de 1927 um diploma sujeitou, a processo sumário, o
julgamento de delitos de imprensa, como a
publicação de notícias tendenciosas ou de propaganda subversiva.
Era com o Lápis Azul que os censores encartados decidiam o que o país poderia/
deveria/ mereceria…) saber. O próprio movimento iniciado em 25 de Abril de
1974, ainda foi objeto de tentativa de censura, mas tratou-se do último
estertor desta.
O Lápis
Azul foi quebrado e hoje em dia, passados 40 e tal anos sobre o 25 de
Abril, vive-se o maior período seguido de liberdade de imprensa, de expressão,
da história da República Portuguesa, mau grado alguns incidentes pontuais.
A liberdade de imprensa ou de expressão não
foi, uma constante da nossa História. Antes pelo contrário. Mas, de tão
natural, esta respiração de liberdade, faz-nos hoje esquecer um dos
instrumentos mais pesados da nossa História recente. As gerações após o 25 de
Abril, dificilmente compreenderão, o que foi viver sob um regime de Censura. Só
os portugueses de meia-idade ou mais, se lembram ou percebem como era antes,
tal como a necessidade de licença de porte de isqueiro para alegadamente proteger a indústria nacional de fósforos, até à
Coca-Cola, que se bebia livremente em África, muito concretamente no
seio das Forças Armadas, e cujo consumo era proibido na Metrópole.
Uma rolha na boca. Uns
óculos na ponta do nariz. O jornalista não pode falar, pois tem ainda uma faca
à cabeça e uma tesoura aberta entalada no pescoço. Na lâmina da tesoura, lê-se Lei de Imprensa. Era a pena de Francisco
Valença, que ocupou primeiras páginas, e desenhou uma caricatura alusiva à Censura Prévia, no semanário humorístico
Sempre Fixe, em 8 de Julho de 1926,
acompanhada de um pequeno texto, na
impossibilidade de desenharmos e escrevermos no Diário do Governo, teremos de
transformar o Sempre Fixe em jornal de modas. Já temos mesmo uma linda colecção
de figurinos de dolmans, calças à Chantilly, capotes, etc., para a presente
estação. Vamos desbancar o Depósito de Fardamentos!
A Constituição de 1933, não obstante consignar a garantia da liberdade de expressão do
pensamento, afirmava a seguir que leis especiais a irão regular, de forma a
impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua
função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos.
A Direcção dos Serviços de Censura poderia
recusar, o nome do director do jornal, de forma mais ou menos discricionária.
A Censura suprimiu a
última e dramática crónica de Mário Neves, para o Diário de Lisboa, a propósito da Guerra Civil de Espanha. Enviada
telefonicamente de Badajoz, após o massacre da Praça de Touros, ela só viria a
ser divulgada em Portugal, depois do 25 de Abril.
Em 15 de Agosto de 1936, o Diário de Lisboa publicou um texto da
autoria do seu enviado, testemunhando a tomada de Badajoz pelas tropas de
Franco. Badajoz está entregue aos
legionários e aos regulares marroquinos, que levavam a cabo cenas de desolação e horror.
Foi essa a derradeira oportunidade de Mário
Neves contar aos portugueses o que se passava, pois que doravante a sua crónica
seria totalmente censurada e não mais publicada.
De acordo com Mário Neves, vou partir. Quero deixar Badajoz, custe o
que custar, o mais depressa possível e com a solene promessa à minha própria
consciência de que não mais voltarei aqui, começava assim a
crónica-reportagem, a última, que relatava os horrores provocados pela entrada
das tropas nacionalistas naquela cidade.
A censura proibiu a circulação em Portugal da revista
americana Time, por dela constar um
artigo tido por pouco elogioso do Regime. O motivo direto foi capa, onde
Salazar era apresentado como o decano dos ditadores, ao lado de uma maçã podre,
bichada (10).
Pelo crivo da censura, passavam antes da sua
exibição, os guiões de peças teatrais, e a arte.
A revista Travessa da Espera, com estreia marcada para Dezembro de 1945, no
Teatro Maria Vitória, ao Parque Mayer, viu cortados pela censura, 2/3 do seu
texto. Um dos atores veio a ser repreendido e punido, por ter proferido não
obstante diálogos cortados.
Para além dos guiões, os textos de
divulgação das peças, eram também objecto de censura. Em comunicado, a PSP do
Porto, informou o Circulo de Cultura
Teatral, do Teatro Experimental do Porto, da apreensão decorrida a 18 de
Março de 1972 de cartazes publicitando A
Casa de Bernarda Alba, de Lorca, pois o cartaz exibia uma mulher nua, da
cintura para cima.
Há o caso de censura
na pintura, onde é retratado o Assalto ao
Santa Maria. Para escapar à censura, o quadro recebeu o título de S.M. O
episódio, ocorrido em 1961, como muitos se recordam foi protagonizado por
Henrique Galvão, que nas Caraíbas com um comando luso-espanhol, tomou de
assalto o navio português, declarando-o espaço português independente do
Governo, com o intuito de chamar a atenção dos media internacionais, para a situação política portuguesa, e também
espanhola. O assunto foi amplamente noticiado na comunicação social
internacional, mas em Portugal a informação limitou-se à versão oficial dos
acontecimentos.
CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
FLeming de Oliveira
(II)
O Diário Popular, em
Agosto de 1947, foi multado em 200$00, por ter publicado uma notícia sobre a
ex-Rainha de Itália, em moldes reputados desrespeitosos (11).
Que termos impróprios eram esses? A mulher de Humberto de Itália foi
autorizada a viver na Suíça. O Ministério dos Negócios Estrangeiros anunciou
que concedeu autorização a Maria José, da Itália, esposa do ex-rei Humberto, e
a dois filhos para residirem na Suíça. Acrescentava que Humberto da Itália não pediu autorização
para viver na Suíça, mas se o fizesse seria rejeitado.
O Estado
Novo, ainda antes da II Guerra, havia começado a investir no turismo balnear,
um pouco em detrimento do tradicional turismo termal, como forma de captar
receitas e divisas. As praias, por excelência, eram a Costa do Estoril,
Figueira da Foz, Espinho e Póvoa de Varzim. Até o Algarve, zona periférica, se
tornar o grande fator de atração, iria mediar muito tempo. O desenvolvimento do
turismo, acarretou alterações nos hábitos e na moral nacionais. A praia, o sol
e o calor, estavam conotados como uma vida menos regrada, mais despretensiosa
ou liberal. Apesar dos apelos e de alguma condescendência, involuntária, aos
novos hábitos, o Salazarismo, continuava a impor uma moral puritana, por
alguns, ainda que não especialmente progressistas, tida por obsoleta.
O País sofreu um choque com a chegada da
vaga de refugiados, cujos hábitos e cultura eram bem diferentes. Ainda me
lembro de ouvir dizer no conservador Norte de Portugal, com ar galhofeiro, e
depreciativo, que a esplanada da Pastelaria Suíça/Lisboa, nos tempos da II
Guerra era conhecida como a nossa BONPERNASSA,
pela relação com a exibição de pernas de mulheres, que até fumavam em público.
O
Dec. Lei nº 31247, de 1941, afixado em editais pelas capitanias marítimas,
havia imposto às senhoras, sob pena de multa, um fato de banho adequado, inteiro, sem descobrir os seios, com costas
decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido nas axilas, os homens
calção justo à perna e reforço da parte da frente cobrindo o ventre, o que
dava muita canseira aos zelosos cabos-do-mar, autoridade vestida de branco da
cabeça (boné) aos pés (sapatos), envolvidas nas praias, qual
jogo de gato e rato. Num país com um regime que obrigava as professoras
primárias
a pedir autorização ao governo para casar, as mulheres a ter autorização do
marido para exercer comércio ou ir ao estrangeiro, não é de espantar que a
indumentária das pessoas fosse regulamentada, não sendo permitidos modelos
considerados ousados. Tudo, enfim, em nome da moral e dos bons costumes. Ou,
como justificava o Decreto-Lei, relativo aos fatos de banho, para salvaguarda daquele mínimo de condições de
decência que as concepções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados
ainda, felizmente, não dispensam. Por essa altura, o jornal Os Ridículos, publicou a caricatura de
um cabo do mar, devidamente uniformizado, utilizando uma fita métrica para
medir uma banhista de formas generosas e
arredondadas, com o comentário que os
fatos-de-banho, das senhoras, não podem ter menos de de metro e meio de pano
nas costas. Segundo preconizava a Mocidade
Portuguesa Feminina, que pretendia guiar por bom caminho as mulheres de
Portugal e criara um modelo oficial, os
fatos de banho femininos, excessivamente curtos e decotados, de fazendas leves
e cores muito claras eram proibidos
pela moral cristã. Ainda pré-adolescente, lembro-me de usar um
fato-de-banho com calção quase até aos joelhos, com uma saia dianteira que
ocultasse eventuais entusiasmos viris
e uma camiseta de alças, à moda dos antigos olímpicos, que tapasse algum pêlo
que, ousadamente, despontasse no peito.
O cabo de mar, era o
fiscal intransigente na defesa da moral. Hoje, se alguém se apresentasse numa
praia portuguesa, nos preparos que a lei então prescrevia, seria alvo de
suspeita e não por parte de um polícia, mas de um psiquiatra, duvidoso da
sanidade mental. As regras que impunham rigorosa decência no vestuário
continuaram por vários anos. Mas, com o correr do tempo, inevitavelmente foram
sendo postas em causa. Para isso, muito contribuiu o turismo que, na década de
1960, começou a procurar o nosso país como local de veraneio, em que cada vez
mais, apareciam ingleses, franceses, holandeses e alemães, com indumentárias
ousadas para os padrões e costumes nacionais.
Foi, recorde-se, a
época da mini-saia, a britânica Mary Quant e do biquini, das longas e
despenteadas cabeleiras para os rapazes (beatlemania). E se alguma boa gente, ainda se escandalizava com a
pouca-vergonha das vestimentas dos estrangeiros, outros, especialmente a
juventude, adoptavam alegremente as novas modas.
O nazareno Manel
Bexiga, recordou-me o caso, ocorrido nos primeiros anos da década de 1960. Se é
verídico ou anedota não posso atestar. Conta que pela Nazaré apareceram umas
francesas, de biquíni (12), num
areal onde as portuguesas só usavam fato-de-banho.
Então o cabo do mar
foi falar com elas, tentando, com as poucas palavras que sabia no francês que
aprendeu com a irmã concierge em
Paris, explicar-lhes que na Nazaré, só era permitido usar fato-de-banho de uma
peça. Só uma peça, uma só, tentava o
pobre homem explicar. Então as francesas disseram que sim, tinham compreendido
bem, só não sabiam era qual das duas
peças era para tirar.
Quando as férias
eram um mês de praia, com casa e barraca alugadas, metade do Ribatejo e
Estremadura mudava-se para a Nazaré, apesar de água frias, com o inevitável
picadeiro, a lota, e o grande promontório do Sítio. Havia, nesta praia e outras
como a Figueira da Foz, um certo charme de gente fina, uma nova burguesia que
se querendo afirmar como distinta, adotava estereótipos em voga.
A praia, era o palco
por excelência da infância e adolescência, e despertava o imaginário para a
vida, ao mesmo tempo que singrava nas ondas da água ou nas da areia. À beira
das barracas listadas a azul ou a verde, quando a tarde esmorecia e a brisa se
levantava, jogava-se o prego, o anelinho ou o ring. Acertar com o anel de
borracha na eleita, pertencia ao ritual da iniciação. Quando as gaivotas voavam
atras das traineiras que regressavam, com o sol a queimar de oiro a babugem das
ondas, sentados na areia, passavam no grupo, segredos, afagos de mão ou beijos
castos, sempre recusados em alarido ao dono da prenda que está para sair.
Enquanto as mães de
família com os penteados alteados e enformados, metidas em vestidos já
graciosamente decotados, abanavam os leques para fazer frente aos caloraços, e matavam o tempo bebericando
um chá ou um refresco à espera do consorte. As raparigas exibiam vestidos
camiseiros, de godé, nylons ululantes, meias de seda, de vidro como se dizia,
realçando a curvatura da perna depilada que se vinha calçar no sapatinho.
Muitos rapazes trajavam de branco, calça, camisa e sapatos.
Rapazes e meninas espigavam
na hora do picadeiro,após o jantar, andando para cá e para lá, olhares melados
no momento de cruzarem, ancorados nas regras da civilidade e etiqueta. As mães
pensavam que tendo as filhas debaixo de olho podiam adormecer sossegadas. Dos
pais sabia-se que mantinham as aparências e talvez rezassem pela virgindade das
filhas. Tudo funcionava regularmente, como convinha à outra senhora.
Mas o tempo tudo
muda.
A Bolacha Americana era doce e torradinha,
redonda e de reticulado impresso. Porquê americana?
Soava a Liberdade, mas não sabia a Liberdade.
Os vendedores de barquilhos, eram os homens da lata
cilíndrica vermelha que transportavam às costas com uma espécie de roleta na
tampa. Na marcha sobre a areia quente, ouvia-se também um olha a Língua da Sogra, neste caso sem adjectivos, como convinha.
Não eram para matar a fome, esculpiam apenas a gulodice.
Eram muito semelhantes no açúcar e na
consistência, mas esta parecia transportar algo entre brejeirice e anedotário.
Virara espátula recurvada e longa, comida a dentadinhas demoradas.
Recentemente, na praia, vi um homem das Bolas de Berlim. Estava com os netos.
Não pensei duas vezes. Chamamos e pedimos umas bolas, mas foi uma profunda
desilusão. O homem não tinha bolas com creme e vendeu-nos umas algo secas, pela
qual não obstante cobrou um euro por cada.
Afinal, a praia
também mudou. Longe vão as Bolas de
Berlim fresquinhas ou os caracóis,
como apregoavam as mulheres fardadas de branco que, de manhã à noite,
caminhavam na areia, com as caixas de lata à cabeça.
Não há mais cabo do mar, vendedores de
barquilhos, nem o homem do Olhó Rajá
Fresquinho, factos importantes, na praia da minha adolescência.
Sempre que aparecia, um mundo de gente pequena,
abeirava-se dele. Era o Catitinha,
figura típica e algo misteriosa, um homenzarrão velhote de longas barbas, que
percorria as praias do país do Minho ao Algarve, brincava com os miúdos e tinha
um apito para chamá-los. Nunca o vi pedir, mas também nunca o vi com fome. Pode
ser que tudo isso tenha acontecido mas, possivelmente não faltava quem lhe
tapasse a fome e o frio, porque todo já antes o tinham ouvido. Ninguém lhe
pagava, ninguém lhe agradecia. Não estava
muito tempo no mesmo sítio. De repente, sem que nada o fizesse prever,
anunciava a partida, e lá ia. Vim a referenciá-lo, mais tarde, noutras terras,
sobretudo da beira-mar. O Catitinha,
para muitos, era uma instituição, um avô de todos. Desse tempo (minha pré
adolescência), recordo que se dizia que a sua inquietude, que o levava a
andar de terra em terra, como fugido de alguém ou da própria sombra, se devia
ao facto de ter perdido uma filha, por atropelamento ou levada pelas ondas do
mar. Muitas das coisas que se contavam
acerca dele, nunca terão passado de mitos, que possivelmente até o próprio
alimentou, a fim de manter aquela áurea de mistério que havia em redor da sua
pessoa, o que lhe permitiria manter o seu modo de vida. Mais tarde,
vim a saber (?) que o Catitinha
havia nascido em Torres Novas. Formou-se em Direito e exerceu a profissão de
notário até ao dia em que morreu a única filha. Mas há quem defenda, possivelmente também sem grande rigor, que nunca se formou em Direito ou coisa parecida.
Quando muito, teria o equivalente a instrução primária. Notário não foi, mas
sim padeiro, entre outras profissões (até cavaleiro tauromáquico). É verdade (talvez a única) que a sua única filha
morreu.
Em 1955, O Alcoa, de
22 de Setembro, na primeira página e com destaque, sob a epígrafe de Decência e Moralidade nas Praias-Escárnio da
Autoridade e Inimigo da Pátria, alertava os leitores sob a pena de um tal
M.J., exprimindo um forte grito de
desabafo de um banhista da Nazaré, para o despertar da nova realidade de
impudor que alastrava, parecendo que os homens entravam em competição
desenfreada com as mulheres. (…) Como é
possível isto em Portugal? E a nossa surpresa não tem limites, quando somos
informados que neste nosso País existe lei, muito clara e categórica, que desce até à determinação da qualidade,
dimensões, e locais de uso dos fatos de banho, não deixando de mencionar as
graves penas em que incorrem os transgressores (…). Afinal para quê? Para que quem chegue verifique, que grande parte,
talvez a maior parte dos banhistas, se apresentam na praia e até fora dela,
desacatando as ordens legais e a autoridade. Efectivamente, fez-se tudo quanto
podia para o desprestígio da autoridade e para sancionar o libérrimo reinado da
tanga (…).
A vida muda, embora por momentos isso pareça
acarretar desconforto.
Nos meses de Julho e Agosto já lã vão
mais de cinquenta anos, era habitual ao Manuel de Sousa, ir com o irmão à praia
da Nazaré. No final do dia era o grande momento do banho, quando a maior parte
dos banhistas já enrolava as toalhas, se despia nas barracas às riscas, e o sol
pintava no horizonte as suas cores de postal ilustrado. Iam para a Nazaré só
depois do almoço, apanhando uma boleia pois de manhã ajudavam em casa.
Aos fins de semana, o Manuel e o irmão mais
novo iam apertadinhos com os pais num pequeno Morris preto de duas portas, bem
como o proeminente abdómen do amigo, o
senhor Manuel eletricista, com que este enfrentava as vagas mais alterosas
do mar no intuito, presumiam na sua ingenuidade, de o reduzir a estéticas
proporções, não escapando entretanto,
por isso, ao epíteto de barriguinhas, com
que era o mimado. Nesses dias, iam de manhã, alugavam uma barraca, onde comiam
o almoço levado de casa.
A meio da tarde, cumpridos os processos
digestivos e metabólicos que aliviavam o estômago e por vezes os intestinos,
Manuel e o irmão afilavam as orelhas tentando antecipar o pregão do homem dos
gelados, Olh’ó Rajá fresquinho, olh’ó
Rajá fresquinho, estão a chamar, a chamar por mim, mas eu já lá vou! Outras
vezes eram as batatas fritas, comidas de permeio com os grãos de areia que a
sofreguidão não deixava limpar das mãos. Ou ainda os barquilhos, também
chamados língua da sogra. Estas são
uma imagem mágica que Manuel de Sousa retém da infância e início da
adolescência. A voz distorcida pela corneta despoletava nos garotos uma
tentação irresistível, pais, avós, vizinha, não importava quem, alguém tinha
que soltar uma moedinha para comprar língua da sogra. Ninguém sabia quando, nem
donde saía o homem com a lata às costas e a corneta na boca. Manuel de Sousa
sabia apenas que a lata era como uma arca do tesouro. Vestido de branco ao
longo dos quilómetros da areia, o homem dos barquilhos, carregava suadamente o
cilindro com roleta na tampa, que oferecia o acaso do número das bolachinhas
cónicas, umas sobre as outras, no rodopio da palheta a raspar a gradinha. Barquilheiro! apregoava ele a prolongar
a penúltima sílaba. A estas, havia direito em maior ou menor quantidade,
conforme o número que a roleta situada na tampa do enorme balde vermelho de
metal ditava. Qualquer que fosse o número da sorte, cada rodada custava cinco
tostões. Manel e o irmão mais que uma vez pediam ao pai uma moedita, faziam
girar a roda da sorte e saíam-lhes frequentemente, ao todo (a roleta não
estaria viciada?), cinco barquilhos para os dois.
Os vendedores de gelados também eram uma
constante na avenida marginal. Tocavam freneticamente a campainha do triciclo
anunciando o gelado de vários paladares com um fruta ó chocolate. O cone mais pequeno custava $50 e o maior
um escudo.
Quase ao pôr-do-sol a família Sousa e o
Manel electricista faziam o caminho
inverso para Aljubarrota, muito bem apertados no Morris. A roupa encostada ao
corpo queimado pelo sol, arranhava a pele do Manel, mas era uma gostosa
sensação.
No próximo fim de semana, lá estariam todos,
se Deus quiser e o tempo ajudar.
CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
FLeming de Oliveira
(III)
A GNR de Alcobaça,
nos anos sessenta, como recorda o ex GNR Hermínio Martins de Oliveira,
atualmente industrial, chegou a receber mandados para captura do Gen. Humberto
Delgado, quando viesse à casa, que tinha na Cela Velha (13). Com esse objetivo chegaram a sair algumas patrulhas,
integrando-se nelas o sold. Hermínio Oliveira. O Gen. Delgado foi visto a
entrar ou sair da casa, mas, respeitando-o (sem
perder de vista o sentido hierárquico e da autoridade), a patrulha da GNR
nunca tomou qualquer iniciativa e ao regressar ao Posto, e tendo de apresentar
o respectivo relatório escrito, fazia consignar que a pessoa em causa, não fora vista, nem encontrada. Estes mandatos,
expedidos do Tribunal de Alcobaça, repetiam-se ciclicamente, mas, Hermínio
Oliveira reclama-se de não ter tomado nenhuma atitude hostil relativamente ao Gen. Delgado, que apesar de ser um político
da oposição, isto é contra a Situação que a GNR defendia, era considerado,
antes do mais, uma pessoa de bem, afável, de respeito, um oficial general, uma
autoridade importante.
Mas a GNR não procedia desta maneira
respeitosa, para com toda a gente. Embora não fosse prática
reconhecida/aprovada, a corporação utilizava, com frequência, meios musculados.
Conte-se um caso a título de mero exemplo.
Há mais de 50 anos, era conhecido na GNR da
vila de Alcobaça, um indivíduo das redondezas, que embriagado, mas nem sempre,
seviciava a mulher. Esta ia queixar-se ao Posto, e exibia as marcas negras no
rosto, cabeça, tórax ou peito. A GNR, lavrava o auto e mandava-o para o
Tribunal. A mulher perdoava-lhe até à
próxima, que não demorava acontecer. Um dia, a mulher apareceu no Posto a
contar (desvairada), que o marido tentara mete-la dentro do forno aceso,
enquanto cozia o pão. A mulher salvou-se, ficou com os cabelos, rosto e roupa
bastante chamuscados e em estado de choque. Trazido o marido ao Posto, foi mais
uma vez enviado ao Tribunal (logo mimado),
escoltado pelo sold. Hermínio Oliveira. O juiz após o ouvir o arguido, chamou o
agente de parte, a quem disse para o levarem para o Posto, lhe fizessem justiça, depois
o mandassem embora, pois que, quaisquer novas condenações, já não produziam
efeito. A prisão, em vez de o endireitar, ainda o fazia mais malandro. Hermínio
Oliveira percebeu a mensagem, levou o homem para o Posto, e apresentou o caso
ao comandante Sarg. Barbosa. Este começou por pô-lo de joelhos e dar-lhe alguns
safanões e tabefes, bem aviados. Em seguida, disse-lhe de
dedo em riste que tomasse bem nota, pois
que nunca mais a mulher apresentasse queixa no Posto e que para que isso não
voltasse a acontecer, por via de dúvidas ele mudasse de Concelho, não mais
chateasse a GNR de Alcobaça, nunca mais lhe batesse, pois que se ela lá voltasse
não havia quem lhe valesse, ele ficava definitivamente estendido no chão.
Ao ouvir isto, o homem tomou consciência da situação, saiu a correr do Posto
com um valente pontapé no traseiro, perante a galhofa e uma assuada dos
guardas, tanto que até as abas do casaco
se abriam como as asas de um pombo. Remédio santo, nunca mais a mulher
apareceu no Posto. O antigo GNR Oliveira, acrescentou que esses tratamentos
eram eficazes, davam resultado, mas reconhece que hoje não podiam ser
prescritos.
A cultura
da bofetada tem vindo a cair em desuso, sem prejuízo de muito investigador
considerar que a ameaça é, ainda, um excelente instrumento para sacar uma
confissão mais difícil.
Voltando a Hermínio Oliveira, contou-me o
caso do agricultor de Turquel que apresentou queixa que lhe tinham roubado duas
vacas. O Posto, transmitiu a informação, por telégrafo, ao Comando Geral, em
Lisboa, o qual, por sua vez, a difundiu pelos demais Postos do País, dando
instruções para que, nas feiras de gado e matadouros fosse averiguado, se eram
encontradas vacas, com as características que o queixoso tinha indicado. Na
Feira da Malveira, cerca de uma semana depois, foram encontrados dois animais,
com características muito semelhantes aos que tinham sido furtados em Turquel.
Quando a GNR local se aproximou dos dois indivíduos que estavam com os animais
e se preparavam para os vender, um deles conseguiu fugir, enquanto que o outro,
foi segurado de imediato por populares. A GNR da Malveira, transmitiu a
Alcobaça o que tinha ocorrido, que se encontrava detido um indivíduo, pelo que
seria conveniente, que o queixoso se deslocasse lá, para confirmar a situação e
reconhecer o gado. O turquelense reconheceu o gado, e a chorar de alegria,
alugou uma camioneta para o trazer de volta. O detido veio com a GNR para
Alcobaça e chegado, iniciou-se o interrogatório pelo Sarg. Barbosa, que
previamente fungou e arregaçou as mangas.
O homem começou por defender-se, dizendo que os animais tinham sido comprados
por ele e um amigo, a um cigano que não conheciam, etc, etc.. Como o Sarg.
Barbosa não ficasse convencido, o homem continuou detido no Posto, onde durante
o dia ia sendo interrogado mais ou menos musculadamente,
às refeições comia o que vinha do Asilo em marmitas de alumínio, à noite era
mandado para o calabouço, aonde apenas havia um estrado em madeira, sem
colchão, lençóis e com um simples cobertor. Instalações sanitárias não havia.
Barba não podia fazer e, para o resto,
havia apenas um balde, que exalava um odor nauseabundo. Ao fim de duas noites,
cerca das 2 da manhã, o homem cedeu,
dizendo ao guarda de plantão para chamar o Comandante, pois que a manter-se
mais tempo naquela situação, não
aguentaria, acabaria por morrer, pelo que se dispunha a confessar tudo o que se
tinha passado.
Os portugueses, há
quarenta e tal anos ou mais, eram educados num modelo sociopsicológico de uma
pretensa autoridade. Os pais podiam castigar os filhos, com mais ou menos
pretextos, e definir a educação académico-escolar das filhas. E as esposas
levavam também mimos, bofetadas,
murros ou pontapés, com ou sem maridos alcoolizados. As polícias usavam
informadores, muitos deles voluntários e não remunerados, padres incluídos, e o
cassetete ou coronhadas. Quem fosse preso, político ou não, arriscava-se a
ficar em maus lençóis, sendo que nos
calabouços, nem lençóis havia. A lógica da subserviência, actuação e o medo da
polícia, mantinham as pessoas cordatas, sensatas, em suma, prudentes como
desejava o regime.
As cartas, escritas
pela mão dos próprios ou a rogo (havia os escribas profissionais), terminavam
com a sacramental expressão De V. Exª,
atento, venerador e muito obrigado. Os ofícios administrativos ou os
requerimentos em papel selado de 25 linhas, encerravam com um a Bem da Nação.
No futebol, para a missa do domingo e por vezes na praia,
os homens usavam chapéu (boné), casaco e gravata. As mulheres não dispensavam
véu e uma mantilha sobre a cabeça. Na praia o fato duas peças era proibido,
sujeito a multa pelo severo cabo do mar, como vimos.
Nos velórios,
normalmente na sala principal da casa, falava-se num sussurro condizente com a
pouco luz, como também com os superiores.
A esposa devia
obediência ao marido, recebia mesada para as despesas da casa, não podia
exercer comércio, abrir conta bancária ou sair para o estrangeiro, sem expressa
autorização. Manda quem pode, obedece
quem deve, o respeitinho é muito
bonito, dobre a língua, se soubesses
quanto custa mandar só querias obedecer. Deus, Pátria, Família, era uma santa trindade, que poucos ousavam
questionar à luz do dia. E, por vezes, nem mesmo às escuras.
Os valores que o
Estado Novo procurava inculcar, obediência,
resignação, caridade, constituíam verdades eternas e imutáveis, que a
Igreja vinha ensinando. A doutrina era aparentemente a mesma. Deus é omnipotente e todo o poder reside e
deriva d’Ele. Por Sua vontade, Salazar presidia aos destinos do País. Obedecer ao Chefe escolhido pelo Senhor, como
o Cardeal Cerejeira insistia em salientar, era
uma forma de obedecer a Deus. De acordo com a cartilha do Estado Novo, a
obediência encontrava-se no centro das virtudes, ao mesmo tempo que se fazia
sentir o honroso orgulho de se ser
filho da Pátria de Gama ou Camões, ressurgida pelo Estado Novo. Basta reler o Livro de Leitura da 1ª Classe, para
verificar a ênfase posta na obediência: É
Deus quem nos manda respeitar os superiores e obedecer às autoridades. Aos
olhos do Estado Novo, a obediência
ocupava o eixo das virtudes e deveres.
Tudo isto era
expressão de um estruturado pensamento, de acordo com um modelo autoritário e
hierarquizado. A geração do pós II Guerra, cresceu e educou-se, de acordo com
esse paradigma. Mesmo quando alguns se afastavam para enfrentar Deus
(abandonando o sacerdócio), a Pátria (indo para o estrangeiro), ou a Família
(divórcio), logo tinham de se aninhar no regaço protetor de grupos, afinal com
uma matriz tão forte como a dos que mandavam no País. A emancipação da mulher,
a homossexualidade (intoleradas), o divórcio, mesmo nos casamentos civis, eram
apenas tolerados, tanto pela Situação, como pela Oposição.
Não havia homens livres em Portugal?
Claro que houve sempre homens
livres, espíritos com pendor anarquista, resistentes que não aceitavam
integrar-se em nenhum tipo de manada. Mas eram poucos, eram ostracizados, eram
considerados suspeitos, recusavam obedecer como carneiros, numa palavra, eram incapazes de vergar a
cerviz perante quem mandava, fosse quem fosse. Por isso não eram de confiança.
O adulto agressor (entre eles a chamada
autoridade) é um cobarde que
provavelmente o desconhece, que se vinga nos fracos do que sofreu dos fortes,
logo que se tornou forte que baste para ficar impune. Ao agredir um fraco,
vinga-se de tudo o que aguentou e calou, do que teve de engolir em humilhação e
em dor.
Numa sociedade deste
tipo, não se podia dizer alto e frontalmente certas coisas (embora há quem diga
que na nossa democracia do século XXI isso também acontece mesmo em quem tem o
cartão do partido)), a menos que se falasse a partir de uma posição de
autoridade.
O povo sabia ser
manhoso, elogiar pela frente o superior para depois o desfazer pelas costas,
ser cínico, no máximo sarcástico, não revelar ódio, ter medo da sombra, de
dobrar uma esquina, de sair ao luar e até expor-se à luz do sol. Isso criava
uma cultura de simulação, de ocultação de sentimentos, de salamaleques e de
aparente solidariedade, em que tudo era permitido, desde que se não se tocasse
na autoridade, se não se exprimissem sentimentos fortes, se não se chamassem os
bois pelos verdadeiros nomes.
A intriga, a maledicência, a inveja reinam impunes. Até que, rastejando,
lambendo botas, dobrando a espinha, dizendo que sim, que sim, com respeitinho, atento, venerador e obrigado, se consiga
chegar a uma posição de autoridade. Então é o momento por tanto ansiado: poder
fazer aos outros o que lhe fizeram a ele, no que é uma curiosa maneira de aplicar a máxima evangélica.
O Estado Novo
apresentava-se como o verdadeiro intérprete da Nação. A exemplo das demais
ditaduras europeias do século XX, ensaiou uma tentativa de materializar uma
essência mítica nacional. Assumindo a necessidade de restaurar a Alma da Pátria, o regime lançou-se na
apologia dos valores nacionais, supostamente contidos nos hábitos e costumes
ancestrais. A mitificação do ser português, pobre,
mas honrado, e dos seus traços heróicos, encontrava fundamento, ainda que
forçado, na História: a Reconquista, os
Descobrimentos, a Restauração. A postura autoritária do Estado Novo
explica-se, a partir da sua visão infantilizadora do povo português. O
estoicismo e a capacidade de sofrimento dos portugueses eram acompanhados de
uma alegada ou pretensa incapacidade de decisão, de viver em liberdade, de uma
tendência natural para a obediência e passividade. O poder reconhecia, a
contragosto, a existência de alguns portugueses virados do avesso, segundo uma expressão da época, que
incompreensivelmente recusavam, a ordem, a tradição e a estabilidade que o
regime, benevolamente, conferia.
Quando a fome apertava na lide do campo, fazia-se uma
pausa para a merenda, normalmente broa e sardinha.
Na agricultura não
havia semana-inglesa, muito menos americana, direito de que nunca se ouvira falar (reclamado pelos comunas), que seria sempre considerado uma modernice, sem
viabilidade no país. Só não se trabalhava ao Domingo, pois de manhã havia que
ir à missa e se usava roupa diferente. Domingo não era Domingo sem missa em
latim e sermão, ameaçando com as penas do Inferno, como se na terra ele já não
o houvesse. A ruralidade era tão dura que a Igreja parecia ajudar a esconder os
períodos difíceis dos mais necessitados.
Como poderia haver castigo depois da morte?, interrogavam-se
alguns mais arrojados e não necessariamente femininamente
beatos.
Sem entrar em
terrenos complicados, sou de opinião que, neste século XXI, Inferno e Paraíso
são metáforas, pois não creio que Deus na sua infinita sabedoria, tenha criado
um Universo em que coexistem domínios terrenos e ultra-terrenos. Não é possível
compatibilizar Fé com um Deus que anula o Homem. Também discordo que seja
entendido, proposto pela Igreja ou Sacerdotes, que a vida é uma peregrinação
rumo a Deus, como entenderia Dante (mas isso foi na Idade Média), se bem o
interpretamos.
Passe
aqui um breve parêntesis. A relação com Deus, decorre de uma pessoa que se
assume ou supõe religiosa, não tanto necessariamente no sentido de pertencer a
esta ou aquela confissão, mas porque a ideia de Deus lhe parece óbvia.
Quem pode rejeitar
que as religiões (sem exclusão do Cristianismo) trouxeram ao mundo um rol de
barbaridades, superstições, guerras e mesmo infantilismo? Mas não, o mundo não
seria possível, nem mesmo melhor, sem religiões, pois a indignidade não está
nelas, mas nos crentes ou agentes que delas se servem de modo rasteiro, nalguns
casos blasfemo, pelos propósitos desumanos.
O Domingo era ainda
dias/motivo/pretexto para tomar banho, vestir roupa lavada, ver e ser visto,
para os rapazes ou mesmo os homens feitos, lançar olhares ao mulherio.
Da parte de tarde, os homens voltavam à
taberna, onde é que haveria de ser? para entre uns copos de branco ou tinto,
por a conversa em dia, jogar o chinquilho ao perde-pagas. Se o vinho atrapalhava o negócio, deixava-se este,
como sentenciava o Domingos Felizardo.
Talvez isso, tivesse criado a fama de ninguém ter mais sede que ele. Claro que
quando apanhava uma carraspana eram
depois três dias de descanso, como sabiam o patrão e a mulher, que no princípio
ficava desesperada e depois se habituou.
As mulheres
aproveitavam a tarde para tratar da lide da casa. Bailes, só pelo Carnaval,
Santos Populares ou Santa Marta (Montes) (14),
estando as moças vigiados de perto pelas mães.
Se se pensar bem, os
sentimentos que hoje em dia tanto atrapalham a felicidade, também existiam, mas
o Regime encarregava-se paternalmente
de conferir aos acontecimentos as devidas proporções, como se não houvesse
capacidade individual ou colectiva para digerir momentos difíceis. Sem dúvida
que se vivia, lado a lado, com perguntas para as quais não era dada resposta,
mas deveria haver. Como muitos portugueses na sua pouca instrução, José Machado
não exprimia, por palavras, o turbilhão de sentires,
e se o conseguisse ou soubesse fazer, era mais que normal que o Poder (com quem
nunca privou) não lhe desse grande relevância ou dedicasse um vago olhar
distraído.
Beber vinho é contribuir para o pão de um milhão de
portugueses, foi o slogan
integrado na campanha ao consumo de vinho, patrocinada pela JNV, pelo Grémio
dos Armazenistas de Vinho e com o apoio publicitário do governo.
Essa campanha
continha contradições, nunca resolvidas. Desde sempre, houve em Portugal um
conflito entre a opção pão e vinho. A questão não era pacífica, pois se no pão
seria necessário aumentar a produção de modo a satisfazer as necessidades, no
vinho a colheita normalmente ultrapassava as necessidades internas, acarretando
o problema do destino dos excedentes.
Na zona de Montes,
Coz, Castanheira ou Alpedriz, o vinho era quase só o tinto. O branco era de
bica aberta. Isto é, em fins de
Setembro ou Outubro, espremiam-se as uvas no esmagador. O mosto, só ele, ia
depois para uma vasilha grande, a fim de fermentar até Março, altura em que era
transferido para uma outra vasilha limpa. O vinho aparecia então claro, limpo,
e com bastante graduação, por vezes 18º, o que impunha que fosse desdobrado.
Este vinho era frequentemente aproveitado para água-pé, que também chegava a
atingir uns bons 14º.
Nas vindimas, num
ambiente quase festivo, trabalhava toda a gente da terra, as mulheres na apanha
das uvas, os homens a carregar os cestos para os carros de bois, com eixos das
rodas e chumaceiras de madeira, até às tinas das adegas. Até há alguns anos, a Adiafa (15) era a festa
popular do fim das vindimas ou das colheitas, uma época em que trabalhadores e
patrões confraternizavam Hoje em dia, a Adiafa
é uma mera recordação ou uma promoção turística, uma manifestação para
ajudar a manter a memória da cultura e os antigos costumes que teimam resistir
à mudança dos valores sociais. Alguns proprietários mais importantes,
cumpriam a Adiafa, com um jantar
melhorado com o pessoal, aonde estavam presentes a carne de porco, e filhoses.
CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
FLeming de Oliveira
(IV)
As festividades, em honra de Stª Marta (Montes), começavam a
manifestar-se alguns dias antes. Os festeiros iniciavam com antecedência a
colocação dos arcos que enfeitavam parte das ruas onde iria passar a procissão.
Os andores enfeitados e os estandartes eram colocados atempadamente nos
respetivos lugares, para depois saírem.
As festas populares, as
romarias do antigamente, eram importantes para manter viva a moral e os bons
costumes. Penitência, devoção e algum divertimento controlado (umas pequenas
rixas ou algazarras, fruto de uns copos, divertimento mais ou menos aceitável
aos homens), inseriam-se na exaltação de um ruralismo, que não devia fazer
perigar o trabalho do dia seguinte. Como festa verdadeiramente tradicional, a
Santa Marta constava de duas partes. Muitas vezes, e hoje cada vez mais,
misturavam-se os interesses profanos com os valores religiosos. A religiosa,
com missa e sermão, seguida de procissão, e a parte profana, com os almoços e
jantares para a família e convidados. E claro, não faltava o foguetório. A
banda de música, a abrilhantar a procissão e os conjuntos, eram motivo para o
baile animado. Dita a missa e ouvido o sermão, por um pregador convidado e
especializado, sobre uma temática, ou na que melhor evangelizará os crentes,
chamando ao sentimento, os montenses preparavam-se para a procissão. A
procissão saía para o adro. Organizavam-se os andores e estandartes, segundo
uma ordem tradicional, que ninguém ousava contestar. Na procissão, ocupava um
lugar de destaque o pálio, os andores dos santos e os estandartes religiosos.
As opas coloridas, muitas vezes azuis celestes, equilibravam a plataforma onde
iam as imagens. Os transportadores aprontavam-se para o andamento ritmado ou
livre pelas ruas. Iniciava-se a procissão com alguns cânticos religiosos. De
seguida a Banda, dava os acordes, próprios do sacro momento. Na época das
festas religiosas populares de Alcobaça, muitas comunidades davam grande
importância à procissão da festa. Quase sempre as procissões tinham mais
afluência do que a solene Eucaristia.
Ouvi algumas pessoas, hoje idosas (e não
apenas mulheres de missas), dizer que
o contacto com uma procissão, constituiu em determinado momento um despertar da
Fé. Descobriram uma dimensão oculta ou esquecida, viram ou intuíram a dimensão
transcendente da precária vida humana.
De facto, as procissões tradicionais
conferiam visibilidade à Fé,
situavam-se na pedagogia da Encarnação, pela qual a humanidade de Cristo deu visibilidade ao mistério de Deus. A Fé
precisa de sinais visíveis que se manifestem em imagens, o mistério invisível
em que se acredita. Os meus olhos viram a
salvação, exclamou o velho Simeão, quando recebeu o Menino Jesus no Templo.
Numa civilização como a nossa, que tradicionalmente tem privilegiado a imagem,
as pessoas precisam de ver. Não basta
ouvir o anúncio do Evangelho, pois a Palavra da Verdade precisa do apoio de
elementos visíveis, que a tornem concreta e relacionada com a vida. Encontramos
essa pedagogia muito propriamente no Novo Testamento. O anúncio do Evangelho
foi acompanhado de sinais (gestos, curas, estilo de vida de Jesus e Apóstolos)
que confirmaram e deram visibilidade à palavra.
As janelas e varandas das casas
encontravam-se engalanadas com as melhores colgaduras das arcas encoiradas,
retiradas das arcas. Algumas senhoras deitavam pétalas, à passagem do andor.
Hoje, em geral, não se fazem, nem pagam promessas. Se, antes do 25 de Abril, as
havia com frequência, eram feitas normalmente por soldados regressados ou ainda
no Ultramar.
As raparigas recortavam papéis coloridos,
para engalanarem as ruas ou ornamentarem os andores, colados com farinha de
trigo. Os rapazes pediam para a festa, indo até às redondezes. As Bandas de
Pataias ou a da Maiorga, umas vezes com mais, outras com menos elementos,
tocavam a acompanhar o peditório e o foguetório. No tempo em que o poder
económico da gente do campo, não consentia excessos ou folias, a festa profana
tinha as suas limitações. O peditório, pelas casas de família, nunca foi
todavia decisivo para os festeiros.
Mas, a festa era uma animação para adultos e para crianças. Propiciava
divertimentos e sinais, aparentes, momentâneos pelo menos, de algum desafogo. A
criançada, ansiava pela festa da Stª Marta, pois era a altura de receber uns
trocos dos pais ou padrinhos, comprar umas bugigangas ou um doce nas doceiras,
que frequentavam o arraial. Para quem o viveu, lembra-se que, nesses dias
(há mais de 50 anos), receber 2$00 ou 2$50, era uma excelente prenda, que dava
para extravagâncias ou excessos, que não se podiam repetir ao
longo do ano. Todos os caminhos iam dar ao largo da Igreja. Faziam-se
cumprimentos e punha-se a conversa em dia. No Domingo, após os preparativos
caseiros, escolhidas as melhores vestimentas (a apresentação é também um ponto
de honra), as famílias preparavam-se para a função, comandadas pelo pai. No
recinto, encontravam-se as barracas de tiro ao alvo, dos furinhos, sendo muito procurada aquela que tinha uma pirâmide de
latas para deitar abaixo, usando-se bolas de trapos.
O bar ficava pronto a servir copos e
tremoços. As rifas, as quermesses estão expostas e e correr. Os festeiros fazem
publicidade, incitando à compra. O conjunto iniciava os acordes para animar o
pessoal. A briga também tinha o seu momento, quando os forasteiros, no
bailarico iam, em ares de provocação, convidar as moças da terra para dançar.
Estas, salvo raras exceções, só dançavam e namoricavam com os rapazes da terra.
Festa rija, sem insultos, bordoada não tinha graça, mesmo sem
necessidade do varapau, pois, sem isso no ano seguinte, ninguém se lembrava da
anterior. Mas momento importante, importante mesmo, era quando chegavam os
prestimosos, sorridentes e corteses ourives ambulantes, como o Maneca do Ouro, dos Leitões, lugar perto de
Cantanhede, abrindo os expositores em malotes de madeira verde, com anéis,
brincos, pulseiras, ouro faiscante, ou pelo menos prata. Senhores e Senhores, o metal é o bem mais importante, que mais se
valoriza e duradouro que existe, assegurava, jurando pela alma da mãe, tudo
ter os anunciados quilates de lei e os contrastes de garantia, ao mesmo tempo
que falava das dificuldades e carestia da vida. As mulheres gostavam muito de
sentir nas mãos o peso do ouro, que
ele lhes passava na esperança de as entusiasmar, ganhar umas notas, que ainda o
iriam fazer sorrir e ser mais gentil. Mas o povo, que não tinha direito a
reforma, nem a gozar férias, que para se divertir bebia um copo e comia
tremoços e pevides, como poderia comprar ouro? Mas a verdade é que comprava,
pois ficava bem, era um enraizado hábito, uma necessidade ancestral de herdar e passar aos filhos…
O ouro para muita gente está ligado a
amuletos. Os amuletos, assentam no princípio de que tudo o que é mau é
proveniente de seres sobrenaturais, com enorme poder, capazes de produzir s
mais variado efeitos, doenças e males. Para quem acredita, os amuletos, actuam
repelindo os espíritos que atormentam os vivos e aos bons trazem benesses.
O amuleto é segundo a tradição popular um
instrumento de carácter passivo, que protege contra os males e perigos, mas
também instrumento ativo, que produz efeitos maléficos a quem se quer
mal. O feitiço é afinal um elemento do mafarrico
que atua, tanto para o bem, como para o mal. Figas, cruzes de David, elefantes
com a tromba para baixo ou para cima, ferraduras, trevos de 4 folhas, trezes, corcundas, quartos de lua, patas
de coelho, cornos de animais, budas, olhos, um sem fim de objetos semelhantes,
são exemplos de amuletos.
A cor amarela do ouro, como a do sol, sempre
fascinou e deslumbrou a humanidade. Com frequência, tudo o que rodeava o homem
e não se conseguia explicar, pelas benesses ou males que acarretavam, era
objeto de veneração.
Para alguns povos antigos, o local do
nascimento do sol era considerado como a Casa de Deus. O ouro, pela semelhança
com a cor do sol, era tido como parte do corpo de Deus, venerado como tal. O
sol na sua rotação nascente-poente, ia semeando
bocados do seu corpo, criando a convicção de ser esta a origem
do ouro, que por isso era adorado e guardado, não como mero pecúlio económico,
mas como objeto sagrado. Sendo divina a essência do ouro, grande parte das
divindades orientais, incluindo o Buda, são recamadas a ouro, o mesmo
acontecendo com os santos, altares e paramentos dos dignitários da
religião católica.
A gente das nossas aldeias, quase sempre
rejeitou o ouro polido, avermelhado, e quando o ourives argumentava para a
venda de artefactos com esta cor, a resposta saía de imediato, esse não é o ouro que queremos. A cor
natural do ouro não é a vermelha, branca, esverdeada, mas sim a amarela e vem
daí a tradicional preferência do povo. O amarelo é talvez a mais ardente das
cores e os raios rasgam o azul do céu manifestando o poder dos Deuses.
E os homens para compensar o que haviam gasto com
as mulheres, reuniam-se no bar do arraial, na adega ou na taberna, pois a sede
ao fim da tarde é sempre muita. Não há dia de festa sem copos, nunca é cedo para começar, nem tarde para acabar. Bebidos
uns copos de tinto ou mesmo de água-pé, vinham para a rua e viravam-se contra
uma parede, para satisfazer uma premente necessidade. A hora do jantar chegou e
com ela um momento de coesão e solidariedade social e familiar. Pelas 22 horas,
o conjunto retomava a função. As ruas são novamente ponto de encontro, a festa
prolonga-se até às tantas. É povo que trabalha e reza, povo que ama, folga e se
diverte como e quando pode. Após garantir o sustento, após orar e agradecer à
divindade, o montense /alcobacense/ português dava largas ao seu ludismo,
expandia os impulsos, entregava-se à diversão e à folia possíveis. Assumindo
até certo ponto uma função de escape ao quotidiano da aldeia, o bailarico
permitia, a aproximação entre os sexos e era, por isso, momento bem apetecido
pela mocidade. Desde sempre foi assim e, exceptuando as danças rituais, as
danças populares tiveram e têm essa finalidade. Função socialmente importante
nas comunidades rurais, como os Montes, muito fechadas e pouco permissivas,
onde a pressão social se fazia sentir, com rigor. Assim, as ocasiões eram
aproveitadas pela mocidade (mas não só) para amar a bailação. As festas e os
círios vinham em primeiro lugar, depois, os casamentos, as sortes, as feiras e mercados, as descamisadas do milho, a adiafa, a
Santa Marta, o Carnaval.
José Bento Ramos Montes, director interino
do efémero jornal Voz dos Montes,
escreveu em 1925, a
partir de Lisboa, um texto interessante sobre o S. Vicente (janeiro/fevereiro),
que vou transcrever em parte.
No
sábado,
como de costume foram precedidas estas
festas de uma fogueira feita no largo fronteiro à Igreja, que principiou as 9
horas da noite. Em redor juntaram-se grupos de rapazes e raparigas, tocando e
cantando as suas modas regionais que
se prolongaram pela noite fora. Domingo, logo de manhã fomos despertados pelos
morteiros, anunciando a alvorada, dando as salvas do estilo, percorrendo a
filarmónica da Maiorga as ruas da terra, tocando algumas peças do seu vasto
repertório. Ao meio dia toda a gente se dirige para a capela, dando-se início à
cerimónia religiosa. Pregou a meio da missa um brilhantíssimo sermão, o
reverendo desta freguesia senhor António Ferreira, que foi ouvido no meio do
mais completo silêncio e atenção de todos os crentes que enchiam por completo o
templo. O sermão, embora dentro da filosofia e dos preceitos da religião, foi
revestido de um carácter moralizador e muitos dos que julgam desnecessária a fé
e a religião num povo, tirariam dele bons proveitos. Às 2 da tarde, saiu a
procissão percorrendo as ruas que circundam a Igreja, levando os andores da
Senhora da Conceição, Coração de Jesus, Santa Marta e S. Vicente,
incorporando-se nela todo o povo da terra e inúmeros forasteiros das povoações
próximas. Terminada a procissão que decorreu na melhor ordem, foi executado um
concerto pela Filarmónica da Maiorga, havendo danças, venda de fogaças, etc.. À
noite queimou-se um vistoso fogo-de-artifício, terminando assim as festas sem
facto algum desagradável e com completa satisfação de todos.
Alguns padres sabiam, quem melhor que eles?,
que este mundo é um inferno, mas nem por isso prescindiam de ameaçar o povo com
outro inferno. Bom seria que, em lugar de tanta moralização, ensinassem digo
eu, os portugueses a sair dele.
Na engorda dos
animais, utilizavam-se produtos da horta, frutas e sobejos. Na sociedade rural
dos tempos da II Guerra e até meados do século passado, não existiam
desperdícios. Tudo se aproveitava e tudo se transformava. Eram os sobejos
destinados à preparação da vianda para os porcos que incluía, as águas das
primeiras lavagens da loiça ou de lavagens de utensílios que tivessem tido
matérias gordas, a lavadura. Os desperdícios resultantes da preparação dos
alimentos, como couves amarelas e bichadas, cascas de batatas, de feijão, nabo,
abóbora, cenoura, fruta, e de espécies espontâneas, os eventuais excessos de
produtos da horta ou fruta, também serviam de alimentação como cereais, em grão
ou farinha, como o milho e favas. Toda a vianda era preparada com muita água e
sal. O azeite era conservado em talhas de barro vidrado.
A aguardente
fazia-se do bagulho das uvas. Quando
não era para vender guardava-se em garrafões de 5 e 10 litros e feita em
alambique de cobre, como em casa do meu sogro Dr. Amílcar Magalhães que tinha
um semi-industrial, que alguns vizinhos também utilizavam, no quadro de uma
modalidade ancestral.
Também se salgava o peixe. Neste caso,
amanhado ele e retiradas as escamas, numa operação à unha, em sentido contrário
à sua posição natural ou normal, ia para a salga. O Ti’ Alfredo da Bonifácia, recorda um costume antigo de
Coz, Montes e Alpedriz. Havia muitos texugos que estragavam as culturas, pelo
que quem caçasse um, ia de porta em porta mostrar a façanha e pedir um
contributo para o esforçado trabalho
em prol da comunidade.
O alcoolismo era um problema de saúde e
social, enraizado, mas encarado de uma forma equívoca. As crianças em zonas de
vinho, a partir dos oito ou nove anos já o consumiam com a anuência dos pais,
desde logo ao pequeno-almoço, na forma do
mata-bicho ou sopas de cavalo cansado.
Altino da Cunha Ribeiro, falecido há uns
dois anos, contava a história de um homem de Alpedriz, tão velho quantos os
cerca de 90 anos, trabalhador rural de enxada, grande bebedor de vinho tinto
(branco nunca!) e que jamais estivera doente. Por vezes bebia tanto que caía na
valeta, onde era socorrido por um passante, que lhe atirava com um balde de
água à cabeça. Havia até quem dissesse (malevolamente?) que nessas ocasiões, a
fermentação do vinho no estômago, fazia com que deitasse vapor ou fumo pela
boca. Um dia o homem encontrava-se parado à porta da fábrica de Altino, a comer
toucinho crú salgado, acompanhado de pão e, claro, de uma garrafa de vinho
tinto, que levava directamente à boca.
-Oh senhor António,
você está a matar-se!
-Porquê, senhor Altino?
-Um homem da sua idade,
a comer toucinho cru, quer-se matar…
-Olhe que não, senhor
Altino, daqui vou à taberna da Hermínia, bebo mais um copo e desinfecto a mánica.
Mas também recordo de ouvir contar a
história do Ti’ Manel que se gabava de nunca ter ido a um médico, ou ter uma
dor de cabeça em oitenta anos. O mata-bicho
era uma inevitavelmente uma aguardente de bagaço, que bebia de um trago.
Solteiro, Ti´Manel não tinha descendentes
diretos, vivia com uma prima solteira, de trinta e muitos anos. Costumava
levantar-se cedo por uma questão de hábito, logo ao alvorecer, era o primeiro a
chegar à taberna, onde o ZéManel lhe
servia o mata-bicho do costume, já sem necessidade de pedir. Um dia a prima
estranhou o tio não se levantar à hora habitual e, preocupada, foi indagar o
que se passava. Encontrou-o ainda na cama. Mau sinal mesmo, muito mau.
-Está doente, primo?
-Não sei o que tenho
p’riga,
respondeu o velhote numa voz rouca e abafada, o que a deixou ainda mais
preocupada.
Perplexa, chamou um carro de praça e
sem hesitar levou o primo ao médico, apesar da despesa. Este auscultou-o e
perante a constatação que Ti’ Manel, especialmente de manhã, gostava do
mata-bicho (afirmação quase desnecessária, por notória), proibiu de imediato o
consumo. O homem regressou casa ainda mais abatido, não se conformando com tão
drástica prescrição, assumindo intimamente a vontade de a não cumprir. A prima,
ajudada por uns vizinhos, conseguiu a muito custo, porém, faze-lo cumprir. Mas
dia após dia, o homem ia mirrando, pelo que a rapariga depois de ouvir a
opinião de algumas pessoas não resistiu a um pedido.
-P’riga, a última coisa
que peço é que me vás comprar uma garrafa de aguardente.
A prima não conseguiu dizer-lhe que não,
pelo que foi à taberna do Zé Manel comprar a tão desejada aguardente.
O velho bebedola bebeu sofregamente a
almejada aguardente e, para espanto da prima e dos vizinhos, começou a
melhorar rapidamente, pelo que a partir do terceiro ou quarto dia, já saía à
rua, havia retomado os hábitos normais, passando a ir de manhã à taberna, como
o fizera em toda a vida. Morreu no ano em que iria fazer noventa anos.
CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
FLeming de Oliveira
(IV)
A saída em massa das
populações rurais para outros países ou para a cidade, a procura de melhores
condições de vida, acabou por deixar muitas aldeias portuguesas quase desertas.
Entretanto e apesar de tardiamente, chegou a luz eléctrica, os automóveis e as máquinas
agrícolas (mecanizadas). Os trabalhos do campo passaram a ser mais facilitados,
os bailes passaram a ser animados pelos conjuntos musicais, as famílias
passaram a reunir-se em casa, em volta da televisão. A região desenvolveu-se, a
qualidade de vida aumentou, mas perderam-se valores como o comunitarismo e a
entreajuda. Quem não se lembra de uma bonita história, bonita, contada pelos
pais ou avós? Histórias que de boca em boca, foram passando através das
gerações, e assim viajavam pelo mundo, se entrelaçavam, se modificavam e
seguiam o seu caminho, eternizando-se. Em cada família, havia um contador de
histórias. Quem conta histórias na família? Que tipo de histórias ainda se se
prefere?
É por isso que António Curado, jornaleiro
assumido, considera que, cada vez mais, faz sentido continuar a preservar a
nossa cultura e tradição, embora acredite que, para as novas gerações, seja
cada vez mais difícil compreender o seu lado afectivo e sentimental. Não são
saudades, da dureza do trabalho ou da pobreza. Não são saudades dos tempos em
que as pessoas ficavam isoladas pelo mau tempo e a chuva se infiltrava com o
vento pelos telhados da casa de pedra. Os jovens, falam das vantagens dos
shoppings da cidade, Leiria, Caldas ou Lisboa, esses que provavelmente se
poderem irão também, em busca de uma melhor vida. Pela terreola, vão ficando os
mais velhos, com as suas recordações que, a não serem preservadas, um dia se
perderão.
Sou hoje em dia algo
nostálgico, segundo diz a minha Mulher Ana, o que é verdade e talvez
relativamente normal. Até pareço ter saudades de um tempo que não vivi. Será
possível ter saudades do tempo em que havia gosto em fazer em que as pessoas
andavam de carro eléctrico e se dava milho aos pombos nos jardins públicos?
Tenho saudade do tempo em que se escrevia
com uma caneta de aparo. Tenho, passado por papelarias e apreciado a montra,
fixando o olhar em elegantes conjuntos de canetas de aparo, tinteiros e folhas
de papel muito bonitas (normalmente para oferecer), como se viessem de um tempo
muito distante. Porém, até que me decida a gastar algum dinheiro, mal gasto
diriam os filhos…, para comprar um conjunto destes que, provavelmente, ficaria
quieto durante meses a fio, utilizo a prosaica BIC ou o computador.
O cinema ambulante
está absolutamente fora de moda, poder-se-á mesmo dizer que morreu. Há algum
tempo o Diário de Noticias publicou
uma reportagem interessante sobre um dos últimos projecionistas ambulantes, a
trabalhar em Portugal. Aos 68 anos, continuava a levar o cinema às costas, pelo Alentejo,
Concomitantemente à eleição de Craveiro
Lopes para a Presidência da República, O Alcoa, na primeira página de 2 de
Agosto de 1951, defendia expressivamente que (…) através do cinema imoral, a juventude operária é docemente explorada
por empresários sem escrúpulos que, aproveitando inteligentemente as
preferências dos jovens, organizam programas-monstros, que lhes enchem as casas e os cofres. Com espectáculos suculentos de
pornografia, crimes, imoralidades e violências, atraem facilmente os jovens. Os
cartazes de reclame são, como é natural, a amostra mais convidativa, à maneira
de forte aperitivo (…).
Mesmo assim, em 1955, quando arrancou a Campanha Nacional de Educação de Adultos-
onde se utilizou o cinema em salas próprias ou ambulante para ajudar à
alfabetização, é o próprio CNEA que refere que muitas das pessoas das
localidades visitadas, nunca tinham visto cinema.
Lauro António escreveu que a primeira
indicação da existência em Portugal de uma censura cinematográfica, data de
1919. Referindo-se a um Decreto de 1917, a Secretaria da Guerra, informou o País
que o filme Os Últimos Acontecimentos no
Norte do País, cujo tema era as tentativas de restauração de A Monarquia do Norte, estava autorizado
a ser exibido. Ainda nos anos finais da I República surgiram dois Decretos, um
em 1925 e outro no início de 1926, que proibiram, e regularam a legislação
sobre filmes, contra a moral oficial.
Em plena Ditadura Militar, ainda antes da
ascensão de Salazar ao poder, foi publicado o Dec. Lei nº 13564, de Maio de
1927, que irá influenciar o visionamento dos filmes pela Censura. Esta lei,
onde se incluía a referência à metragem mínima de 100 metros, obrigava à
inscrição dos tradutores, importadores e produtores de películas
cinematográficas, bem como a comunicação dos novos filmes e locais de estreia.
Como se apontou supra, a actividade da censura não era anterior à estreia do
filme, mas sim posterior, deixando-se ao arbítrio dos empresários o seu
cumprimento. Arbítrio condicionado pela Ditadura, que tinha o seu específico
conceito de fitas perniciosas à educação, de incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime político e
social, vigentes. Da mesma forma, eram passíveis de censura as cenas que
mostrassem maus tratos a mulheres, torturas a homens e animais, personagens
nuas, bailes lascivos, operações cirúrgicas, execuções capitais, bordéis, sexo
e homicídios. Bem como episódios de roubo com arrombamento ou violação de
domicílio, sempre que estes fossem passíveis de ensinar os respetivos modos de
actuação. Estas matérias ficavam sob a alçada da Inspecção-Geral dos Teatros,
dependente do Ministério da Instrução Pública.
Em 1929, a IGT passou a depender do Ministério do
Interior a quem cabia a censura de obras teatrais, fitas cinematográficas e
tudo o mais que fosse conducente à eficiência da fiscalização dos espectáculos.
Dez anos mais tarde, estes serviços foram
reorganizados e, em 1944, passaram a fazer parte do Secretariado Nacional de
Informação. Um ano depois, foi instituída uma Comissão de Censura, abrangendo a
censura teatral e cinematográfica. Esta Comissão era constituída pelo Secretário-Geral
do Ministério (presidente), pelo Inspector dos Espectáculos (vice-presidente),
nove vogais e um secretário. O SNI estava representado através de três
delegados.
Em 1948, ficou definido que qualquer tipo de
exibição, só seria possível após a atribuição de uma Licença de Exibição, dependente de um visto prévio da Censura. Foi
a institucionalização do controlo, a legislação sobre a criação de salas de
cinema e a segmentação etária dos filmes. António Ferro, que segundo se diz
nunca admirou por princípio a censura, mas não a combateu, encaixou os desejos
e justificações de Salazar, talvez por também servir os seus propósitos. Quando
ainda não era o mentor da propaganda do Estado Novo, nas suas entrevistas a
Salazar no início dos anos de 1930, questionou-o sobre a questão, ao que este
respondeu que eu compreendo que a censura
os irrite, porque não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu
pensamento e do que a expressão do seu pensamento. Vou mais longe: chego a
concordar que a censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes,
sujeita ao livre arbítrio dos censores, às variantes do seu temperamento, às
consequências do seu mau humor. Salazar, queixando-se de ter sido, ele
próprio, vítima da censura durante a I República, o que lhe deixou um sabor
amargo, justificou-se, que a censura,
hoje por muito paradoxal que a afirmação pareça, constitui a legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a
grande desorientação do pensamento moderno, a revolução internacional da desordem
(soviética). Salazar sabia que os
factos só se tornam verdades, quando deles existe conhecimento, pelo que se irá
encarregar de fornecer as suas verdades à população, ainda que construindo uma
outra (a sua) realidade.
A esmagadora maioria dos filmes censurados,
era proveniente do estrangeiro. Mesmo mais tarde, entre 1964 e 1967, foram
levados à Censura 1301 filmes, sendo que, destes, 145 vieram a ser proibidos, e
693 autorizados, embora com cortes mais ou menos profundos se não atentatórios.
Até 1936, as malhas da censura pareciam
alargar-se mas, com o início da Guerra Civil Espanhola, a censura tornou-se
mais ativa.
Durante a II Guerra, diversos filmes
antinazis não foram autorizados para exibição. Portugal foi, palco de
confrontos entre os beligerantes. Se a máquina alemã encontrava público,
principalmente em sectores políticos, militares e paramilitares, a
norte-americana levava a melhor em termos populares. As facções beligerantes
faziam exibições privadas, mas os Aliados conseguiram, após resistência dos
exibidores, que temiam confrontos entre o público, a projecção de documentários
de guerra de propaganda, antes dos filmes de fundo. Após o final da II Guerra,
numa curta fase de pretensa distensão do regime, entraram em Portugal filmes
como Casablanca, que em Lisboa se
manteve em cartaz na mesma sala, o tempo recorde de dez semanas. Mas o cerco
voltou a apertar, tendo como grandes vítimas o neo-realismo italiano italiano e
alguma filmografia francesa. Por outro lado, os filmes do Leste Europeu e soviéticos
eram, à partida suspeitos, e portanto vetados.
Mas como dissemos, mesmo depois da II
Guerra, o cinema em si era objeto de atenção particular do regime.
Escrevia-se em Alcobaça, em 1947, in O Alcoa, sob a pena do articulista
Mendes e Sousa que, o cinema é, sem
dúvida, um dos mais terríveis inimigos da infância. Raríssimos são os filmes
exibidos nas casas de espectáculo que possam ser vistos pelos olhos inocentes
das nossas crianças (…). Na verdade o
que é que hoje se aprende no cinema? Aprende-se o que ele ensina. E a maioria
esmagadora ensina a roubar com cenas de banditismo, ensina a matar com cenas
cruéis de ódio e guerra, ensina a perverter o coração, com cenas de amor impuro
e degradante (…). A paixão pelo
cinema entre a maioria das crianças das cidades e até de muitas vilas é
verdadeiramente cega. Passa-se fome, não se compra o necessário, rouba-se até
para comprar um bilhete de cinema (…).
Num inquérito feito por um distinto médico num liceu de Lisboa há coisas que
nos podem elucidar. Do inquérito se deduz que os filmes preferidos pelas
crianças sãos os filmes de amor, de ódio e de guerra. Os depoimentos são
deveras eloquentes. Dizia um: gosto dos filmes com amores, aventuras,
duelos, ciúmes e mulheres bonitas. É a
alma da criança pervertida, é o retrato da maioria dos pequenos frequentadores
de cinema (…). Por meio de um
instrumento chamado hipnógrafo adaptado à cama, verificaram que o sono de uma
criança que acaba de chegar do cinema é continuamente (quase de minuto a
minuto) cortado por estremecimentos, agitações, reajustamentos de posição, etc.
(…).
No que diz respeito à filmografia
portuguesa, existem registos e referências a filmes com partes censuradas
desde, pelo menos, 1937. Sabe-se que a versão que nos chegou de Maria Papoila, sofreu cortes. O que não
impediu deste ter sido, o primeiro filme financiado pelo SPN.
No ano seguinte, A Aldeia da Roupa Branca, sofreu um pequeno corte, mas ainda assim
um corte, numa cena considerada imoral.
Em 1952, a película Nazaré foi exibida com cortes, como José Tempero salientava, pois
dizia ter assistido a algumas filmagens que nunca foram exibidas…. Nunca soube
dizer onde e porquê.
A censura no cinema, no entanto, não se
exercia apenas de forma activa. Os importadores não compravam algo que
admitissem ser passível da sua acção, de modo a evitar despesas e problemas.
Preferiam a censura total, em vez da projecção com cortes. Desta forma, viam
restituído o sinal pago pela sua importação. Caso o filme fosse exibido com
cortes, corriam o risco dos filmes, esvaziados de cenas por vezes fundamentais,
não agradarem ao público. Do ponto de vista dos realizadores, para além do
facto de muitos serem a favor do regime, a autocensura assumiu-se, no tempo,
como uma prática. Constituiu prova que afinal o sistema funcionava como o
regime desejava. Se à partida se liberalizava a produção cinematográfica
nacional, pois não se controlavam os argumentos e filmagens, ninguém se daria
ao trabalho de avançar com um projecto passível de ser censurado no final.
A criação do Fundo do Cinema Nacional, a partir de 1948, alegadamente como forma
de tornar viável o cinema português, não foi mais do que uma forma de censura.
A indústria de cinema tornava-se refém do julgamento governamental, do que deve
ou não ser produzido, através da atribuição dos subsídios. Embora tivesse como
fiel da balança os critérios da lei de 1927, a censura cinematográfica, tal como a
exercida sobre outras artes, variava conforme quem a exercia e a conjuntura.
Após a tomada de Damão, Goa e Diu em 1961,
nenhum filme indiano foi autorizado a ser exibido em Portugal até 1974,
independentemente do assunto.
Com o desenvolvimento da guerra de África, a
repressão passou a incidir, entre o mais, sobre filmes de temática pacifista,
para não comprometer o esforço nacional e por em causa a solidariedade das
famílias com rapazes a combater em África. A partir desta época, com destaque
para os anos da década de 1970, aumentou o número de filmes nacionais
proibidos. Mudavam-se os tempos, mas não as vontades, embora Salazar já cá não
estivesse.
De Julho de 1971 a Março de 1972, foram
levados 304 filmes à Comissão de Exame e
Classificação de Espectáculos (CECE). Após recursos, 37 foram
definitivamente proibidos, e 132 parcialmente cortados. Ficou o registo de
filmes como A Promessa, de António
Macedo, produzido em 1972, e que é o primeiro filme onde a censura autoriza a
visão de dois corpos nus. Sorte diversa tiveram películas como Sofia e a Educação Sexual, de Eduardo Geada, Nojo aos Cães, de António de Macedo, Nem
Amantes, Nem Amigos, de Orlando Vitorino, Índia, de António Faria, Grande,
Grande era a Cidade, de Rogério Ceitil, O Mal-Amado, de Fernando Matos
Silva, Deixem-me ao Menos Subir às
Palmeiras, de Lopes Barbosa, Quem
Espera por Sapatos de Defunto, de César Monteiro ou, ainda em 1960, Catembe, de Faria de Almeida, que, viram
impedida a exibição.
Nos meios
alcobacenses mais conservadores, entendia-se que a televisão põe o mundo
perante graves e delicadíssimos problemas de ordem moral, certo como é que pelo
desvio da sua finalidade útil, aquilo que é instrumento de maior bem pode
tornar-se instrumento de mal maior.
Segundo O
Alcoa, um pai de família, declarou
que desde o dia em que a televisão entrou
em casa, fecharam-se os livros (…). Depois
de estar umas horas a ver televisão durante a noite, vou para a cama com a
sensação que perdi a noite totalmente (…).
Uma mãe de família perguntava ao articulista
se não haveria maneira de apresentar os cowboys
com bons modos, sem que deixassem de ser cowboys?
Interessante é também o depoimento de um
professor. Ora, segundo o mesmo, cujo nome o articulista não registou, a TV intrometeu-se na vida das crianças,
distraindo-as nos seus estudos e nas suas leituras. Estropia-lhes a vista e
torna-as preguiçosas.
E querem ainda saber a opinião de um
alcobacense, apresentado como marido faminto
que entendia que seria um desastre que a televisão continuasse em progressos. Já agora minha mulher me deixa, não poucas
noites sem ceia, para ver um programa favorito. Imagine-se o que seria se
tivéssemos TV a cores ou um sistema desses que dizem que vão criar e, segundo o
qual, pagando certa quantia, se pode escolher o programa que mais agrade.
Tenho abordado factos e emitido opiniões,
admito controversos e mesmo arbitrários. Corro, assumidamente, o risco do
escrutínio popular.
Não quero fazer uma História da Censura, nem
pelo menos em Portugal, o que seria sempre infindável. Lições de Democracia ou
de Cultura, não se dão apenas com palavras ou nos livros de História. O exemplo
é verdadeiramente relevante. Cumpre notar que a abordagem que aqui faço, é uma
pequena introdução ao estudo da acção política do Estado Novo e da nossa terra,
através dos processos e dos eventos ocorridos no passado e para que não se
esqueça a memória.
Era
uma cultura que se pretendia simples, rural, de modo a que o povo português não
começasse a interessar-se por assuntos sofisticados, que não eram da sua competência, nem interesse.
O povo deveria interessar-se, por coisas
simples, hoje diríamos irrisórias. Alguns mais idosos de Alcobaça, recordam-se
do tempo em que havia grupos de homens que iam à estação de caminho-de-ferro de
Valado de Frades, assistir ao embarque de passageiras, na esperança de ver os
respectivos tornozelos.
E claro, como hoje, havia o Xico Esperto, figura característica de
português.
Existe ainda entre nós,
uma espécie típica, engraçada e esperta,
que parece resistir aos avanços tecnológicos e à pressão cultural: a do Xico Esperto. Não sabemos quando ou se
extinguirá. Mas persiste e continuará a existir. Porque o Xico Esperto (português) nasce e morre Xico Esperto. Antigamente nascia e morria na taberna, onde quando
não a trabalhar, passava o tempo a conversar. Sobre tudo. Conversas de homem
sério, trabalho, mulher, filhos, dinheiro, política e economia. Conversas sobre
vinho, mulheres, futebol, negócios excelentes e golpes que aplicava ou gostaria
de aplicar. O Xico Esperto vivia do
pequeno golpe apesar do discurso em estilo convincente e conteúdo moralista.
Mas as pessoas eram também muito crédulas.
O ser humano, sempre se deslumbrou pelo
oculto. No início dos tempos, para explicação de fenómenos inexplicáveis,
hoje para conseguir mais fácil e rapidamente o que deseja. Desconhecemos se
existem pessoas que sabem e conhecem as ciências ocultas, mas calculamos que na
maioria dos casos se trata simples e unicamente de aproveitadores da fraqueza.
Vendedores de sonhos. E os sonhos não se compram, como sabemos por experiência
ou racionalmente.
A Feira de S. Bernardo, realiza-se há
muitos anos em Alcobaça, umas vezes com mais animação, outras
com menos. O certo é que, não obstante a descaracterização que apresenta,
nem por isso deixa de estar enraizada nos hábitos da
terra.
As festas e romarias são uma componente
importante da cultura popular do povo português. Numerosas e variadas,
acontecem um pouco por todo o país e fazem parte das tradições e memórias de um
povo que pretende preservar e manter a cultura secular que lhe confere uma
identidade própria. Apesar de decorrerem ao longo do ano, é nos meses de
Julho e Agosto que acontece a maior parte das festas e romarias portuguesas,
unindo quase sempre a componente religiosa a um programa popular.
A
Feira de S. Bernardo teve sempre uma
componente essencialmente lúdica. Falando com pessoas idosas ou
consultando notícias de jornais, atrevo-me a dizer que a Feira de S.
Bernardo, quando no Rossio, era o ponto de encontro dos alcobacenses com os
de fora, a ocasião para mercadejar, beber uns copos
e foliar algum tempo. E pôr a conversa em dia, porque a vida não é só
canseiras.
O
que era uma boa Feira, no dizer dos antigos, lá pelos anos de 1930?
No
tempo da I República e dos primórdios do Estado Novo, da parte da tarde as
tendas lado a lado pejavam, como convinha, no Largo do Rossio, em longas
fileiras, e vendiam de tudo, fazendas, bugigangas,
algodão doce, ouro, ouro sim, ouro de lei, ou prata contrastada, como o
material do Maneca de Febres, porque o
metal é que tem valor amanhã, no meio de enorme algazarra e estridência de conversas, de realejos ou outros
instrumentos menos afinados, interpretados
por cegos (que afinal talvez fossem ou não…) que faziam números com
saltimbancos e artistas de circo,
enquanto se comiam tremoços ou pevides. Havia a tômbola das panelas que era
muito procurada, pelas mulheres, na esperança de poder sair uma peça, que mesmo
de refugo iria fazer muito jeito na decoração da cozinha ou no serviço da casa.
Também havia as tendas do vai um tirinho
o q´rido, das caixas com furinhos que davam prémios e as dos matraquilhos.
O povo gostava de ir
passear e ver. Famílias inteiras, com ar grave e pasmado, rapazes
vestidos à maruja, paravam diante dos artistas a quem davam uns cobres,
ajustavam o preço de um alguidar ou de uma peça de fazenda, tiravam medidas
para o rapaz fazer um par de botas de carneira, iam ao mercado
do gado, da fruta, da hortaliça
ou do peixe da Nazaré (oh qu’ rida, oh
freguesa!). Tudo era bom de apreciar. As ciganas liam a buena dicha, as vendedeiras de limonada
faziam negócio especialmente com as mulheres e crianças. Alcobaça, em Agosto,
com pó e moscas quanto baste, tinha sede que alguns homens matavam na
tenda da ginjinha. As mulheres apreciavam muito as pesadas mantas listadas de Minde, a lã azul fiada para saias, as
loiças da Olaria, de Alcobaça, com motivos
pintados à mão, simples e ingénuos, mas já a começar a vulgarizar os decalques,
os vidrados amarelos ou verdes das
Caldas da Rainha. Os homens, de pesado cajado, frequentavam, a feira do gado, faziam negócios com dinheiro
vivo, entre dois copos de tinto,
acompanhados de pequenos queijos de cabra ou de ovelha, vendidos em poceiros cobertos por alvas toalhas e,
claro, sempre com o marisco, os
tremoços e pevides. Esta era sim, uma boa Feira de S. Bernardo, com a PSP e a
GNR sempre por perto e atentas à malandragem (além dos ciganos, havia outros…
como os carteiristas) e às brigas do mau
vinho.
Durante a Feira havia circo. Em primeiro
lugar apareciam os cartazes espalhados pela vila, ilustrados com animais
ferozes, palhaços ou trapezistas, homens e mulheres gordos, tatuados e anões.
Depois vinham as carruagens, puxadas por camionetas ou animais, que desfilavam
com música, um tambor ou corneta. Era o tempo do grande espectáculo (o maior
espectáculo do mundo), exibido em tendas redondas de lona onde entrava a chuva
e seguramente o vento, a arena colorida, as luzes feéricas, os maillots
lustrosos das mulheres, os corpos atléticos dos homens. Os palhaços, os
animais. Os trapezistas, lá nas alturas.
Senhoras
e Senhores, Meninas e Meninos, benvindos ao circo!!! Senhoras e Crianças, não
pagam... Senhoras e Crianças, não pagam!!!
João Matias lembra-se, devia ter aí uns seis
anos, quando pela primeira vez o pai o levou ao circo, que assentava no Parque
da Gafa. Mas para a criança, aquele foi um dos maiores acontecimentos da ainda
muito curta vida. Gostou das trapezistas, riu-se com os palhaços mas,
sobretudo, ficou fascinado com o atleta das argolas. Nunca mais o esqueceu. O
fascínio do circo resiste a tudo e tem o condão de persistir na memória de
crianças, jovens e adultos. O das argolas era um velhote (pelo menos parecia),
de cabelos brancos e estatura meã. Os músculos como que lhe saltavam da roupa,
e nas argolas não deixou de fazer um Cristo, com uns braços já trémulos.
Esperado, esperado, era o momento dos palhaços. O de cara branca, o palhaço
rico, e o outro, o pobre. O rico, servia para enganar o pobre, que superava
pela esperteza os ardis que o cercavam. A assistência projectava-se no azougado
pobretana. João Matias ria. A música evolava-se da concertina inglesa e de um
xilofone de garrafas penduradas, líquidos coloridos em escala harmonizada na
subtilidade dos martelinhos. Ninguém dava pelo desconforto das bancadas duras
de madeira.
E o Teatro
de Fantoches ou de Robertos?
O Teatro
de Robertos era um divertimento, quase obrigatório das feiras, romarias e
até praias do século XX. Este estilo de teatro entrou, porém, em desuso em
meados do século XX. Nos seus tempos áureos, na altura da feira, apareciam os Robertos, tão ansiados pela criançada.
Tratava-se de espectáculos de fácil compreensão, com uma manipulação rápida e
cheia de acção, cuja característica importante é o uso pelo fantocheiro de uma palheta na boca que
lhe permite ampliar e distorcer a voz, produzindo efeitos surpreendentes, algo ridículos e que abordam rábulas
tradicionais, que reproduzem a animação de rua, algum acontecimento e centram a
atenção do público com o alarido e picardias dos bonecos. Tó Lopes, em criança,
gostava muito de ver os robertos e lembra-se de um número especialmente
apreciado, pois metia fantasiosamente o Marquês de Pombal e a expulsão dos
Jesuítas. Os adultos e a criançada achavam-lhe muita graça e pagavam cinco
tostões.
Mas o tema mais corrente era o de um homem
mal comportado, um touro para assustar e uma mulher que zangada com o
comportamento do marido, lhe pregava umas valentes pauladas no final.
Nos dias que correm, é difícil
encontrarem-se os Robertos, mas, de
certeza, que haveria muitas crianças que gostariam de assistir a um
espectáculo, com os saudosos e deliciosos Robertos.
João Matias, já rapazote com pêlos a
aparecer na cara, também não se esquece do vendedor da banha da cobra, que aparecia todos os anos na Feira de S. Bernardo.
O vendedor da banha da cobra não é
uma personagem de ficção, pois existe, sempre existiu, evoluiu, é muito hábil e
astuto. E a seu modo existirá sempre.
Bem sabemos, João Matias sem dúvida, que a banha da cobra não serve para nada, mas
a convicção que o vendedor transmite, através duma oratória estudada e
estruturada, é capaz de convencer sobre as capacidades infinitas deste
milagroso medicamento. Impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos
fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo,
escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, verrugas,
cravos, etc., são alguns dos males que a
banha da cobra afasta a quem a comprar.
Matias ainda tem no ouvido essa oratória, não custa nem 20, nem 15, nem dez. Custa
apenas cinco, e quem levar dois tubos leva um totalmente de graça. Um para
aquele senhor, outro para aquela menina, e enquanto eu vou lá à frente receber
o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás buscar mais material.
Se a
banha da cobra não cura nada, também não consta que daí tenha saído algum
mal para a saúde pública ou para o mundo. Não
custa dez nem quinze, custa apenas vinte e cinco tostões, e quem levar dois
tubos leva um de graça.
Era tentador! É assim que conserva no ouvido
o pregão com que na feira, o vendedor da
banha da cobra anunciava as virtudes miraculosas daquela mistela, de
composição indecifrável. Não havia mal ou maleita onde o resultado não fosse
prodigioso. E para que não houvesse dúvidas, os argumentos eram um primor de
explicação:
-Se bocência tem uma dor de dentes, fique a saber que não é o dente que lhe dói. O dente
é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo.
Creio que maioria das pessoas, não
acreditava naquilo, mas comprava, pelo que a vida de vendedor de ilusões ia
correndo, embora cada vez com mais dificuldades. O homem era vigarista, golpista
ou apenas um desenrascado a fazer pela vida?
CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
FLeming de Oliveira
(V)
Falar de uma festa
popular portuguesa e esquecer o número do Poço
da Morte, seria falta grave.
O primitivo Poço da Morte, era em madeira, e nele
pontificavam os motoqueiros pai, mãe e filho, já que no cartaz
aparecia a imagem dos três, como recorda Matias. Circulavam
numa estrutura cilíndrica, a girar sempre à volta até ficarem paralelos ao
chão. Era um trio de fascinantes e corajosos
aventureiros que, com os palhaços, ilusionistas e acrobatas preenchia
o imaginário e o programa de muita gente que ia à Feira. O público ficava a ver na parte superior, tendo apenas uns cabos de aço
como limite, para que numa manobra imprevista (e possível) não levasse com
eles.
Desafiavam a morte, no dizer do apresentador, cruzando-se com arrojo, audácia
e emoção a alta velocidade de olhos vendados pela bandeira portuguesa,
desfraldada triunfantemente, para gáudio da assistência e vibrantes aplausos.
Especialmente emocionantes eram as voltas de moto, com o artista (filho) sentado de lado virado para o
fundo do Poço, sem mãos no volante e
de braços cruzados. Suscitavam emoções fortes em João Matias,
que ia acompanhado pelo pai, espalhando entre os espectadores um clima de
euforia e ansiedade, apimentado pelo ruído ensurdecedor das motos sem escape e
o cheiro de gasolina mal queimada.
Uma das lembranças fortes da infância de
alguns alcobacenses é o coreto de que não sobraram vestígios, um exemplar
talvez não dos mais interessantes, mas que dominou até à década de 1920 e ao
corte dos plátanos, o principal largo da vila, o Rossio (16), isto é, o largo fronteiro ao Mosteiro. Esta praça, além dos
nomes que assumiu conforme as circunstâncias, foi bastante alterada com
intervenções mais ou menos felizes e o coreto já não está lá, graças a decisão
(pouco feliz) de Manuel Carolino (salvo erro). Foram, muitos os concertos que
ali se deram, abrilhantados pelas bandas da Cela (com o maestro Melro),
Vestearia, Pataias, Maiorga e Alcobaça, com reportório de qualidade, que
incluía música clássica, árias de óperas, marchas e peças populares de raiz
mais ou menos folclórica. As pessoas ocupavam o espaço fronteiriço imediato
onde havia choupos, as famílias passeavam e algumas levavam cadeiras, para
assistirem comodamente ao espectáculo. Mas isso já lá vai. É pena, porque a Música Ao Ar Livre (Open Air) nos
tempos da outra senhora, criava uma
atmosfera positiva e ocasionava animação. Eram espaços culturais e
sociais, numa reivindicação cíclica de nossos eruditos.
A banda, aproximava-se em passo certo,
cadenciado, largo, ao som de uma marcha. À frente vinha o maestro, muito hirto,
chapéu, fato e gravata. Rendido à música, olhos fixos no trombone, postava-se
até um homem que nesse momento se esquecia de vender jogo, apregoar a sorte grande. Indiferentes, as meninas
continuavam a venda de rifas ou fazer peditório para os bombeiros.
Os coretos fazem
parte da história urbana. Era lá que se realizavam os concertos das bandas de
música e outras apresentações. Porque será que na nossa época já não há coretos
para as bandas de música realizarem concertos? Caíram em desuso, bem sei. Hoje
preferem-se as salas de espectáculos, com condições ambientais e acústicas, som
apropriado e outros requisitos modernos. Acredito, todavia, que ainda teria
cabimento um Coreto em Alcobaça. Vi actuar bandas em coretos ou outros locais
ao ar livre (Open Air) em localidades da Europa, especialmente no verão
da Alemanha e Áustria. Porquê cá não mais, seguindo uma boa tradição
portuguesa?
Era por ali que
se realizava, ao Domingo, o concorrido Mercado Semanal, onde se vendia de tudo,
especialmente aos alcobacenses das redondezas, que se deslocavam em família,
bem aperaltados, em burros ou carros de bois. Para complementar a atracção e o
movimento, que por vezes eram tão intenso que as pessoas andavam aos
encontrões, funcionavam lojas no primeiro andar da Ala Norte do Mosteiro. Para
guardar os animais, havia locais espalhados pela vila (Piçarra, Portas de Fora
e até ao lado do Palácio do Pena), onde lhes era dado palha e recolhidas as necessidades,
para depois se vender como estrume.
Como se chegava ao mercado?
Vinha-se a pé, a cavalo, em carros de bois,
ou na carreira. O dia de mercado era
festivo. As pessoas vinham com os melhores fatos. No mercado, tudo tinha o
lugar costumeiro, nos mesmos sítios há um ror de anos. Tudo se encontrava
arrumado pela mesma ordem e na mesma hora. Os que vendiam tinham o cantinho
reservado. Os que compravam sabiam onde encontrar o que precisavam. Armavam-se
as barracas de madeira e lona onde eram expostos e vendidos a fruta,
hortícola e os manufacturados. O visitante encontrava roupa feita de lã ou
algodão, ferragens, cutelarias, calçado e chancas, bem como quinquilharias. As
mercadorias vendidas no mercado constituíam o essencial para as necessidades do
povo. Ao lado da área dos produtos que o lavrador vendia, encontrava-se a dos
produtos que o lavrador comprava. Se já não se encontra o burel, o linho ou a
estopa, não faltam num mercado dos nossos dias os tecidos de algodão, de nylon,
de terilene, os tapetes e as mantas, os produtos chineses baratos, etc..
Júlio Correia, que trabalhou muitos anos nas
obras em terras de França, lembra-se
como era o mercado do seu tempo de meninice. Comecei a vir vender tinha nove anos. Naquela altura fazia os sete
quilómetros descalço, em cima do gelo e tudo, porque o meu pai não tinha
dinheiro para me comprar sapatos, diz, adiantando que os calos que ganhou serviam de sapatos. Vinha carregado com abóboras,
feijão e outras coisas, como galinhas e coelhos, refere ainda Júlio
Correia.
No mercado semanal dos nossos dias, já não
se encontram obviamente as malgas de Málaga, da Corticeira ou de Massarelos,
mas não falta a louça inglesa e chinesa. Os utensílios em madeira estão a
desaparecer. As gamelas foram substituídas pelas bacias de plástico. Já não há
garfos de ferro. Os talheres vêm de Guimarães ou da Benedita, e os vidros se
não da Marinha Grande, talvez do Oriente. Não podemos deixar de referenciar
aqui algumas figuras típicas do mercado, como a mulher dos tremoços, a
vendedora dos doces cobertos de açúcar, o homem que reparava os guarda-chuvas,
as aguadeiras ou mesmo o aldrabão da feira (é claro o tradicional vendedor da banha de cobra) (17).
E saudades do
antigamente?
Às vezes, parece que tenho uma enorme
saudade do tempo em que as mulheres eram
donas de casa e os homens chefes de
família. Por favor, não fiquem incomodados com esta linguagem eventualmente
considerada como bafienta/reaccionária. Sei que não se pode andar para trás, e
nem acho que o caminho seja esse, mas posso considerar algumas coisas boas que
existiam e, quem sabe, adaptá-las, na medida do possível, aos nossos dias.
Presentemente, a mãe quase não tem tempo
para os filhos, coisa que as Avós têm
sempre, pois precisa trabalhar fora de casa. A sua correria mal lhe permite
momentos de descontracção em família. Muitas vezes estão todos juntos, embora
cada qual numa sala. A mãe na cozinha, o pai na sala, o filho no quarto.
Antigamente havia, aparentemente pelo menos, mais proximidade e calor nos
lares. As mulheres (e que dizer das Avós?) sabiam cozinhar e fazer coisas
apetitosas. Muitos adoravam os seus petiscos e visitas havia que chegavam, por
vezes, sem avisar.
As mulheres costuravam as roupas da família e
os maridos trabalhavam para angariar o sustento aos seus. Ambos tinham orgulho
em possuir uma família equilibrada e feliz. Faziam os possíveis e impossíveis
para que os filhos pudessem estudar e tivessem brinquedos.
Hoje em dia, por mais que se esforcem, não
lhes sobra dinheiro, pois todo faz falta. Ambos trabalham como loucos, dormem
mal, comem a correr, vivem ansiosos e com medo do futuro. Parece que todos lhes
exigem mais e depois ainda mais. A esposa insatisfeita, os filhos consumistas,
o patrão ávido de lucro. Já não se sabe onde buscar refúgio nos momentos de
desolação.
Onde será que nos perdemos? Será que é
possível começar a competir e disputar para ver quem era melhor?
Hoje muitos jovens casais ainda constroem
casas, mas não de forma empenhada na edificação do lar, porto seguro para a
criação dos filhos e convívio em família. E sofrem pelos desencontros que
poderiam ser evitados, se a visão não estivesse obstruída pelo hedonismo, onde
cada qual busca o seu prazer. Tenho saudades das bolachinhas, biscoitos ou
compota de amoras da Mãe, dos passeios com o Pai, das reuniões em família, das
cantigas de roda ou de ninar.
Aprendiam-se em casa com o(a)s avós, com as
mães, na escola com o professor primário, e era
uma alegria quando alguém sugeria cantar uma música. Actualmente, as
cantigas de roda não são cultivadas, foi hábito que se perdeu.
Tenho sim, saudades do antigamente!
CENSURA
E ESTADO NOVO,
PASSANDO
AINDA POR ALCOBAÇA
FLeming de Oliveira
(VI)
NOTAS
AO TEXTO:
(1)-Nasci no Porto, em
22 de Fevereiro de 1945. Licenciei-me pela Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, em 15 de Novembro de 1969. Fui Subdelegado do Procurador da
República, no Tribunal Cível do Porto e Delegado do Procurador da República nas
comarcas de Vila Franca do Campo, Cinfães e Arraiolos. Prestei serviço militar
na Guiné, como Alf. Mil. Inf. e no Quartel-General do CTIG/Bissau/Serviço de
Justiça. Em Bissau, comecei a exercer a Advocacia, tendo sido advogado da
respetiva Câmara Municipal. Desde 20 de Abril de 1974, resido em Alcobaça, para
onde vim trabalhar, como Advogado, no escritório do meu sogro Dr. Amílcar
Pereira de Magalhães. Fui eleito, em listas do PSD, Substituto Legal
/Vice-Presidente da CMA (1976/1979), Presidente da Assembleia Municipal
(triénio seguinte), Deputado à Assembleia da República (5 de Outubro de 1980) e
Deputado Municipal (1985). Colaboro regularmente em vários jornais, realizo
palestras e conferências sobre temas históricos, e já participei num Congresso
Internacional. Fui fundador e autor dos estatutos de algumas entidades do
Concelho de Alcobaça e ainda cofundador do PSD (Leiria e Alcobaça). Ultimamente
tenho feito alguma crítica literária, para editoras nacionais.
(2)-A
outra senhora, não significa aqui nem
censura, nem ditadura, mas, sim, um outro
tempo. Quando muda um
regime político, mudam as leis, muda a forma de organização do país e,
começa-se, então, a falar do tempo da
outra senhora quando se pretende
referir situações relativas a essa época, que agora não existem ou foram
alteradas.
(3)-Na
Serra dos Milhafres, em finais dos anos de 1940. O Estado Novo resolveu impor
aos beirões uma lei: pela qual os terrenos baldios, sempre utilizados para
bem/serviço comunitário e de onde a comunidade retirava parte fundamental do
sustento, seriam expropriados e utilizados para o plantio de pinheiros.
Implantou-se um clima de medo nas pessoas e é isso clima que Manuel Louvadeus,
emigrado no Brasil anos antes, veio encontrar quando regressou à aldeia. Homem
vivido e culto devido, segundo o próprio, aos livros que havia lido, Manuel
tinha uma visão abrangente e um sentido de justiça que rapidamente o fizeram
cair nas boas graças do povo, pessoas honestas e humildes que trabalhavam de
sol a sol,mas que não deixavam de viver em condições miseráveis.
A revolta acaba por eclodir e entre
mortos e feridos, acabou numa caçada aos homens por parte da polícia que levou
muitos à prisão, acusados de instigadores e cérebros da revolta. O Estado
mostrou o seu esplendoroso poder.
Recebeu o Prémio Nobel
de Literatura em
1952, em reconhecimento dà profunda
impregnação espiritual e artística com que seus romances penetraram o drama da
vida humana. Estudou em Bordeus na escola Des Marianistes e no liceu Grand-Lebrun, de formação católica,
Mauriac reflete a influência de Pascal e Francis
Jammes, um conflito
trágico entre o amor da religião e as tentações. Sobre ele disse Otto
Maria Carpeaux,: Mauriac é um mestre, ninguém negará este
título ao autor de numerosos romances tão
fascinantes como Thérèse Desqueyroux e Le Noeud de Vipères, que desnudam com
força incomparável as almas pecadoras (...). Ele é assim o maior representante do
romance psicológico da tradição francesa.
Iniciou a carreira em 1909, com um livro de poemas Les Mains Jointes. Publicou estudos
biográficos e críticos, colaborou em revistas e jornais, tendo mantido por
muitos anos seu Bloc Notes, coluna publicada inicialmente no jornal La Table ronde, depois no Le Figaro, e a partir de 1955 na revista
L'Express. François Mauriac entrou
para a Academia Francesa de Letras, em 1933, ocupando a cadeira 22.
Entre suas obras de cunho crítico, destaca-se um famoso
ensaio contra a pena de morte, que levou a uma coleta de assinaturas pelo fim
da pena de morte na França, após a II
Guerra . Albert Camus, entre outros, participou assinando a petição.
(5)-Panglossicante é uma
expressão que diz respeito ao Doutor Pangloss (personagem do romance Candide, de Voltaire), que professava um
otimismo beato, e para quem tudo parecia correr às mil maravilhas, otimistamente.
(6)-Estes tribunais tiveram origem na revolução e ditadura militar de 1926 e
que levou à instalação do Estado Novo e do Salazarismo. Tão esquecidos parecem,
que juízes desses tribunais transitaram, tranquilos, para a democracia, muitos
chegaram aos pontos mais altos da magistratura nacional, nunca foram
responsabilizados, seja pelo MFA, Junta de Salvação Nacional ou Ministério da
Justiça, não obstante o respetivo Ministro ter sido várias vezes Almeida
Santos.
Data de 1945 a
criação dos Tribunais Plenários de Lisboa e do Porto. Destinavam-se a julgar
acusações e delações contra a segurança do Estado e, ainda, processos de
liberdade de imprensa, não apenas circunscritos a matéria editada em jornais e
revistas mas também em livros e outras publicações.
Logo que foi
implantada a ditadura militar de 28 de Maio de 1926, restringiram-se as
liberdades constitucionais, estabeleceu-se a censura, preparou-se uma polícia
política. Sob a alçada do foro militar ficaram os processos políticos. Quando
Salazar a 5 de julho de 1932 ascendeu a chefe do Governo, foram criados em Lisboa
e Porto, em Dezembro de 1932, os Tribunais Militares Especiais para os crimes
políticos.
O pós II Guerra,
levou Salazar a procurar um novo rosto político para o Estado e regime. Em 20
de Outubro de 1945 acabaram os tribunais militares especiais. Deram lugar aos
tribunais plenários de Lisboa e do Porto. Dois dias depois da
institucionalização, outro decreto-lei atribuía à PIDE a exclusiva competência
para a instrução dos processos.
Continuava a
recorrer aos mesmos métodos e a aperfeiçoá-los para extorquir e forjar
confissões.
Para completar a
aliança da justiça com a polícia política, haviam sido, igualmente, decretadas
medidas de segurança, que a PIDE (por sua iniciativa ou através do Ministério
do Interior) propunha, os Tribunais Plenários deferiam, a PIDE, a seguir,
executava e prorrogava arbitrariamente.
A esmagadora maioria
das testemunhas nos processos são elementos da PIDE. Para a defesa dos
arguidos, os advogados também indicavam normalmente inspectores, chefes de
brigada e agentes da PIDE que haviam feito a investigação. Todavia, raramente
compareciam no julgamento, sob a alegação de estarem ausentes em serviço
urgente.
As audiências eram,
praticamente, vedadas ao público. Antes de começar o julgamento, os lugares da
sala encontravam-se ocupados por elementos da PIDE. A pretexto da lotação estar
esgotada, a PSP, à porta, impedia o acesso a familiares, amigos e jornalistas.
Centenas de
advogados (entre os quais Alexandre Babo, Sebastião Ribeiro, Luso Soares,
Duarte Vidal ou Salgado Zenha insurgiram-se por escrito e em público) contra o
funcionamento dos tribunais plenários e a actuação da PIDE.
Quando Almeida Santos era ministro da Justiça,
incumbiu-me de fazer um livro acerca da história e funcionamento dos plenários, declarou ao DN o Dr. Manuel
João Palma Carlos E acrescentou: Não está
em causa o empenhamento de Almeida Santos, mas houve um sistemático adiamento,
subterfúgios grosseiros ou, então, a recusa do envio de elementos fundamentais
que eu solicitava aos arquivos, desde os dos juízos dos tribunais de Lisboa e
do Porto até à Comissão de Extinção da PIDE/DGS.
Manuel João Palma
Carlos observou: Não pude, portanto,
concretizar o projecto. Deixei de estar na Procuradoria-Geral da República,
mandaram-me para embaixador em Cuba e fiquei a milhas de distância dos
julgamentos dos pides
Muito mais grave ainda, concluiu Manuel João Palma
Carlos, com o 25 de Abril, membros
activos dos plenários ascenderam ao Supremo Tribunal de Justiça
Durante quase três
décadas, elevado número de juízes, agentes do Ministério Público e quadros da
PIDE mantiveram uma colaboração recíproca. Essa cumplicidade de magistrados com
a polícia política ficou denunciada em páginas vigorosas de Aquilino Ribeiro,
em Quando os Lobos Uivam,
É uma peça memorável, que honra a advocacia portuguesa, escreveu Mário Soares, a
propósito da defesa de Aquilino feita pelo advogado Heliodoro Caldeira, ao
desmontar o processo iniciado na Polícia.
No Plenário de Lisboa, escreveu Alexandre Babo, muitas vezes os réus foram espancados pelos
agentes da PIDE durante os julgamentos e arrancados dali à força, quando
exigiam apresentar as suas razões. E isto com a aquiescência dos juízes que
constituíam o tribunal.
(7)-Manuel
João da Palma Carlos, nasceu em Bucelas a 24 de Junho de 1915 e era irmão do 1º
Primeiro-Ministro após o 25 de Abril, Adelino da Palma Carlos. Morreu aos 86
anos, durante um incêndio ocorrido num lar de idosos de Birre, aonde vivia.
Manuel João da Palma Carlos, antifascista militante e
vítima da repressão salazarista, foi um dos advogados que mais presos políticos
defendeu nos Tribunais Plenários e um dos poucos que, primeiro, intervieram nos
Tribunais Militares especiais (anteriores a 1945) e, depois, nos Plenários de
Lisboa e Porto (desde o seu início até 1974). Foi também um dos mais destemidos
e frontais, no desmascaramento da repressão e da torturas aos presos, nos
Tribunais e fora deles.
(8)-José Augusto
Rodrigues França nasceu em Tomar, a 16 de Novembro de 1922.
O seu interesse pela pintura manifestou-se em 1946 na
sequência de viagens a Espanha e Paris, tendo realizado outras viagens à Europa
e às Américas até se fixar em Paris em 1959. Nas décadas de 1940 e 1950 foi uma
das figuras mais dinâmicas e influentes da vida cultural portuguesa. Entre 1947
e 1949 participou nas atividades do Grupo Surrealista de Lisboa, tendo um papel polémico de oposição aos neorrealistas. Na década seguinte seria um defensor da arte abstrata, cujo primeiro salão nacional organizou, na Galeria
de Março, que dirigiu entre
1952 e 1954. Publicou os seus primeiros artigos de crítica de arte no Horizonte,
Jornal das Artes, tendo a partir daí
uma extensa colaboração em jornais e revistas da especialidade de onde podem
destacar-se: Unicórnio (1951-1956); Art d’Aujourd’hui; KWY; Colóquio/Artes (que dirigiu entre 1970 e 1996); etc. Dirigiu o Centro
Cultural Português em Paris (1980-86). O seu nome consta na lista de
colaboradores da Revista Municipal (1939-1973) publicada pela Câmara
Municipal de Lisboa.
Lecionou na Sociedade
Nacional de Belas Artes. Foi professor
catedrático da Universidade Nova de Lisboa (desde 1974), onde criou os
primeiros mestrados de História de Arte do país. Antigo presidente da Academia
Nacional de Belas Artes, membro do Comité Internacional d’Histoire de l’Art e
presidente de honra da Association Internationale des Critiques d’Art.
(9)-A criação da Sociedade Portuguesa de Escritores/SPE teve na origem uma iniciativa de Aquilino Ribeiro e Ferreira
de Castro, que, em 30 de
abril de 1954, dirigiram aos seus confrades (escritores) uma circular propondo
a realização de uma reunião para trocar impressões sobre a criação de uma
sociedade de escritores.
Na sequência das reuniões realizadas em 6 de maio e em 2
de junho de 1954 ,foram aprovados os Estatutos que, nos termos da legislação
vigente, tinham de ser objeto de homologação ministerial, o que só ocorreu em 4
de julho de 1956. Em 1965, a SPE, presidida por Jacinto
do Prado Coelho, atribuiu o Grande
Prémio de Novela ao escritor Luandino Vieira, detido no Tarrafal pela atividade desenvolvida como membro do Movimento Popular de Libertação de Angola/MPLA. Os jornais do país noticiaram o galardão sem
perceberem que o escritor premiado era um preso político, pelo que quando a
Direcção dos Serviços de Censura detetou o facto, proibiu referências ao
prémio.
Na sequência da atribuição deste prémio a Luandino
Vieira, a SPE foi extinta, por despacho, de 21 de maio de 1965, do Ministro da
Educação Nacional .
(10)-No dia 22 de Julho de 1946, a
edição semanal da revista americana TIME dedicou
a sua primeira página a António de Oliveira Salazar. Em manchete, o artigo referia: Portugal
Salazar's: Dean of Dictators – How Bad is the Best? ("Até que ponto o melhor de
Portugal é mau"). O número de Julho foi retirado do mercado
nacional e, por seis anos foi proibida a sua venda em Portugal.
Na capa da revista à
esquerda de uma imagem de Salazar, a revista colocou uma maçã aparentemente
viçosa, mas repleta de bichos no interior. Era a metáfora escolhida para
ilustrar a mais antiga ditadura da Europa. No texto, referia-se que, com “duas
décadas de ditadura, Portugal era uma terra melancólica de pessoas
empobrecidas, confusas e assustadas”.
A 27 de Agosto de
1946, um despacho PIDE, ratificado pelo Secretariado de Propaganda Nacional,
deu ordem imediata a um dos autores da peça Saponti para abandonar o país até 3
de Setembro. Enquanto este lutava contra a extradição, foi-lhe dito pela PIDE
que poderia evitá-la, caso se demitisse da TIME. O italiano recusou.
A venda da revista
foi proibida em território nacional, todos os exemplares ainda por vender foram
apreendidos e a PIDE recebeu ordens para confiscar as revistas que viessem a
ser encontradas em domicílios privados. Saporiti conseguiu adiar a expulsão por
mais um mês, tendo abandonado Lisboa de barco no dia 3 de Outubro.
Teve a educação típica dos príncipes europeus da época,
iniciando desde jovem a carreira militar no exército italiano. Já sob a
vigência da ditadura de Benito Mussolini, Humberto viria a ascender à patente de general. Casou,
em 8 de janeiro de 1930, na Capela Paulina do Palácio
do Quirinal, em Roma, com a princesa Maria
José, filha do rei Alberto
I, da Bélgica, de quem teve
quatro filhos: Embora se tenha
mantido afastado dos fascistas, comandou alguns regimentos quando da
participação a Itália na Guerra. Após
a libertação do país da ocupação nazi, Humberto foi nomeado Tenente-General do Reino, em junho de 1944, quando a figura de
seu pai estava já bastante desgastada, dada a passividade mostrara com
Mussolini. Em 9 de maio de 1946, tornou-se rei
de Itália, após a abdicação
de seu pai, numa última tentativa de salvar a monarquia.
Reinou apenas durante um mês, pois em 2 de junho seguinte, os italianos pronunciaram-se, em referendo, pela instauração da República. Dias depois o rei seguiu para o exílio, instalando-se em Cascais, nunca lhe tendo
sido concedida autorização para regressar a Itália.
Faleceu em 1983 em Geneve.
(12)-Biquíni é um conjunto de duas peças de banho,
de tamanhos reduzidos, que cobrem o busto e a parte inferior do tronco
femininos. O nome deriva do pequeno atol de Bikini, no Pacífico, usado para testes com bombas
nucleares, e em 5 de julho de 1946 ocorreu o lançamento desta peça de
banho, numa piscina de Paris. Assim,
pretendia-se propor que a mulher de biquíni provocava o efeito de uma bomba atómica.
(13)-Na
Cela Velha, destaca-se a Quinta da Cela Velha,
o que resta de uma antiga granja atualmente também designada como Quinta Humberto Delgado e que tem
resistido na traça primitiva. É ainda na cerca desta Quinta que se situa a
Capela de S. Bento, a única das dez ermidas, cuja construção data dos primórdios
da nacionalidade, embora existam referências mais ou menos lendárias que
atribuem a sua construção ao ano 714 da nossa era. Certo é que esta ermida, se
trata do mais antigo templo existente na freguesia da Cela e um dos mais
antigos no concelho. O interesse e valor desta capela particular está na sua
antiguidade e na sua história, quanto ao resto trata-se de um pequeno templo de
linhas simples e sem grandes ornamentos, não aberto ao público.
A
Quinta da Cela Velha pertence aos herdeiros de Humberto Delgado e está situada
num dos montes ribanceiros com vista sobre os Campos da Cela.
(14)-Nos Montes
realizam-se festas tradicionais em honra dos santos padroeiros:
As festas de aniversário da Associação Recreativa
Montense são realizadas durante o mês de Julho.
Realizou-se durante vários anos uma interessante feira
denominada Feira da Fruta que à boa
moda teve poucas edições, cada vez menos
interessantes.
(15)-Nesta região,
a Adiafa é uma refeição melhorada
distribuída aos trabalhadores depois de conclusão da colheita de uvas, em que
participavam à mesma mesa patrões e servos
Mas também pode significar, embora numa expressão menos
usual, uma gratificação dada aos trabalhadores após a conclusão de um
trabalho agrícola.
(16)-Existem em Portugal vários rossios. Genericamente,
Rossio é um grande terreiro para diversão, fruído em comum pelo povo. Estação do Rossio, Praça do Rossio, Rossio
ao Sul do Tejo, etc..
(17)-Segundo a tradição, a banha da cobra é um fenómeno americano, embora pareça ter tido origem em
Inglaterra.
Por volta de 1750, mais de 200 remédios encontravam-se
protegidos em Inglaterra por este tipo de elixir, utilizado no tratamento do
estômago fraco ou da falta de apetite.
Em meados do Sec XIX, produziam-se já notáveis analgésicos e
curas para doenças, como a cólera. Na verdade, o próprio curativo universalcura tudo foi utilizado em praticamente todo o
mundo, quando a cólera se tornou epidémica. O mercado dos medicamentos
rapidamente foi invadido por todo o tipo de preparados bizarros e assombrosos.
Grandes espectáculos de apresentação de remédios, percorriam a nação, erguendo
as tendas nas respetivas cidades.
A partir de certa altura, o acto de vender tornou-se mais
fascinante do que o produto comercializado, e os charlatães dos remédios
tornaram-se artistas de espectáculo, chegando a aparecer nos espectáculos de
circo de Barnum e Bailey.
A maioria dos remédios
não continha qualquer banha da cobra.
O nome era simplesmente utilizado para transmitir a ideia de que a droga se
baseava no conhecimento secreto dos nativos americanos. Algumas, porém,
continham mesmo genuína banha da cobra.
A verdadeira banha da cobra era tida
em alto valor, e, em 1880, John Geer, um conhecido caçador e amestrador de
cobras, explicou ao repórter como matava cascavéis, extraía a gordura e a
vendia por um dólar a onça.
Clark Stanley, também conhecido por Rei da Cascavel, comercializava o Linimento de Banha da Cobra, que se afirmava ser bom para homens e animais. Numa
apresentação em 1893, manteve multidões suspensas, ao matar centenas de
cascavéis, espremer os seus fluidos para frascos e criar mais um cura-tudo. As suas próprias campanhas de
publicidade explicavam como este remédio era um maravilhoso composto destruidor da dor; o mais forte e o melhor,
capaz de curar dores de costas, lumbago, músculos contraídos, dor de dentes,
entorses, inchaços. Stanley afirmava ter adquirido a receita de um Moki, um
homem-medicina dos índios Pueblo, o que é de facto possível, pois os nativos
americanos tinham fama de tratar problemas de saúde com banha da cobra, e aplicavam gordura de cascavel às áreas atingidas.
Em 1905, o disparate instalara-se verdadeiramente, como se
pode deduzir do artigo de jornal intitulado A
Grande Fraude Americana, publicado no reputado Collier’s Magazine. Samuel Hopkins Adams, autor do artigo, demolia
a charlatanice numa peça
avassaladora, bem documentada e investigada. Devido ao facto de uma grande
parte do conteúdo dos medicamentos à base de banha da cobra ser o álcool, houve um pequeno ressurgimento de
popularidade durante o período da Lei Seca, mas quando esta foi abolida, os
avanços da medicina selaram o destino da banha
de cobra.
Banha da Cobra passou a ser, apenas, uma expressão
conotada com aldrabice, charlatanice.