O CONSELHEIRO ACÁCIO E
EÇA DE QUEIROZ
Fleming
de OLiveira
(I)

Este é um tema que
me interessa particularmente, seguramente por deformação profissional.
Eça criticava a
solenidade forense, que obrigava os advogados a discutir e tentar convencer
gente vulgar, para além de acompanhar o andamento do processo no Tribunal, num
ambiente mais parecido com uma feira, onde não faltavam testemunhas profissionais,
confusão e tumulto.
Na verdade, Eça não
era pessonlidade que, com a sua inteligência e finura, descesse a falar de
igual para igual para convencer o padeiro ou jornaleiro que se sentava na
bancada de jurados, enfim, incapaz de discutir ou de raciocinar com quem
estivesse muito longe do seu talento e cultura.
Eça, encarnava,
outrossim, a cultura, a elegância, a arte e a vida civilizada, pelo que tendo
em conta as suas amplas relações, utilizava na ironia uma poderosa arma de
ataque e de defesa.
Não admira pois que
tivesse feito de juízes, advogados, escrivães, meirinhos e delegados seres
venais e ridículos, incomparáveis caricaturas. Mas, salvo melhor opinião, a
ideia de Eça não era tanto atacar a classe, mas ir ao fundo deste ou daquele
tipo, abordar um caso patológico.
Coloca
os “Bacharéis” requisitados pelos conflitos
da intriga amorosa, pelos “embargos de
terceiros”, pelo jogo das palavras e da malícia, venerando o direito com
ironia e desdém.
O “Bacharel”
era o molusco adaptável, contemplativo, videirinho, a alma torpedo do
Silveirinha formada por um misticismo ridículo, entre catadupas de
imbecilidade, nas mais conspícuas senhoras devotas com a lubrificação do unto
das batinas.
O “Bacharel” cumpria a carreira, com um
estágio conquistando o diploma, para depois ingressar, logo que possível, na
magistratura. Com o diploma de bacharel, quem não fosse capaz de fazer carreira
na advocacia, por falta de talento ou outras qualidades para a dura luta do
dia-a-dia no foro, ia para a magistratura, que conferia uma vida com um mínimo
de existência garantido, mais tranquila e cómoda, mais acessível a fazer e
receber favores e onde os disparates eram, afinal, doutos erros. Instalado nessa vida, o “Bacharel” virava “Meritíssimo”
ou “Digníssimo Juiz”.
Outro caminho, era a
política pelas mãos de um sogro influente ou de um parente ministro.
O Conselheiro
Acácio, a quem deu um relevo especial em O Primo Basílio, e eu aqui (é de certo
modo o núcleo, básico, deste apontamento), é descrito como um homem “alto, magro, vestido todo de
preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo,
ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto. Tingia
os cabelos, que de uma orelha à outra lhe faziam colar para trás da nuca; e
aquele preto lustroso dava, pelo contraste, maior brilho à calva; mas não
tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito
pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as
orelhas muito grandes, muito despegadas do crânio”.
CONTINUA
O CONSELHEIRO ACÁCIO E
EÇA DE QUEIROZ
Fleming
de OLiveira
(II)

O Conselheiro Acácio
também pode ser o exemplo do “Bacharel”, que
muito fala, pouco diz, nada pensa, tudo reproduz.
Nascido e criado em
Lisboa, Acácio era um solteirão sem família, aposentado do cargo de
Director-geral do Ministério do Reino, que vivia num terceiro andar da Rua do
Ferregial, amancebado com a criada, que de suas coisas cuidava, mas que
entretanto o atraiçoava. O Conselheiro resistia ao mesmo tempo às investidas de
Dona Felicidade, por ele apaixonada. Senhor de gestos medidos, calculava,
inclusive, o modo como inalava o inseparável rapé.
Expressava-se o
Conselheiro Acácio, com chavões e elaboradas frases vazias e muitas citações.
Com gestos medidos e cerimoniosos, jamais usava palavras triviais. Não dizia “vomitar”, antes fazia um gesto
indicativo e empregava o termo “restituir”.
Assinante do S.
Carlos havia dezoito anos, conhecia a sociedade frequentadora da ópera e a
intelectualidade da moda. Nas suas constantes citações, dizia “o nosso
Garret”, “o nosso Herculano” e falava incessantemente das “nossas virtudes pátrias”. Despedia-se das pessoas sempre com o mesmo tratamento,
“Al rivedere, como dizem os italianos”
ou, então, à simples menção de Lisboa, disparava “cidade de mármore e de granito, na frase sublime de nosso grande
historiador”. Toda vez que o nome do Rei era pronunciado, o
Conselheiro erguia-se da cadeira.
Tinha sido feito
Cavaleiro da Ordem de Santiago, em atenção “aos seus grandes merecimentos
literários e às obras publicadas, de reconhecida utilidade”, no campo da
economia política. Era autor das seguintes obras: “Elementos Genéricos da Ciência da
Riqueza e Sua Distribuição”, com o subtítulo “Segundo os Melhores Autores e Leituras
do Serão”, da “Relação de
Todos os Ministros do Estado desde o Grande Marquês de Pombal até Nossos Dias
com Datas Cuidadosamente Averiguadas de Seus Nascimentos e Óbitos”, e de uma volumosa “Descrição Pitoresca das Principais
Cidades de Portugal e Seus Mais Famosos Estabelecimentos”. É um burocrata,
que adora carimbos, despachos, fichas e relatórios que não servem para nada.
CONTINUA
O CONSELHEIRO ACÁCIO E
EÇA DE QUEIROZ
Fleming
de OLiveira
(III)

É de seu nome
próprio, Acácio, que se construiu o adjetivo, “acaciano”, identificador de tautologias e redundâncias. O
Conselheiro Acácio é o próprio cerne do bacharelismo oco.
O Conselheiro
Acácio, que sempre foi censurado, criticado, e de quem se riu, não passa
todavia, além dos limites de uma criação literária, da síntese identificadora
das frustrações e ressentimentos que todos temos e vivemos.
É uma abatida figura
que pede ajuda, compreensão e carinho.
É um homem triste,
como por vezes triste foi também Eça, como triste foi às vezes o Portugal do
século XIX, e como tristes somos na inutilidade dos bons conhecimentos que
pensamos possuirmos. A obra de Eça não foi um conjunto de odes elegíacas sobre
Portugal, não é uma escrita “com a tinta
azul clara qual Júlio Diniz”.
Encontrando-me nas lides forenses há mais de quarenta anos
(como antigo Magistrado do MP e Advogado), vejo e revejo, esse “personagem acaciano”, ora na figura de
um Advogado, ora entre Procuradores e Juízes.
Nos escritos, sejam requerimentos, arrazoados ou sentenças, a
forma “acaciana” apropria-se do texto
e das reduzidas ideias, através da repetição de frases e expressões que julga
conferir distinção mas que, geralmente, é um deserto de lógica ou de conteúdo.
O estilo é deplorável, tanto pelo exagero, como pela falta de erudição, supostamente
suprida pela verborragia e citações,
preferencialmente em latim.
É verdade que uma classe
desses profissionais está ainda em franca atividade, pelo que não houve dia em
que não me deparasse com um “acaciano”
a repetir chavões e lugares comuns, aparentando sabedoria, quando não passava
de criatura medíocre, que vivia a repetir frases e expressões banais, ocas e
triviais, e, às vezes, até ridículas, proferidas em tom catedrático.
Um consolo, entretanto,
relevo aqui.
É quase impossível que qualquer um não se tenha
cruzado, alguma vez, com um tipo género Conselheiro Acácio. Eles estão por
todos os lados, na vida privada e na pública, enchendo os nossos ouvidos com
clichês que, às vezes, beiram o ridículo.
O Acácio “original” fazia de tudo para se mostrar
educado, de fácil trato, simpático.
Reencarnado,
perde a graça.
Resta nele,
apenas, o vazio.
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