Isto não é letra de
fado
FLeming de OLiveira
Diz-se que um escritor
americano, cujo nome não recordo, inventou uma definição para os lugares intermédios entre os de trabalho
e o círculo da família. Chama-lhes pátria
da conversa e referia-se a bares, cafés, etc, sítios onde as pessoas se
encontram para beber um copo, petiscar e, sobretudo, conviver. Em Portugal,
tendo em conta a escala e hábitos, já foram rotulados como o fórum dos pobres.
Seguramente,
e não estavam a pensar nisso, estes enquadramentos adaptam-se bem à função
social dos tascos e tabernas na vida portuguesa do antigamente, não apenas nos
meios rurais, mas também na cidade. Embora a minha família “tripeira” os não frequentasse, sabia
como eram espaços de encontro e de conversa, lugares para espantar a solidão,
salas de jogo da bisca, da sueca e de leitura do Jornal de Notícias, quando o
tasqueiro assim o comprava. Eram fundamentalmente “santuários” de comes e bebes baratos e à descrição, embora
afastados da fama que os associava a antros de perdição. Na cidade compacta
onde vivi, popular e operária, nos largos e ruas onde havia gente, os tascos
constituíam elementos fundamentais ao equilíbrio dos lazeres e da estabilidade
em que a comunidade se arrumava a horas ou fora delas. Na cidade, engolidos na
enxurrada do desordenamento e da fuga dos habitantes para a periferia, a
maioria dos tascos desapareceu no estilhaçar de territórios que faziam a
comunidade inclusiva. Nos meios rurais, por mimetismo ou razões alegadamente de
progresso, também desapareceram ou perderam as características. Não, não
conheço nenhum tasco interessante em Alcobaça.
Quando
vou ao Porto, gosto de dar um giro na companhia de um cunhado que se virou para
Lisboa e por razões profissionais até tem de “torcer” pelo Benfica, por alguns desses espaços que resistem descaracterizados,
mas que devem ser encarados como património e locais de memória da história e
identidade da “minha” cidade, mais do
que propriamente a “minha”
personalidade. Aí encontro uns bolinhos de bacalhau (grandes e feitos sem
batota), umas iscas, um verde tinto servido à maneira numas canequinhas de
barro ou um serrabulho em malguinhas de metal, tudo acompanhado com uma bela
broa.
Nunca tive uma visão
fadista e fatalista da realidade que me desculpem os admiradores do fado
triste. Também não aprecio a queda para o coitadinho. Mas uma coisa é achar que
a vida não é fado - prefiro o malhão, o
fandango ou o vira do Minho- outra a
ignorar as dificuldades dos muitos que andam por aí. Na minha infância
portuense não a senti, mas vi fome escancarada em certas zonas do burgo, por
vezes em níveis absolutamente insuportáveis. Ainda hoje me persegue a imagem de
uma mulher caída no centro da cidade, lá para os lados da Rua de Santa
Catarina, desmaiada de fome, mas que alegadamente u8m polícia municipal dizia
que fora da queda.
Tirando
isso, a primeira vez que vi bandos de garotos, quais sombras silenciosas, a
comer restos de comida em caixotes de rua foi no Brasil, em S. Paulo, ao raiar
da madrugada, nas traseiras do meu hotel na Avenida Paulista. Isto foi há uns
30 anos e pensei que não voltaria a ver tal espetáculo. Enganei-me. Por obra de
uma democracia que já se dizia de sucesso e de “democratas” que a tomaram de assalto em beneficio próprio ou dos
interesses que representam, reencontrei nas ruas de Portugal a certas horas e
locais, imagens e indignidade que a sordidez da miséria arrasta.
Honra
seja feita ao Presidente Marcelo na vigorosa e emocionante campanha que tem
desenvolvido para tentar por cobro a esta tragédia, e não me venham certos
políticos, muito tecnocratas, dizer que estão assim porque gostam, não querem
trabalhar, etc, etc.
Enquanto
isto se mantiver e o autismo do Terreiro do Paço prosseguir no desmantelamento
de uma sociedade com valores estabelecidos e o Presidente da República não
conseguir levar a bom termo a sua missão, receio mesmo que um dia destes não
sejam apenas os sem-abrigo a comer dos caixotes do lixo.
Amigos leitores, isto não é letra de fado.
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