sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Isto não é letra de Fado




Isto não é letra de fado

FLeming de OLiveira

Diz-se que um escritor americano, cujo nome não recordo, inventou uma definição para os lugares intermédios entre os de trabalho e o círculo da família. Chama-lhes pátria da conversa e referia-se a bares, cafés, etc, sítios onde as pessoas se encontram para beber um copo, petiscar e, sobretudo, conviver. Em Portugal, tendo em conta a escala e hábitos, já foram rotulados como o fórum dos pobres.
Seguramente, e não estavam a pensar nisso, estes enquadramentos adaptam-se bem à função social dos tascos e tabernas na vida portuguesa do antigamente, não apenas nos meios rurais, mas também na cidade. Embora a minha família “tripeira” os não frequentasse, sabia como eram espaços de encontro e de conversa, lugares para espantar a solidão, salas de jogo da bisca, da sueca e de leitura do Jornal de Notícias, quando o tasqueiro assim o comprava. Eram fundamentalmente “santuários” de comes e bebes baratos e à descrição, embora afastados da fama que os associava a antros de perdição. Na cidade compacta onde vivi, popular e operária, nos largos e ruas onde havia gente, os tascos constituíam elementos fundamentais ao equilíbrio dos lazeres e da estabilidade em que a comunidade se arrumava a horas ou fora delas. Na cidade, engolidos na enxurrada do desordenamento e da fuga dos habitantes para a periferia, a maioria dos tascos desapareceu no estilhaçar de territórios que faziam a comunidade inclusiva. Nos meios rurais, por mimetismo ou razões alegadamente de progresso, também desapareceram ou perderam as características. Não, não conheço nenhum tasco interessante em Alcobaça.
Quando vou ao Porto, gosto de dar um giro na companhia de um cunhado que se virou para Lisboa e por razões profissionais até tem de “torcer” pelo Benfica, por alguns desses espaços que resistem descaracterizados, mas que devem ser encarados como património e locais de memória da história e identidade da “minha” cidade, mais do que propriamente a “minha” personalidade. Aí encontro uns bolinhos de bacalhau (grandes e feitos sem batota), umas iscas, um verde tinto servido à maneira numas canequinhas de barro ou um serrabulho em malguinhas de metal, tudo acompanhado com uma bela broa.

Nunca tive uma visão fadista e fatalista da realidade que me desculpem os admiradores do fado triste. Também não aprecio a queda para o coitadinho. Mas uma coisa é achar que a vida não é fado -  prefiro o malhão, o fandango ou o vira do Minho-  outra a ignorar as dificuldades dos muitos que andam por aí. Na minha infância portuense não a senti, mas vi fome escancarada em certas zonas do burgo, por vezes em níveis absolutamente insuportáveis. Ainda hoje me persegue a imagem de uma mulher caída no centro da cidade, lá para os lados da Rua de Santa Catarina, desmaiada de fome, mas que alegadamente u8m polícia municipal dizia que fora da queda.
Tirando isso, a primeira vez que vi bandos de garotos, quais sombras silenciosas, a comer restos de comida em caixotes de rua foi no Brasil, em S. Paulo, ao raiar da madrugada, nas traseiras do meu hotel na Avenida Paulista. Isto foi há uns 30 anos e pensei que não voltaria a ver tal espetáculo. Enganei-me. Por obra de uma democracia que já se dizia de sucesso e de “democratas” que a tomaram de assalto em beneficio próprio ou dos interesses que representam, reencontrei nas ruas de Portugal a certas horas e locais, imagens e indignidade que a sordidez da miséria arrasta.
Honra seja feita ao Presidente Marcelo na vigorosa e emocionante campanha que tem desenvolvido para tentar por cobro a esta tragédia, e não me venham certos políticos, muito tecnocratas, dizer que estão assim porque gostam, não querem trabalhar, etc, etc.
Enquanto isto se mantiver e o autismo do Terreiro do Paço prosseguir no desmantelamento de uma sociedade com valores estabelecidos e o Presidente da República não conseguir levar a bom termo a sua missão, receio mesmo que um dia destes não sejam apenas os sem-abrigo a comer dos caixotes do lixo.
 Amigos leitores, isto não é letra de fado.


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