O VISCONDE DE SEABRA,
A BIBLIOTECA DO MOSTEIRO E
O FURTO DOS CÓDICES ALCOBACENSES DA BIBLIOTECA NACIONAL
FLEMING DE
OLIVEIRA
Ao tomarem a defesa do absolutismo, os Monges de Alcobaça
foram atingidos, pela queda de D. Miguel.
Aliás, já estavam condenados.
Com o século XVII, e especial
incidência no que se segue, acentuara-se a decadência moral e religiosa das
Ordens, as quais faltou uma reforma eficaz, e não obstante continuarem a alegar
o culto da virtude, da piedade ou assumir mesmo funções de benemerência social,
ainda mais que supletivamente, caminhavam inexoravelmente para o fim.
No dia 5 de
Agosto de 1830, D. Miguel empreendeu, uma visita de vários dias ao Oeste, objetivando os Coutos de
Alcobaça, lugar simbólico da aliança entre a Monarquia e a Igreja. Não se
conhece qual foi, propriamente, a razão desta visita, mas não é de afastar que
tenha tido interesse em conhecer a História do País e aproveitar para fazer
apologia da Causa ([1]).
No dia 8 de Agosto, o Rei e comitiva
partiram de Caldas da Rainha para Alcobaça, depois de terem passado por S.
Martinho do Porto, num caminho mandado aprontar
pelo Corregedor da Comarca. O quarto de dormir do Rei e sala contígua foram
forrados a damasco e atapetados, tal como os dois quartos destinado aos
Secretários. No dia seguinte, a comitiva rumou à Nazaré, com paragens em
Aljubarrota, Batalha e Marinha Grande (terra de engenhos de vidro), sendo
que, no dia 10 regressou a Caldas da Rainha.
Nesse Domingo, por volta das 14
horas, o Rei chegou a Alcobaça, na companhia dos Marqueses de Belas e Tancos,
encontrando-se já à espera o Marquês d’Alvito, Estribeiro-Mor. A restante
comitiva, Capelão, Secretário do Gabinete, Marqueses, criados particulares do
Rei e outros, que tinha partido antes, também já se encontrava à espera. Em
Alcobaça, as janelas encontravam-se decoradas com cobertas de damasco e outras sedas, as
casas e muros caiados, enquanto se ouvia um vibrante repicar dos sinos,
estralejar de foguetes e vivas da populaça que viera das redondezas. Tempos
depois, possivelmente muitos destes populares, estavam a assaltar e pilhar o
Mosteiro, dar Morte a D. Miguel e Vivas ao Liberalismo.
O Rei apeou à escada do patim da
Igreja, onde se encontrava o Abade Geral de Cister. Quem o recebeu com
honrarias, foram também os dignitários locais, como o Juiz de Fora, o
Corregedor da Comarca, o Provedor e o indefetível Frei Fortunato de S.
Boaventura. Debaixo do pálio, à porta da Igreja, D. Miguel beijou a cruz,
ajoelhou numa almofada de veludo, recebeu Água-benta e incenso e, ao som do Te
Deum Laudamus, dirigiu-se ao Altar-Mor, para Abertura do Sacrário e Tantum Ergo.
Acabada a cerimónia, o Rei recolheu ao quarto e prometeu um Beija-mão, numa improvisada Sala do
Dossel. Mandou ainda libertar os presos, depois de se assegurar, pelo Juiz de
Fora, que não havia nenhum por crime de
rebelião ([2]).
Frei
Fortunato de S. Boaventura, foi personagem intelectualmente notável e,
assumidamente, polémica. Combateu Junot e
a I Invasão Francesa com as armas mas, principalmente, com a pena. Cronista da
Ordem, aliás o último, concluiu a obra iniciada por Frei Manuel dos Santos, não se limitando à tarefa, erudita e paciente, de
recuperar os codices. Defensor do absolutismo, conservou-se silencioso durante
o Governo saído de 1820, mas logo que triunfou a reação, em 1823, assumiu-se
como vigoroso polemista.
D. Miguel não deixou de compensar a fidelidade e, em 1829, Frei
Fortunato instalou-se em Lisboa. Com
o Pe. José Agostinho de Macedo, formou uma dupla temível no combate aos
liberais. No entanto, era unânime a reputação de Frei Fortunato como pessoa de
vida morigerada, virtude pouco reconhecida no Pe. J. Agostinho de Macedo. Em
1832, foi nomeado Arcebispo Metropolitano de Évora, mas as simpatias políticas
vieram a estar na origem de irredutíveis conflitos com o Cabido. O governo efetivo na Arquidiocese de Évora, durou
apenas dois anos, pois a marcha triunfal de Terceira, do Algarve até Lisboa,
obrigou-o a renunciar e a assumir o exílio
em Roma,
de onde não voltou, vindo a falecer em 1844, sem direito a epitáfio, reclamando-se, sempre,
como o legítimo Arcebispo de Évora ([3]).
Camilo Castelo Branco colocou na
boca d’O Remexido, a afirmação que
com uns tantos mais como Frei Fortunato, a causa de D. Miguel sairia vitoriosa.
Sobre Frei Fortunato de S.
Boaventura, o Marquês de Fronteira e Alorna nas Memórias…
diz que apesar do grande talento e vasta
instrução que mostrava ter, denunciava o seu ultramontanismo realista a tudo
quanto era liberal.
O guia de D. Miguel, Frei Fortunato
de S. Boaventura, levou-o à Sala dos Túmulos, ao Claustro, à Sala do Capítulo,
ao Refeitório, aos Caldeiros de Aljubarrota, à Livraria e Cartório, onde vio com curiosidade os mano screptos e
Biblias, que m.m. gostou de ver, e no quarto dos proibidos mostrandolhe od. o
P. e Mestre de Pavia, e dizendo lhe que era a nossa ruina e que na Alemanha
estavão proibidos também ca hade suceder o m.mo ([4]).
Frei Fortunato de S. Boaventura bem conhecia
o que havia na Livraria e Cartório, pois realizou o inventário Commentariorum de Alcobacensi Manuscriptorum
Bibliotheca Libri Tres. Para D. Miguel, Frei Fortunato, Abade
e outros, existiam na Livraria, sem que tal lhes suscitasse reservas ou
pruridos, livros interditos a bárbaros
sórdidos, os hunos de todo o sempre que se aquecem ao lume das fogueiras de
livros, a mãos profanas sobre os Livros Dourados e a ferros que poderia
arrombar o Caixão das Três Chaves ([5]). Este,
em Alcobaça, era uma arca coberta por uma capa de setim verde, munida de três
fechaduras, na qual se encontravam recolhidos livros e documentos,
especialmente relevantes, não acessíveis a todos. O Abade tinha uma chave,
outra Frei Fortunato e a outra o monge mais idoso da congregação. A arca só
podia ser aberta estando presentes os três, munidos das respetivas chaves.
Manuel Vieira Natividade, confirma
que ao lado esquerdo da
livraria, fazendo a frente para leste, existem uns quartos bastante espaçosos
que eram destinados a encerrar os livros proibidos ([6]).
Depois do jantar, o Abade de
Alcobaça, aproveitou para dizer ao Rei que os povos dos coutos, principalmente os de Aljubarrota, aproveitando-se da
rebelião que as Cortes causaram, tinham arruinado o Arco Memória, onde fez voto
o Sr. D. Afonso I, e que pedia a S.M. o mandasse reedificar. D.
Miguel concordou com a sugestão, propondo que no Arco se fizesse uma inscrição
que, doravante, o ligaria física e simbolicamente, a D. Afonso Henriques: El Rei D. Afonso I o mandou fazer e D. Miguel
I reedificar ([7]).
Afinal, que
segredos terríveis eram esses que os livros continham, só acessíveis a uns
quantos monges velhinhos, incorruptíveis, de maior confiança? Quais as escritas
que podiam perturbar muita gente e especialmente o Poder?
A comunidade de Alcobaça, nos
últimos anos do século XVIII, vivia com mais simplicidade do que,
frequentemente, se julga ([8]).
O acento tónico da sua
espiritualidade era, alegadamente, dado pelos textos tradicionais. Na Biblioteca
pontificavam as obras úteis à Lectio Divina, ou Leitura Orante, à
exegese escriturística e à formação litúrgica geral.
A Igreja Católica sempre foi ciosa
quanto à difusão de ideias que alterassem os equilíbrios ancestrais, bem como
os princípios, supostamente, basilares e, como tal, imutáveis. O Index Librorum Prohibitorum, que teve como
objetivo inicial reagir contra o avanço do Protestantismo,
encontrava-se sob a alçada da Inquisição, abrangia
os livros ou obras que se opusessem a doutrina
oficial da Igreja de Roma.
A
censura foi, de certo modo, uma constante da vida portuguesa. Não se sabe,
quanto tempo a cultura portuguesa pôde viver livre da implacável repressão de
censores encartados, seus mandantes e sicários, religiosos ou laicos.
Ao longo dos tempos, difundiu-se a
ideia que, no seu conjunto, os Monges de Alcobaça, gordos e ociosos, eram néscios
e boçais, constituíam uma plêiade reacionária, vendo no progresso social,
científico, técnico ou filosófico, uma corrida rumo ao abismo. Mas não será
rigorosamente assim. Refiram-se os exemplos dos autores da Monarchia Lusitana.
O Marquês de Fronteira confessa que,
eu tinha ouvido desde a primeira
infância, que o espírito e o talento eram muito raros no famoso mosteiro da
Ordem de Cister.
Como
era a Biblioteca de Alcobaça, quando o Marquês de Fronteira visitou o Mosteiro?
Passamos à Biblioteca que era a primeira
que via tanto em número de volumes como em grandeza de edifício; quando vi a de
Santa Cruz, Santo Tirso e outras muitas, nada admirei porque achei todas muito
inferiores à de Alcobaça. Nada posso dizer do merecimento, porque nunca me
julguei nem julgo, no caso de a apreciar ([9]).
No
desenvolvimento daquela viagem, aparentemente bem sucedida, a Câmara Municipal
de Alcobaça reuniu a 9 de Novembro de 1831 em Sessão Extraordinária, presidida
pelo Corregedor da Comarca, com a presença das mais conpíscuas pessoas, Militares, Clero Regular e Secular, Civis,
Nobreza e Povo. Depois de lido o Assento
dos Três Estados do Reino, reunidos em Lisboa, para não se suscitarem dúvidas
sobre o significado de uma conduta silenciosa
e indecisa, fundamento para
facciosos, patricidas, traidores e aos inimigos da estabilidade do Trono do
nosso legítimo e adorado Monarca o Senhor Dom Miguel Primeiro (…), nem dos sentimentos de lealdade e
adesão ao Legítimo Governo do mesmo
Augusto Senhor, por parte de todos os habitantes desta Vila, seu Termo e
Comarca (…), decidiu-se ser
conveniente prestar um formal e inequívoco Preito de Fidelidade e Vassalagem ([10]).
No Fundão e Covilhã, Beira Baixa em
geral, a causa miguelista tinha muitos e ativos apoios nas famílias e oficiais
de corpos militares regulares, bem como no Corpo de Voluntários Realistas que tomou
parte na Guerra Civil, quando os confrontos se generalizaram, e fez-se representar
em Alcobaça no Preito de Fidelidade e Vassalagem. Do Fundão e Covilhã, vieram ainda militares de
corpos regulares do Exército, obviamente os afetos aos miguelistas, e
acompanhantes, munidos de estandartes e fanfarras ([11]).
Terminada a guerra, logo se desenvolveram divisões
entre os liberais. Apesar de derrotado militarmente, D. Miguel continuava a
contar com uma ampla base de apoio social, em certas zonas do País.
O
novo regime haveria de pagar a fatura dos amigos, novos e velhos. Ao criar nova
clientela, haveria de considerar a aristocracia liberal, através da concessão
de títulos, pela venda de bens nacionais, confisco aos adeptos de D.
Miguel ou pertencentes às Ordens.
A antiga nobreza, estava arruinada, exangue. Foi por essa altura que nasceu a
expressão comer à mesa do orçamento, com origem, ao que se diz, numa
declaração de Rodrigo
da Fonseca Magalhães, referindo-se aos que, outrora, adversários políticos postos
todos a comer à mesma mesa depressa passariam de convivas satisfeitos a amigos
dedicados. A política à mesa do orçamento foi glosada na
célebre tirada de Almeida
Garrett:
Foge,
cão, que te fazem barão.
Para
onde? Para onde? Se me fazem visconde….
E o devorismo?
Devorismo foi a
designação, de conteúdo de certo modo pejorativo, dada ao grupo político que ocupou
o poder nos anos imediatos à vitória liberal, em especial entre 24 de
Setembro de 1834
e 9
de Setembro de 1836,
Revolução de Setembro. De acordo com Oliveira Martins, o termo devorismo decorre de uma Carta de
Lei, datada de 15 de Abril de 1835, em que se colocavam à venda em
hasta pública os bens nacionais, facilitando o acesso aos chefes liberais
vitoriosos.
Significativos também foram, por
esta altura, os versos do Brás Tisana:
Uma nação
de empregados
É
Portugal? Certamente!
Até D.
Miguel, do trono
De Maria…
é pretendente.
A
partir do constitucionalismo, surgiu a Família dos Políticos. A família dos políticos, que entre
si jogam a sorte do país, como os soldados jogavam a túnica de Cristo. E essa família dos políticos é o apanágio indispensável do sistema
constitucional em todos os países como o nosso, atrasados, pobres e fracos. A
política é um modo de vida de alguns; não é uma parcela da vida de todos... No
seio do constitucionalismo via-se exatamente o mesmo que a Idade Média, com o
seu feudalismo, apresentara. A sociedade dividida em bandos rivais e inimigos
unidos em volta de um chefe, existia à mercê dos pactos, alianças e rivalidades
dos barões. Contra o feliz, vencedor temporário, eram todos aliados, para se
formarem combinações novas, assim que o ramo da vitória passasse a mãos
diversas Nos séculos passados, contudo, não havia as mais das vezes por motivo
declarado senão a ambição pessoal, ainda que não fosse raro ver-se, como agora,
servirem "princípios" de capa aos despeitos e interesses. Nos séculos
passados, os debates eram campanhas, e agora pretendia-se que fossem comícios e
discussões e votos; mas como isso não bastava muitas vezes, logo se apelava
para a "ultima ratio", a revolta ([12]).
Embora
poucos, desconhecemos, na verdade, dados concretos, houve seguramente em alguns Mosteiros do Norte, pelo menos, religiosos
alinhados com os liberais, como o famoso
Frei Simão de Vasconcelos, monge de Alcobaça, nascido em 1788 na Quinta do
Outeiro, perto de Oliveira de Azeméis, que integrou o Corpo de Voluntários
Nacionais. Tendo criado uma especial animosidade, acabou capturado e fuzilado
em Viseu, em 1832.
O
Marquês de Fronteira, cita o padre que, inflamado pelas novas ideias, era indiferentista em matéria de religião,
o pouquíssimo tempo que demoravam os sermões em Roma para não cansar a
audiência, e ainda o frade franciscano de Alcoentre, que se dizia liberal, mas não queria Parlamento ([13]).
Classe
maldita era a dos religiosos, pelo que os frades foram das primeiras e grandes
vítimas de um tempo de profundos conflitos.
Apesar
dos subsídios atribuídos aos não comprometidos com o miguelismo, múltiplos
testemunhos da época dão conta da situação de miséria em que acabaram por
tombar muitos egressos.
Ao
longo de cerca de 2000 páginas, o Marquês de Fronteira relata nas suas Memórias…episódios marcantes, positiva
ou negativamente. Alojado em Portalegre numa hospedaria ao lado de um convento
de freiras bernardas, o meu Coronel,
segundo um costume da época, estabeleceu logo um tratamento com a mais bela das
freiras, chamando-lhe a minha quezília. (…) Tivemos belos bailes na grade, tocando um piano e dançando as freiras
de dentro e nós, de fora. Muitas vezes vi o meu jovem Coronel valsar com o
Padre capelão ([14]).
Em
1846, Almeida Garrett, numa altura em que a situação política andava de novo
agitada, escreveu, que ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos
frades que a dos barões. O caso estava em a saber conter e aproveitar. O
Progresso e a Liberdade perdeu, não ganhou. Quando me lembra tudo isto, quando
vejo os conventos em ruínas, os egressos a pedir esmola e os barões de
berlinda, tenho saudades dos frades-não dos frades que foram, mas dos frades
que podiam ser. (…) Não senhor: o
frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil, podia e
devia sê-lo entre nós, e nós ficávamos muito melhor do que estamos com meia
dizia de clérigos de requiem
para nos dizer missa, e com duas grosas de barões, não para a tal oposição
salutar, mas para exercer toda a influência moral e intelectual-porque não há
de outra cá ([15]).
O que pretenderia
dizer Garrett, quais as saudades, não dos frades que foram, mas dos frades que
poderiam ser?
Dos frades que tinham sido,
rejeitava a sua oposição ao liberalismo, pelo qual se batera pessoalmente e o
levara para o exílio. Censurava-os por não terem compreendido os tempos, as
ideias e a nova geração, que a liberdade seria sua aliada, ainda que
necessariamente os reformasse.
Aliás, escrevera pouco atrás,
repartindo culpas que ora o frade foi
quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao nosso século, às nossas
aspirações; com o que falsificou a sua posição, isolou-se da vida social, fez
da sua morte uma necessidade, uma coisa infalível e sem remédio. Assustou-se
com a liberdade que era sua amiga, mas que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo
que o não amava senão relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia
nem o servia. Nós também erramos em não entender o desculpável erro do frade,
em lhe não dar outra direcção social, e evitar assim os barões, que é muito
mais daninho bicho e mais roedor ([16]).
Garrett, conheceu frades e monges
que teriam, preferido a liberdade político-liberal para continuar e melhorar a
vida religiosa. Não queria os frades de 1834, em geral, mas os que podiam ser.
Era destes que tinha saudades, mesmo
de saudades futuras…
Mas
agora faltavam frades, como atores e
intérpretes da vida portuguesa. Garrett lamentava a sua falta, ou a falta que
fariam, pelo menos, como os desejava.
Em
1842, Alexandre Herculano, seu companheiro de exílio e luta pelo liberalismo,
pedira compaixão e socorro para os egressos de 1834, que sofriam penúrias. E
fizera-o em termos bastante veementes: Pão
para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sábios, dos nossos homens
virtuosos, do nosso sacerdócio! Pão para os que foram vítimas das crenças,
minhas, vossas, do século, e que morrem de fome e de frio! ([17]).
Expulsos
dos mosteiros, expoliados das condições de sustento, muitos já idosos, os
egressos tentaram desesperadamente subsistir. O clero, em geral, alinhou com D.
Miguel, pelo que se poderiam referir incomensuráveis casos ou nomes.
Destacaremos o caso de Frei José da
Sacra Família, da Ordem
dos Eremitas de Santo Agostinho,
doutor em Teologia, disciplina de que foi regente na Universidade de
Coimbra, miguelista
convicto, que se exilou em França depois da vitória liberal, onde dirigiu um
colégio por onde passaram alguns dos mais distintos intelectuais portugueses
das décadas seguintes. Depois de ter sido secretário particular de D. Miguel I
no exílio, acabou como missionário católico em Inglaterra, onde faleceu.
O furto de livros, manuscritos, e
algumas peças numismáticas, da Biblioteca Nacional de Lisboa, realizado pelo
Dr. Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, que desempenhava as funções de Chefe da
Seção de Manuscritos e da Seção dos Reservados, está praticamente
esquecido.
Em
fins de Setembro, de 1948, o Governo do Estado Português da Índia, precisando
de elementos para a elaboração de um estudo monográfico sobre o território,
enviou um ofício à Biblioteca Nacional para lhe serem facultadas cópias de
certos documentos da Coleção Pombalina e de alguns Codices Alcobacenses. Constatou-se,
então, que faltava o Codice nº 132, que descrevia o itinerário por terra do
franciscano goês Frei Tristão da Cunha, até Portugal bem como, pelo menos, 25
Codices Alcobacenses, além de Iluminuras, Manuscritos, Incunábulos, Livros de
Horas, de Música e de Missa, e ainda gravuras.
O
Cor. Augusto Botelho da Costa Veiga, Diretor da Biblioteca Nacional, participou
o caso à Polícia Judiciária, tendo as investigações começado de imediato, sob a
orientação do Inspector Dr. Bordalo Soares, acompanhado pelo Chefe de Brigada,
Antunes Claro, e pelos Agentes Magro e Ciríaco. Ouvidos, os que trabalhavam na
Biblioteca Nacional, passou-se uma busca ao gabinete do Dr. Arnaldo de Ataíde e
Melo, então acamado em casa.
Para
surpresa dos investigadores, foram descobertos na sua secretária, partes de
livros e de pergaminhos, ainda com os carimbos da Biblioteca Nacional de Lisboa,
bem como folhas de livros, iluminuras, algumas rasgadas com os desenhos e
frontiscípios cortados, nos locais onde as obras são carimbadas. Foi ainda
encontrada correspondência de pessoas com quem o Dr. Ataíde e Melo
transacionava, como a carta de uma que lhe participava ter oferecido obras a um
antiquário londrino, que as não comprou por ter suspeitado da proveniência ([18]).
Quando
soube do caso, o Dr. Salazar, ficou irritado, tendo mandado chamar a S. Bento o
Ministro da Justiça, ordenando-lhe que diligenciasse junto da Polícia
Judiciária, com vista a um pronto e cabal esclarecimento.
A Polícia Judiciária ao fim de pouco tempo, conseguiu
recuperar obras em alfarrabistas do Chiado e em casa particulares. Soube-se que
Ataíde e Melo, vendeu folhas avulsas a preços entre 3$00 e 5$00. Foi detido o
alfarrabista Salvador Romana, proprietário da Livraria Barateira, da Rua Nova
do Almada, bem como Alice Bastos, que funcionava como intermediária e
comissionista ([19]).
Ataíde e Melo na Introdução ao Inventário dos Códices
Alcobacenses, lastimou o desaparecimento de raridades bibliográficas da
Livraria do Mosteiro de Alcobaça, como no tempo dos filipes, das invasões francesas,
e depois, da extinção das Ordens Religiosas, até darem entrada na Biblioteca
Nacional ou Torre do Tombo ([20]).
Quem
imaginava a Secção de Manuscritos ou a dos Reservados, como uma espécie de
Templo destinado a iniciados, onde se guardava a sete chaves uma parte
considerável das nossas história, cultura e língua, estava bem fora da
realidade!
Pressionada
pelo escândalo, a Ordem dos Advogados, transmitiu ao País a surpresa pelo facto
de uma pessoa com o passado do Dr. Ataíde e Melo, estar a desempenhar funções
com este tipo de responsabilidade, ele que fora expulso da OA e condenado na
restituição aos queixosos de diversas quantias.
A
Polícia Judiciária foi deter Ataíde e Melo em casa, levando-o para a enfermaria
da Cadeia do Limoeiro. Porém, não chegou a comparecer a julgamento no Tribunal
da Boa-Hora em fins de 1953, por ter falecido ([21]).
Ataíde e Melo ficou ao que se fez constar abatido, mas não
surpreendido com a prisão, passando a colaborar com a Polícia Judiciária, o que
permitiu a recuperação de algumas obras ainda em Portugal, mas não de outras,
saídas para a Inglaterra, Bélgica e França. Mais tarde, foram referenciadas na
Holanda, obras pertencentes à Biblioteca Nacional de Lisboa.
Os Códices Alcobacenses, eram vendidos por Ataíde e
Melo a mil ou dois mil escudos, conforme tivessem ou não iluminuras. Segundo alfarrabistas
do Chiado, ouvidos ao tempo, os Codices se fossem postos legalmente à venda,
valeriam nunca menos de três mil contos cada.
Com o tempo vieram ao conhecimento da Polícia
Judiciária algumas situações marginais e mesmo caricatas.
Foi o caso de um lisboeta, das Avenidas Novas, que tendo
comprado uma iluminura, achou o boneco
mais apropriado para o colar num abat-jour.
E o da aquisição de um exemplar de um foral quinhentista, por um Habsburg, que
passou de avião por Lisboa. E ainda que Ataíde e Melo se apropriou de obras não
catalogadas, vendendo-as a particulares ou à própria Biblioteca Nacional ([22]).
Qual a razão de Ataíde e Melo para mutilar as obras
que desviara?
A
verdade é que não havia reagente químico que fizesse desaparecer o carimbo da
Biblioteca Nacional de Lisboa ou de outros locais por onde haviam passado ([23]).
Em 1833, no
espaço fronteiro ao Mosteiro de Alcobaça, ocorreram disputas entre liberais e o Corpo de Voluntários Realistas dos
Coutos de Alcobaça. Este corpo militar participará, aliás, em 1834, no
confronto decisivo da Asseiceira, cujas partes tiveram talvez a perceção da
importância. Os Monges de Alcobaça, como a Igreja em geral, encontravam-se ao
lado dos miguelistas, tendo aqueles criado e municiado, um Corpo de Voluntários
Realistas.
Quando os monges alcobacenses
perceberam, finalmente, que os liberais iriam a ganhar a guerra, evacuaram apressadamente
o Mosteiro. A 16 de Outubro de 1833, populares, nomeadamente das granjas e
rendeiros, antes oprimidos mas, não obstante, apoiantes de D. Miguel, entraram
no edifício conventual e saquearam-no durante dez ou onze dias, durante o qual desapareceram incontáveis objetos
utilitários, de culto, de arte e uma parte do acervo da Biblioteca. Durante
estes tumultos, desapareceram também um dos caldeiros de Aljubarrota, o que
permitiu que Seabra fosse chamuscado,
e alguns recipientes de cobre em forma de tacho, que D. João
I oferecera ao Mosteiro.
O Governador da Praça Militar de
Peniche, perante estes acontecimentos, entendeu necessário nomear um oficial para
o comando da Praça de Alcobaça, armar a população e procurar por todos os meios
restabelecer o socego e a ordem entre aqueles povos até então oprimidos pelo governo usurpador.
O Mosteiro
de Alcobaça ficou entregue a si próprio.
Os monges bernardos, desapareceram e acabaram os
cistercienses em Portugal.
O muro, que separava os terrenos de
agricultura a norte do Mosteiro do átrio ocidental do mesmo, foi prontamente
demolido em 1839. Os edifícios sofreram atos de vandalismo e de roubo. Na ala
sul do Mosteiro foram instaladas habitações de particulares e a parte norte
passou a ser utilizada por serviços públicos, como o Tribunal e Finanças, até ao
terceiro quartel do século XX, e ainda comércio. A Câmara Municipal de Alcobaça
concedeu, por várias vezes, autorização para particulares retirarem as lajes
necsssárias para construirem ou reconstruirem passeios defronte das respetivas
casas, as quais sairam do Claustro. O
Refeitório, foi transformado numa sala de teatro em 1840, que se manteve até
1929. No Claustro da Biblioteca, chegou a estar instalada uma arena de touradas,
durante um ano ou dois.
As partes orientais da Abadia,
vieram a ser utilizadas pelo Exército, seguidamente pelo Asilo de Mendicidade
de Lisboa, depois chamado Lar Residencial de Alcobaça até aos nossos dias e ora
extinto ([24]).
No final do século XIX, alguns
alcobacenses consciencializaram-se da importância do edifício do Mosteiro, com
a exceção da Igreja abandonado há dezenas de anos e, em alguns locais, a
ameaçar ruina ([25]).
A Câmara em 1 de Maio de 1901 fez
uma petição ao Governo para a reparação e a limpeza da fachada do Mosteiro, que
se encontrava cheia de silvas, que além de apresentarem
um aspecto pouco agradável, ameaçavam desconjuntar as pedras ([26]).
Em 1907, o Governo publicou um decreto que protegia partes do Mosteiro. A partir
de 1929, o Estado, através dos Monumentos Nacionais, começou a reparar a Igreja
e o Mosteiro, alegadamente
pretendendo restituir-lhes o aspeto original, destruindo sem piedade, entre o mais, o Altar Mor e o
Órgão Monumental, inestético e inútil, na
douta opinião da DGEMN.
Segundo reza a História, por demais sabida, na
sequência da vitória na Batalha de Aljubarrota, o Mestre de Aviz ofereceu ao
Mosteiro de Alcobaça, três caldeiros de cobre onde os castelhanos faziam comida
para a tropa.
O
Marquês de Fronteira, informou que, quando visitou o Mosteiro, ainda viu um
enorme caldeiro, sob a grande chaminé da cozinha ([27]).
O
mais provável é que entre a fuga dos monges e a vinda de Seabra, tenha ocorrido
o desaparecimento do caldeiro maior. Todavia, andou em voga, a seguinte quadra
maliciosa:
NO
ANO DE TRINTA E QUATRO
LÁ
SE FOI O CALDEIRÃO!
SÓ
NOS FICOU POR MEMÓRIA,
UM
VISCONDE... E A INSCRIÇÃO! ([28]).
Conceituados
burgueses de Alcobaça, defenderam em 1869, em abono de Seabra arrogando-se
testemunhas oculares que houve uma
caldeira de destillação, que erradamente se tem confundido com o caldeirão
tomado aos hespanhoes na batalha d’Aljubarrota. Este existe ainda na Casa dos
Reis, aquella foi subtrahida, despedaçada e vendida por indivíduos d’aqui e das
povoações vizinhas, parte dos quaes vivem ainda; mas nem João de Deus, nem
António Luis de Seabra poderiam evitar, por maior que fosse o seu zelo, estes e
outros extravios, que a grandeza do mosteiro e suas dependencias, a variedade
dos predios, a multiplicidade d’entradas e o facil acesso a todos elles,
tornaram d’uma execução pouco difícil ([29]).
A
vida do Dr. Seabra está ligada a Alcobaça, o que é frequentemente ignorado, por
alguns respeitáveis biógrafos e historiadores. Nem o médico portuense Dr.
Estevão Samagaio, seu trisneto, com quem nos correspondemos há anos, refere a
sua passagem por Alcobaça ([30]).
Em
1833, Seabra foi nomeado Procurador Régio, junto da Relação de Castelo Branco e
em fins de Outubro, chamado à Secretaria/Ministério de Estado da Justiça e dos
Negócios Eclesiásticos, cujo titular era José da Silva Carvalho. A Seabra
apareceu o ainda jovem Rodrigo da Fonseca Magalhães que lhe disse, que o Ministro está com o expediente e não lhe
pode falar e me encarrega de dizer-lhe que tem presente o seu requerimento em
que pede ser despachado Procurador Régio da Relação de Castelo Branco. O
Ministro quer despachá-lo para esse lugar, mas põe-lhe a condição de ir servir
interinamente de Corregedor de Alcobaça, para onde deve ir incessantemente ([31]).
Corregedor, era a
designação para o magistrado administrativo e judicial
que representava a Coroa nas comarcas de Portugal, durante o Antigo
Regime. Competia-lhe fiscalizar a aplicação da justiça e a administração
dos diversos concelhos
da sua comarca. A sua ação era conhecida por correição, termo
que, por extensão também se aplicava às próprias comarcas. A Comarca de Lisboa
tinha dois corregedores, um do crime e o outro do civel. Antigamente, eram
designados por meirinhos ou adiantados. Todavia, a designação ao tempo era a de
Corregedor. A instituição dos corregedores deu nova feição à administração
local do país e foi, não como magistrado judicial, entendido segundo a
expressão que hoje conhecemos, que Seabra foi nomeado interinamente Corregedor de Alcobaça.
O Ministro,
tinha Sebra em elevado apreço pois, embora não fosse maçon, era destemido,
homem de ética e convicções. Quando a guerrilha miguelista ocupava Santarém e
Leiria e fazia incursões pelas redondezas, tentou a 6 de Janeiro de 1834 atacar
Alcobaça na expectativa de encontrar apoio poular, conventual ou mesmo saquear,
Seabra juntou-se às forças lealistas,
apresentando-se como soldado (…), contra a guerrilha do Manuel Vaza. O alcunha de Vaza decorre de em
rapaz ter ficado com um olho vazado numa briga por causa de águas de regadio. O
Vaza era, segundo soava, filho de um
capador de Carris de Évora, onde nasceu por alturas de 1800. Também se diz,
terá mais tarde, participado no combate de Chão da Feira, em 28 de Agosto de
1838, aquando da Revolta dos Marechais, do lado dos setembristas. Também estava
ativa a guerrilha do Salgueiral, com ações na zona do Juncal, Aljubarrota,
Alpedriz e Pataias. Seabra deu apoio em géneros alimentícios, ao Corpo de
Voluntários de Alcobaça, que desembarcou na Praia da Pederneira e ao comandado
por José de Vasconcelos, mais tarde Visconde de Leiria .
Quando
tomou posse, Seabra achou o Mosteiro saqueado,
no que caracterizou de vandalismo
inaudito pelo que tratou de pôr a
sequestro com honra e actividade, os bens que haviam escapado à pilhagem
recente, bem como as de Agosto, Setembro e Outubro, pelo que removeu para as
Casas da Livraria, supostamente as mais seguras do edifício, os móveis, livros,
paramentos e alfaias espalhados pelo convento .
Assim,
mandou fazer um Auto de Exame à Livraria do Mosteiro no que se achou que a porta principal estava aberta e livre o acesso da
mesma Livraria a todas as pessoas que nela quisessem entrar (…). Admitimos
que mesmo antes de extintos os conventos, um ou outro monge mais necessitado, escondesse nas pregas
do hábito um pergaminho valioso, um manuscrito repleto de iluminuras, indo
vende-lo a colecionadores ou alfarrabistas.
Ao
tempo da vinda de Seabra para Alcobaça, o Presidente da Câmara Municipal
António José Chaves encontrava-se encarregado do municiamento da tropa
estacionada na Vila, incluido um Corpo de Voluntários Nacionais, pelo que lhe
requesitou azeite da Quinta do Referteleiro que, além de pouco, era de péssima
qualidade, borras no fundo de uns pequenos oito a dez potes de latão.
A
Seabra deve-se o fornecimento de trinta
mil e tantas rações de pão, carne e vinho com que foram municiadas, por mais de
um mês, as tropas constitucionais. Afinal era sempre o Mosteiro, para um
lado ou outro .
Mandou
medir e guardar por pessoa idónia, os frutos e géneros, que havia nos celeiros
e adegas, bem como nas Quintas do Cidral e do Vimeiro .
Por
essa altura, enviou pessoal a Peniche, Caldas da Rainha e outros locais
referenciados, para recuperar livros e arquivos da antiga Biblioteca do
Mosteiro que os franceses haviam pilhado e vendido .
As
medidas que Seabra adotou, acarretaram aceradas e prolongadas polémicas, que
culminaram em calúnias, injúrias e processos judiciais, matéria que levou ao
conhecimento da Câmara de Deputados e fez a defesa. Leia-se, com interesse, OBSERVAÇÕES DO EX-CORREGEDOR DE ALCOBAÇA
ANTÓNIO LUIS SEABRA SOBRE UM PAPEL ENVIADO Á CÂMARA DOS SENHORES DEPUTADOS, À
CERCA DA ARRECADAÇÃO DE BENS DO MOSTEIRO DAQUELLA VILLA, que temos citado e
seguido de perto.
A
Seabra era imputado pelos opositores, principalmente por um declarado inimigo,
o Pe. Antunes Pinto, ter facilitado o extravio de inumeros bens conventuais.
De
que era A. de Seabra acusado pelo Pe João de Deus Antunes Pinto, delegado da Junta do
Melhoramento e da Reforma Ecleseástica, que intentou a sua remoção de
Corregedor de Alcobaça ou, se possível, a prisão para que ele não fuja com o dinheiro dos objetos vendidos ?
Esclareça-se
que Seabra não reconhecia à Junta poder sobre as temporalidades dos Conventos.
Segundo o Pe. Antunes Pinto, também vigário da Matriz de
Oleiros, governador do Bispado de Leiria, Cónego da Sé Patriarcal de Lisboa,
Desembargador da Relação e Cúria Patriarcal e advogado da Casa Real, a causa
principal dos extravios dos bens do Mosteiro fora o ex-Corregedor de Alcobaça,
por desleixo, pouca atividade ou mesmo para se apropriar deles!!!
Eis
os roubos maiores e mais importantes, que há referência nas imputações diretas
ou indiretas, de que foi alvo e que muito o incomodaram:
-O
roubo de louça da Índia, em cobre e outros objetos, escondidos numa mina,
depois atribuído a José Taranta e
Joaquim Tomás;
-Grande
soma de dinheiro, depois reconhecido ter sido achado por Joaquim Cuco, junto ao forno do Mosteiro;
-Várias
vacas, depois reconhecido como sonegadas em proveito próprio, por José Mendes
Ricardo, do Casal do Gaio;
-Porcos
da Quinta do Vimeiro, confiscados
pelos Voluntários Realistas de Évora de Alcobaça, para consumo imediato e
próprio.
Seabra,
ainda foi acusado pelo Braz Tisana que
levou a julgamento por calúnia, de ter deixado que fosse profanada a Igreja do
Mosteiro, sem que se poupasse o túmulo de D. Inês, de não ter tomado
providências para se evitarem roubos, consentindo que quase à sua vista, se
vendessem livros e alfaias, de ter ele sido o maior delapidador dos bens do
mosteiro, dando cavalos a quem quis, vendendo outros por preço ínfimo,
arrendando quintas a pessoas da sua parcialidade,
dissipando vinho e outros géneros, como odres de azeite da Quinta do
Referteleiro, alqueires de milho ou carradas de palha.
Vejamos
algumas diligências desenvolvidas por Seabra, nos termos em que oficiou ao Secretário dos Negócios da
Justiça, Silva Carvalho:
(a)-No dia 7 de novembro de 1833, a Portaria em
que V. Ex. me ordena em nome do Regente, que vigie pela conservação da
Biblioteca do Real Mosteiro desta Villa, e pela arrecadação dos livros que dali
tinham sido roubados. Chegando a esta Comarca, foi esse um dos primeiros
cuidados que tive, e me lisongeio de ter vindo ainda a tempo de obstar à sua
total ruína; por quanto as portas da livrarias e achavam arrombadas e a sua
entrada livre a todo o mundo. Pelo que toca aos livros roubados, tenho já feito
arrecadar para cima de 200 volumes e trabalho por haver o resto. A maior parte
porém foram levados para Peniche (antes da minha chegada) e me consta que o
Governador tem tratado de os recolher. Alguns há também nas Caldas, e que ali
foram vendidos por soldados franceses ou se acham em poder dos Voluntários
(realistas) comandados por um certo Vasa,
que não pouco concorreram aqui para os estragos deploráveis feitos no Mosteiro.
Devo contudo acrescentar que os Monges levaram consigo ou puseram em recado, em
sítio que ainda se ignora, e mesmo não convirá por ora descobrir, os manuscritos
da Biblioteca que faziam a sua principal riqueza, e a maior parte dos livros
que eles chamavam proibidos, cujo gabinete está vazio. Os Frades acautelaram o
precioso do seu Cartório, e levaram os seus Livros Dourados; entretanto eu pude descobrir um mapa
circunstanciado de todas as rendas do Mosteiro, extraído por cópia do cofre das
três chaves, que eu remeterei no seguinte correio a V. Ex. pela Repartição da
Fazenda, e que lhe fará ver de um golpe de vista tudo quanto desejar saber a
este respeito. Dos géneros recebidos e gados existentes se tem fornecido
e fornece a tropa; pelo que toca aos frutos pendentes, como azeitona, tem sido
posta em praça para que não se perca em abandono. O mesmo tenho feito com as
terras que exigem imediato amanho, com os lagares de azeite que devem abrir-se,
e com os moinhos que trabalham constantemente.
(ofício
de 9 de Novembro de 1833)
(b)-Já participei a V.Ex., mais de uma vez, como
os Monges de S. Bernardo tinham abandonado o Mosteiro e todas as suas casas e
propriedades desta Comarca para seguir os rebeldes; as providências que tenho
dado para obstar à continuação dos roubos e estragos feitos e para evitar que
se perdessem os frutos pendentes e o rendimento dos lagares e moinhos: mas que
devo fazer das quintas e terras do Mosteiro que exigem contínuos e imediatos
cuidados de lavoura?
(ofício
de 17 de Novembro de 1833)
(c)-Dando parte da descoberta dos manuscritos e
da sua remessa para S. Martinho (depois enviados por mar para Lisboa), para evitar o perigo a que estavam expostos
em quanto a linha do exército (liberal) não
avançasse mais.
(ofício
de 23 de Novembro de 1833)
(d)-Tenho a honra de participar a V. Ex., que
hoje se me apresentou nesta vila um ecleseástico, munido de uma provizão da
Junta do Melhoramento e Reforma Ecleseástica, pela qual é autorizado a proceder
ao inventário e arrecadação dos bens de Real Mosteiro desta vila, conjuntamente
com um Secretário, diferentes empregados, e um outro indivíduo que se diz
Procurador Fiscal; requerendo-me fizesse imediatamente entrega de todos os
autos de sequestro e arrecadação a que tivesse procedido, bem como todos os
géneros, moveis ou quaisquer outras coisas que por este Juízo se achassem em
depósito. Duvidei faze-lo sem decisão de V. Ex., primeiramente porque não posso
entender, pelos princípios gerais da jurisprudência que aprendi, um Juiz
Comissário Eclezeástico intrometido em meras temporalidades; e revestido de
poderes activos e coativos como são os de inventariar, arrematar, cobrar
dívidas, coisas estas, que por nenhum modo se podem fazer sem jurisdição:
2º- porque a Portaria da Junta de
Melhoramento, manifestamente expedida sem conhecimento de V. Ex. de modo nenhum
pode suspender o processo de requestro, que me incumbe neste caso especial
deste Convento, por força do Decreto de 31 de Agosto do corrente ano: 3º-pelas
ordens positivas que V. Ex. me tem expedido, em data de 26 de Outubro de 8 e 18
de Novembro, que me tem encarregado esta arrecadação, e arrematação das rendas
dos prédios rústicos &c. que não podem ser derrogadas por ordem que não
provenha da mesma Secretaria. V. Ex. me fará saber a sua decisão e permita-me
que lhe diga que todo este aparato só pode redundar em menoscabo da Lei e
prejuízo da Fazenda, que neste Distrito ouso dize-lo que não precisa de tais
defensores. No entanto, acredite V.Ex. que eu me veria com prazer exonerado
desta responsabilidade, de que não tiro outra recompensa mais que a satisfação
de ter feito o meu dever, se esta interrupção extraordinária não desse azo a
interpretações que de modo nenhum me convém.
(ofício de 11 de Dezembro de 1833)
(e)-Pedindo autorização para a venda dos vinhos
que restavam, que poderão produzir o melhor de dois contos de reis e correm o
risco de perder-se.
(ofício
de 18 de Dezembro de 1833)
Num
opúsculo de desagravo, contendo peças de um processo judicial que Seabra veio
intentar contra o Braz Tisana, que ao longo de vários anos e artigos o ofendeu,
por razões políticas, transcreve-se a carta que o alcobacense Dr. António Lúcio
Tavares Crespo, escreveu a um amigo referindo que o caldeiro foi roubado em Janeiro
de 1834, ante da entrega das pertenças do Mosteiro à Junta de Melhoramento
Temporal e quem terão sido os autores .
Vieram
ainda em defesa de Seabra, a Câmara Municipal de Alcobaça, e outros autarcas na
área dos antigos Coutos .
O
Conselheiro Francisco Botto Pimentel, que sucedeu a Seabra no cargo de
Corregedor de Alcobaça, em 1867 certificou que, algum tempo depois de eu ter chegado a Alcobaça, o Governo mandou que
informasse sobre a arrecadação dos bens do Mosteiro (…). E que o grande caldeirão foi roubado já depois de Vossa Excellencia
ter sido demitido (32).
O
Mosteiro de Alcobaça, segundo o entendimento,
defendido com argúcia e sucesso por A. Seabra, não se encontrava em situação
jurídica semelhante à de outros do País, cujas ordens religiosas foram extintas,
pois em 1833, era um mosteiro abandonado, cujos bens pertenceram originalmente
à Coroa e a quem deveriam reverter, de acordo com a cláusula de doação de D.
Afonso Henriques. Seabra defendia que as autoridades eclesiásticas não deveriam
beneficiar com os despojos das Ordens Religiosas, ao invés do entendimento da
Junta de Melhoramento e do Pe. Antunes Pinto, pois D. Afonso Henriques teria
pretendido evitar que os Monges de Alcobaça, abandonassem o mosteiro, como
acontecera em S. Pedro de Mouraz, de efémera duração, cujos monges se
retiraram, sem previamente o avisar, e que por isso ficou altamente descontente.
Apesar dos maus tratos, que não foram de somenos importância, este entendimento
salvou o edifício, que não se transformou numa ruína, lixeira ou local de
extração de pedra. O Mosteiro de Alcobaça, segundo o entendimento, defendido com argúcia e sucesso por A. Seabra, não
se encontrava em situação jurídica semelhante à de outros Mosteiros do País,
cujas ordens religiosas foram extintas pelo Decreto de 1834, auctoritate apostolica qua fungor.
Alcobaça,
em 1833, era um mosteiro abandonado, cujos bens pertenceram originalmente à
Coroa e a quem deveriam reverter, de acordo com a cláusula de doação de D.
Afonso Henriques. Seabra defendia que as autoridades eclesiásticas não deveriam
beneficiar com os despojos das Ordens Religiosas, ao invés do entendimento da
Junta de Melhoramento, pois D. Afonso Henriques teria pretendido evitar que os
Monges de Alcobaça, abandonassem o mosteiro, como outrossim acontecera em S.
Pedro de Mouraz, de efémera duração, cujos monges se retiraram, sem previamente
o avisar, e que, por isso, ficou altamente descontente.
Na Sacristia e no Mosteiro em geral, guardavam-se
preciosidades únicas, como vasos sagrados, alfaias, ferramentas que se
extraviaram, enquanto algumas foram a tempo de constituir coleções de arte
ornamental, no Museu Nacional de Belas Artes.
Mas
emblemática, emblemática, era a Biblioteca, notável pelo número e qualidade das
obras, que iam desde o século XII ao século XVIII. O período filipino, as
invasões francesas e o saque de 1833, foram os grandes responsáveis por perdas
inestimáveis (33).
[2]
. Ibidem.
[4]
. Saraiva, José da Cunha “Relação
da vinda de El-Rey o S. Dom Miguel a este Real Mosteiro de Alcobaça”.,
Lisboa 1831
[5]
. Ibidem.
[7]
. Lousada, Maria Alexandre e Melo Ferreira, Maria de Fátima, D. Miguel, ed. Círculo de Leitores).
[9]
. Barreto, D. José Trazimundo
Mascarenhas, “Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, D. José Trazimundo
Mascarenhas Barreto ditadas por ele próprio em 1861” - Coimbra : Impr. da Universidade, 2003.
[10]
. “Lisboa
na Imprensa Régia -1832, Com Licença”, Preito de Fidelidade e Vassalagem , 1832
(texto facultado por Vieira Rasquilho).
[11]
. Ibidem.
[12]
. Oliveira
Martins, “História de Portugal” - Lisboa
: Viúva Bertrand, 1882.
[13]
. Barreto, D. José Trazimundo
Mascarenhas, “Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, D. José Trazimundo
Mascarenhas Barreto ditadas por ele próprio em 1861, Coimbra : Impr. da Universidade, 2003.
[15]
. Almeida
Garret, “Viagens na minha Terra” –
Editora Figueirinhas, Porto.
[17]
. Alexandre
Herculano, “Opúsculos I - Os Egressos” (1842), Lisboa : Livraria Viúva Bertrand, 1873-1908.
[18]
. Diário
de Notícias, entre 1948 e 1953.
[20]
. Faria e Melo, Arnaldo, “Inventário dos Códices
Alcobacenses” - Biblioteca Nacional de Lisboa, 1930.
[21]
. Diário
de Notícias, entre 1948 e 1953.
[22]
. Ibidem.
[23]
. Arquivo
da Biblioteca Nacional de Portugal, Secção dos Reservados.
[25]
. Ibidem.
[27]
. Barreto, D. José Trazimundo
Mascarenhas, “Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, D. José Trazimundo
Mascarenhas Barreto ditadas por ele próprio em 1861 - Impr. da
Universidade de Coimbra, 2003.
[28]
. Pinho
Leal, “Portugal Antigo e Moderno” - Livraria Editora
de Mattos Moreira & Companhia. Lisboa. 1873-1890.
-Resposta do
Visconde de Seabra aos seus calummiadores, Coimbra, Imprensa da Universidade -
1871,
Observações do
Ex Corregedor de Alcobaça, António Luís de Seabra sobre um papel enviado à
Câmara dos Senhores Deputados, à cerca da Arrecadação de bens do Mosteiro
daquela Villa, Lisboa: 1835, Typografia de Eugenio Augusto, Rua da Cruz de Páo,
nº12 a Santa Catharina.
[30]
. Arquivo
Particular do Autor e correspondência particular.
-Resposta do
Visconde de Seabra aos seus calummiadores – Coimbra Imprensa da Universidade -
1871,
-Observações do
Ex Corregedor de Alcobaça, António Luís de Seabra sobre um papel enviado à
Câmara dos Senhores Deputados, à cerca da Arrecadação de bens do Mosteiro
daquela Villa – Lisboa: 1835 – Typografia de Eugenio Augusto, Rua da Cruz de
Páo, nº12 a Santa Catharina.
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