Ficha Técnica
Autor:
Joaquim Vieira Natividade
Título:
Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça
Revisão, Fixação de texto e Prefácio:
Fleming de Oliveira
Nota Introdutória:
Manuel Pimentel Castelhano
Edição:
Cooperativa Agrícola de Alcobaça (2013)
Capa:
-Daniela Santos
-Fleming de Oliveira
Imagens:
-Arquivo Particular de Fleming de Oliveira
-Biblioteca Municipal de Alcobaça
-Mosteiro de Alcobaça
-Internet
Composição, impressão e acabamento:
Relgráfica – Artes gráficas, Lda. – Benedita
JOAQUIM VIEIRA NATIVIDADE
OS MONGES AGRÓNOMOS
DO
MOSTEIRO DE ALCOBAÇA
NOTA INTRODUTÓRIA
A agricultura
constituiu desde muito cedo uma atividade fulcral na sobrevivência e no
desenvolvimento de Alcobaça.
Já
assim seria antes da chegada dos Monges de Cister mas aprofundou-se e ganhou
relevância em termos económicos com eles. Monges que se constituíram como os
promotores denodados do cultivo esclarecido dos campos e que foram autores de
uma saga de inovações e experimentações técnicas que ainda hoje perduram,
demarcando áreas de cultivo, selecionando sementes, testando culturas (entre as
quais as típicas frutas de Alcobaça) que, com o decorrer dos tempos, se foram
apurando, constituindo hoje o produto agrícola mais expressivo da região.
Foi
com base neste património que, nos finais do século XIX, se intensificaram os
movimentos associativos ligados à lavoura e dos quais veio a emergir, mais
tarde, a Cooperativa Agrícola. Cooperativa que teve um papel cimeiro na
sequenciação desse enorme esforço histórico em prol da agricultura, fomentando
sustentadamente a produção agrícola e assumindo um papel de motor no
desenvolvimento agrário e um apoio abrangente e inestimável à população rural.
Depois
de um momento de viragem estratégica (após um período de grandes dificuldades
financeiras) adequando a sua ação a novos tempos e a novos desafios, não pode a
Cooperativa deixar de contribuir para a preservação do património cultural da
Agricultura trazendo mais luz e enriquecendo o capital histórico e técnico
desta que foi sempre a atividade mais paradigmática e marcante na vida de
Alcobaça.
Faz,
assim, parte das intenções estratégicas da Cooperativa esse empenho em apoiar
iniciativas deste tipo para, por um lado, fazer recuar a ignorância do que
fomos e, por outro, dedicar alguns dos seus recursos à eleição e tratamento de
temas de interesse para a projeção da agricultura e do desenvolvimento rural.
É
neste enquadramento que se insere a presente publicação que nos foi proposta
pelo Dr. Fleming de Oliveira. A reedição desta obra, cujo valor simbólico é de
extrema importância, não apenas pelo seu notável conteúdo, mas porque o seu
autor é um dos mais relevantes vultos da investigação e experimentação agrária
de todos os tempos nas terras dos coutos. E, para além disso, é também um
dever, já que Vieira Natividade foi, sem sombra de dúvida, o ideólogo da
criação da Cooperativa Agrícola. De facto, a 25 de Janeiro de 1931, Vieira
Natividade profere uma conferência na sede do Sindicato Agrícola de Alcobaça,
no dia das Associações Agrícolas, onde faz a apologia das cooperativas e que
foi, por certo, o impulso decisivo para a sua criação, que veio a ocorrer
passado pouco mais de um ano.
Esta
conferência, publicada pelo Sindicato Agrícola de Alcobaça, será também,
oportunamente, reeditada pela Cooperativa.
Ao
Dr. Fleming de Oliveira, ele que é um amante de Alcobaça e um defensor da sua
história e da sua cultura, o nosso reconhecido agradecimento por este trabalho
de revisão, fixação e melhoria de texto mormente através da inserção de imagens
que o documento inicial não continha dando-lhe, assim, uma apresentação moderna
e mais atrativa e, sobretudo, pelo excelente prefácio que adicionou à obra e
que muito a enriquece.
Preservar
o património histórico é um dever de todos. A vida coletiva impõe que não
esqueçamos o passado sempre valioso para o desenho do futuro. Futuro que é e
será sempre enigma de todos os tempos mas que se desvenda e constrói com
pioneiros, utópicos, desbravadores do desconhecido, como o foi Vieira
Natividade - esse a quem apelidaram de
monge agrónomo dos nossos dias. Homens de todas as gerações, que
transcendem o tempo e o espaço e integram de forma indelével o nosso património
comum.
Vieira
Natividade demonstrou como ninguém amor
às coisas da terra em toda a latitude que a expressão possa conter.
É
assim com honra e gratidão que a Cooperativa Agrícola assume o patrocínio da
reedição desta sua magnífica intervenção.
Manuel Castelhano
Presidente da
Direção da Cooperativa Agrícola de Alcobaça
PREFÁCIO
A 9 de Dezembro de 1942, o Prof. Eng. Joaquim Vieira
Natividade, realizou uma conferência na Casa do Distrito de Leiria, em Lisboa,
intitulada OS MONGES AGRÓNOMOS DO MOSTEIRO DE ALCOBAÇA, editada em livro
pelo Grémio da Lavoura da Região de Alcobaça, o qual se encontra há muito
esgotado (daí esta nova edição), pelo que sendo amiúde citada, tal é feito
normalmente por via de anteriores citações.
Trata-se de uma abordagem interessante que, embora
não seja obra maior no conjunto da que deixou J. Vieira Natividade (cuja figura
continua a ser muitos anos após a publicação da sua obra mais conhecida, Subericultura, foco da atenção de
silvicultores e agentes do mundo da cortiça), perdura como referência para o
estudo da ação dos Monges de Alcobaça.
Tem, portanto, atualidade e interesse. O autor, teve a preocupação de contestar
a injusta ideia, que se vinha com alguma intencionalidade propagando, se não
sedimentando, de que os Monges do Mosteiro de Alcobaça, um dos mais opulentos institutos religiosos da Europa, viveram no fausto, num meio grotesco e descomunal, ligados à abastança dos bens terrenos, e assim esquecidos de virtuoso e prestimoso labor. Natividade
quis realçar alguns dos seus importantes, mas menos lembrados, serviços à ciência, à agricultura e à
povoação de Portugal, (asilo
inviolavelmente fortificado da literatura, das artes, da ciência, no dizer
de Ramalho Ortigão) bem como as altas
virtudes cristãs dos primeiros tempos. O efeito da ação dos Monges de Alcobaça, propagou-se muito
para além dos limites dos seus Coutos.
Recorde-se que, os Coutos do Mosteiro, compreenderam um território por este
administrado e abrangeram, na fase da sua maior expansão, uma área de cerca de
44.460h, compreendendo 3 portos de mar e as 14 vilas a saber: Alcobaça, Aljubarrota, Alvorninha, S. Catarina,
Turquel, S. Martinho do Porto, Salir de
Matos, Évora de Alcobaça, Maiorga, Pederneira (Nazaré), Cela Nova, Alfeizerão, Cós e Paredes da Vitória.
Apesar do muito que se tem escrito sobre os
limites dos Coutos de Alcobaça,
continua a ser difícil traçar com rigor os seus contornos. Na verdade,
especialmente durante a Idade Média, eles sofreram alterações, da iniciativa ou
não dos reis, em todo o caso por eles sancionadas, outras por iniciativa dos
próprios Monges que, mais ou menos indevidamente, e sempre que podiam alargavam
os seus domínios. No primeiro quartel do século XIV (D. Afonso IV), eram já
bastante contestados a Sul, (Alvorninha com o seu termo), e a Norte
(Aljubarrota, Cós e Pederneira, também com os respetivos termos). É certo que a
par destas, outras vilas dos Coutos,
foram questionadas, embora de maneira diversa, nomeadamente ao impugnar-se ao
Mosteiro o exercício de determinados direitos reais, como a justiça. Segundo
Manuel Vieira da Natividade, os Arcos dos
Limites ou Arcos da Memória,
foram construídos como marcos monumentais dos pretendidos domínios. Mandaram os
monges levantar dois grandes e celebrados arcos, que deveriam testemunhar,
infalivelmente, a sua autoridade e poder, o Arco da Memória (na Serra dos
Candeeiros-Albardos), e o Arco do Casal do Rei (Casal do Rei-Vidais).
Sobre
os respetivos direitos, manteve o Mosteiro longa e dura disputa com a Coroa,
até ter sido proferida em 1337 uma sentença favorável ao Rei, ficando os
limites, doravante, bastante aproximados dos primitivos. Embora lhe tivesse
sido desfavorável o pleito com o Rei, o Mosteiro nunca abandonou a ideia de
recuperar a posse das terras contestadas, o que de alguma forma foi conseguido
em 1358 com D. Pedro I, cimentando-se uma forte ligação entre as partes. Mas,
dentro breve, os Coutos do Mosteiro iriam
voltar a crescer, atingindo a sua maior extensão. Com a doação de D. Fernando
(1368), desmembra-se do Termo de Leiria, e em 1374, Pataias entra na área dos
Coutos.
Todavia,
com D. João I, voltou a ser considerado domínio régio, tanto a parte doada por
D. Pedro I, como a de D. Fernando. Alternando momentos de arreganho com desalento, continuou o Mosteiro a usufruir os vastos
domínios, por vezes em grandes demandas com os povos insatisfeitos.
O
Mosteiro administrou este território até 16 de Outubro de 1833 (a Convenção de Évora-Monte ainda
estava longe), altura em que os Monges o abandonaram definitivamente (embora já
o tivessem, parcialmente, efetuado antes), na sequência de vitórias do exército
liberal, acompanhadas de revoltas populares oprimidos.
Entretanto
procederam à colonização de terras, instituindo Forais ou Cartas de Povoação,
no que alguns autores consideram um esquiço de futura legislação agrária.
Dedicados ao desenvolvimento da agricultura, principalmente através das Granjas, vieram estas a ser relevantes
focos de desenvolvimento agrícola. Já Manuel Vieira Natividade, no século XIX
havia escrito (in Mosteiro de Alcobaça) que a
cultura das árvores fruteiras mereceu sempre dos monges os mais constantes
cuidados e que, tão intensa foi e é
essa cultura que, ainda hoje, nas terras d’Alcobaça por fruta se subentende a
maçã e por pomares as plantações de macieira. Por sua vez, Iria Gonçalves
(in, O Património do Mosteiro de
Alcobaça nos séculos XIV e XV),
sublinhou que, as hortas e pomares
situados dentro da própria cerca do Mosteiro, tinham depois muitos outros
espalhados por diferentes locais, esses visando fins lucrativos.
Entendo não ser a História Local um ramo menor, não se
podendo falar de História Nacional ou Universal, esquecendo a História Local
pois, que é a partir da História Local
que se chega à História Universal. De
resto, e embora num outro contexto, já Miguel Torga o havia salientado: O local é o universal sem paredes; (...) quanto mais local, mais universal.
Num tempo
veloz e fugaz, em que o isolamento e o silenciamento de algumas experiências
nos levam a perder a memória coletiva (sem memória coletiva um Povo é
alienado), rememorar e compartilhar memórias é uma ação que adquire como que um
caráter de resistência, a memória
compartilhada é uma forma de não sucumbir ao esquecimento que o ritmo acelerado
do tempo impõe. Nenhum país, comunidade, ninguém enfim, pode viver sem
memória, pois esta é que confere a coesão.
Nos seus trabalhos de investigação, os historiadores ditos locais, falam do passado, refletem o presente e perspetivam o
futuro das suas freguesias, vilas ou cidades. E, normalmente, gostam de
documentar os livros com gravuras e registos fotográficos, demonstrando uma
especial interesse para a efeméride. Em livros, que muitas vezes trazem a
chancela autárquica, evocam eventos, as festas religiosas e profanas, os usos e
costumes mais ou mesmo ancestrais da sua terra. Falam, com fé e amor, do seu
povo, cuja História analisam de forma, muitas vezes apaixonadamente.
Uma história de acontecimentos, de datas e de pessoas
ilustres, pouco nos serve por si só, se não obtivermos a explicação e o
entendimento necessário para percebermos as consequências que tiveram, direta
ou indiretamente, na vida política social e económica da comunidade. Não alinho na tese de contar a História, fundamentalmente, a partir da ação e do impacto dos chamados Grandes Homens, indivíduos seguramente assás influentes, graças ao
carisma, inteligência ou impacto político-social. Pelo contrário, defendo a
teoria que propõe que os eventos acontecem numa dada circunstância de tempo, ou
quando uma imensa quantidade de pequenos eventos causam certos desenrolamentos.
Embora seja popular a crença em que a história gira em torno de Grandes Homens, especialmente quando a grandeza é determinada por status político-económico, essa é uma
visão restritiva, que exclui a participação de grupos inteiros, entre os quais
o operariado, as minorias étnicas ou
culturais, e mesmo as mulheres, enquanto género.
Em tempo de viragem, cumpre olhar
para a Cultura, Arte, Património e História com olhos de ver, apreciar e defender o que é nosso, dinamizando
valores. Uma terra, como Alcobaça, tão rica em História e em momentos decisivos
do decurso pátrio, não pode deixar desaparecer os vestígios do passado. Não
digo para se viver no passado, claro que não, outrossim que preservar a
História e trilhar um futuro com convicção. É momento de apostar
nas nossas riquezas e divulgá-las, se possível com o ensino da História Local na Escola, aproximando os
jovens do que é seu. Além disso, os nossos governantes, nomeadamente
autárquicos ou dirigentes associativos, têm o dever de defender o que é nosso,
não deixando ao abandono o Património.
A C.A.A.-Cooperativa Agrícola de Alcobaça (e muito
concretamente o seu Presidente da Direção), sabe que tanto é património o
material como o imaterial. Material,
pensa-se logo no património construído.
Imaterial, associa-se às tradições orais, aos saberes e ao saber
fazer. Daí a importância que confere a iniciativas que fazem recuar a
ignorância, qualquer que seja a área em que se situe, e às que promovem o
direito às liberdades fundamentais e à dignidade da pessoa e dos povos.
Se a Cooperativa Agrícola de Alcobaça concorda em
considerar que o património deve ser preservado como prioridade da ação
cultural (e também económica), a questão da valorização do património e da sua
relação com o desenvolvimento económico, suscita reações diversas, por vezes
opostas. O restauro de uma peça de arte, de uma igreja, a renovação de uma
praça, a publicação de um bom texto, a recuperação de uma boa prática, só farão
sentido se provocarem um afluxo turístico, ou podem ser realizados para o
simples prazer, para a cultura, fruição, bem estar dos residentes?
A política cultural dos poderes públicos e associações
privadas como a C.A.A., justifica-se, frequentemente, pela ajuda que confere ao
desenvolvimento. Daqui surge uma manifesta ambiguidade pois não é tanto a
elevação do nível cultural que se procura com o estímulo da atividade económica
para se concluir rapidamente que o
desenvolvimento cultural não é um luxo sem o qual se pode passar, mas um motor
do desenvolvimento económico e social. Todavia, a responsabilidade dos
decisores no estabelecimento dos programas conduz, ou deveria conduzi-los, a
uma reflexão quanto ao equilíbrio a obter entre a satisfação das necessidades
culturais e das económicas. Se é verdade que a simbiose entre cultura e
economia passa muitas vezes pelo turismo, nada impede aos promotores de ações
culturais conciliar a necessidade de atrair um público exterior e a vontade de
satisfazer as aspirações do público local.
Continuarei no meu combate pela
divulgação da nossa História, sem dúvida de forma modesta, porventura
quixotescamente, mas com a certeza maior de ser importante não esquecer, nem
apagar o passado, pois ele faz parte da memória do nosso povo, da nossa terra e
das nossas raízes pessoais.
Podemos pois concluir (sem sofismas), que a origem da Maçã de Alcobaça é cisterciense, pelo
que cumpre ressalvar que a ação dos Monges
de Alcobaça aliou ciência à técnica, e não se circunscreveu, nem de perto,
à experimentação/produção fruteira, o que permitiria a Natividade pugnar por mais e melhor fruta ou mais saúde mais riqueza, dois ambicionados
bens que fazem a vida cor de rosa, tendo em conta que os frutos são a base da alimentação higiénica, precioso depósito de
vitaminas e de substâncias necessárias à vida, fonte de energia e de calor.
Recorde-se que se
designa por Maçã de Alcobaça os
frutos dos grupos Casa Nova, Golden Delicious, Red Delicious, Gala, Fuji,
Granny Smith, Jonagold, Reineta e Pink, que, obtidos numa área geográfica bem
delimitada, se identificam pela riqueza em pectinas (que lhes confere uma
elevada consistência e crocância, graças à elevada percentagem em açúcar), por
acidez elevada, um inconfundível paladar agridoce e aroma intenso.
Os Monges
Cistercienses de Alcobaça (o Mosteiro mais
célebre de Portugal, no dizer de A. Herculano, cuja origem se caldeia e
irmana com a da nacionalidade, pois nasceu
com Portugal) ocuparam áreas com grande aptidão agrícola e que
correspondem, em certa medida, à área concebida inicialmente para a produção da
Maçã de Alcobaça.
A zona de produção
da Maçã de Alcobaça fica situada,
aproximadamente, entre a Serra dos Candeeiros e o Atlântico, o que dá origem a
um micro clima específico, o que conjugado com bons solos, gera condições para
a produção de uma maçã de alta qualidade organolética.
A área geográfica delimitada da Maçã de Alcobaça, constou inicialmente
do Despacho 62/94, de 21.01.94, embora a 9 de Março o Despacho 3.522/2012, tenha concedido
uma autorização (transitória) ao alargamento da área de produção da Indicação
Geográfica Protegida, Maçã de Alcobaça, pelo que tem (assim e atualmente) uma dimensão de cerca
de 3.169 Km2,, compreendendo do ponto de vista administrativo, os Concelhos de
Alcobaça (406km2), Leiria (549 Km2), Marinha Grande (199 Km2), Nazaré (82 km2),
Batalha (104 Km2), Porto de Mós (260 Km2), Caldas da Rainha (255 km2), Óbidos
(141 km2), Bombarral (91 Km2), Cadaval (174 Km2), Lourinhã (146 Km2), Peniche
(78 Km2), Rio Maior (277 Km2) e Torres Vedras (407 Km2), embora (na prática)
seja algo inferior.
Glosando J. Vieira
Natividade, atrevo-me a dizer, para concluir, que os Monges Agrónomos de Alcobaça, não eram homens se não universidades au academias.
FLeming de OLiveira
OS MONGES AGRÓNOMOS
DO
MOSTEIRO DE ALCOBAÇA
MINHAS SENHORAS, MEUS SENHORES:
D
|
esde
o dia em que D. Afonso Henriques doou a S. Bernardo as terras de Alcobaça,
então ermas e selvosas, até àquele em que o último monge abandonou o Mosteiro,
mediaram setecentos anos.
E
destes sete séculos, em que nasce, avulta, floresce em
toda a magnificência, e declina e morre um dos mais opulentos institutos
religiosos da Europa, estranhos desvairos, má fortuna, ruim condição dos
tempos, ou singular expiação, fizeram que na memória dos homens perdurassem,
não as obras santas e louváveis dos filhos de S. Bernardo, nem os avultosos
serviços por eles prestados à causa do reino, no fortalecimento da
individualidade nacional, nem a gratidão pelos monumentos artísticos ou pelas
obras literárias que nos legaram; mas que ficassem vivas, palpitantes,
sangrentas, as relaxações e as profanidades, todas as misérias da pobre
condição humana, exatamente daqueles que se votaram ao serviço de Deus e proveito das almas, e deviam constituir exemplo
vivo das renúncias sublimes que levam à santidade.
Se
excetuarmos Fr. Fortunato de S. Boaventura, até os cronistas do Mosteiro amiúde
esquecem os reais serviços à ciência, à agricultura e à povoação de Portugal, e
as altas virtudes cristãs dos monges dos primeiros séculos; no olvido ficou o
obscuro e piedoso trabalho desses varões de engenho subtil e claro entendimento
que criaram a prosperidade das terras de Alcobaça, e nos deixaram aquilo que
Herculano, Rebelo da Silva e meu Pai consideram os mais valiosos testemunhos do
engenho e do valor da Ordem Cisterciense.
Esquecidos
assim esses tempos de tão virtuoso e prestimoso labor, a lembrança dos frades,
na memória do povo, ficou associada quase sempre ao fausto dos últimos séculos,
ao grotesco ou ao descomunal, à abastança de bens terrenos, aos gozos frágeis
do nosso pobre mundo, a tudo aquilo, enfim, que mais piedoso fora esquecer, que
recordar.
Comer como um frade, levar a vida como um abade são
expressões populares irreverentes que ainda hoje recordam o suspeitoso culto
que o povo tinha pelos cabedais de mortificação e de humildade dos seus
senhores, os monges do Mosteiro.
A
Abadia de Alcobaça, já desde 1580 cabeça de Ordem de Cister, atinge o apogeu da
magnificência no século XVIII, e é bem humano que o agricultor dos Coutos, que
laboriosamente granjeava as rendas e os foros, não visse com bons olhos tão
pecador apreço pelas vãs delícias e dignidades do mundo, que lhe fazem sentir,
com mais crueza, a sua pobre condição de servo.
A
enorme edificação conventual domina o casario modesto da vila, e, dentro da
Abadia, tudo era rico e deslumbrante nesses tempos de fácil e pródigo viver. O
Abade, Fronteiro-Mor, Donatário da Coroa, Conselheiro d’El-rei, Senhor de
extensos Coutos que abrangiam 13 vilas e 3 portos de mar, e quase avultavam
como uma província de um pequenino reino, figurava entre a primeira nobreza do
reino, e trajava dentro e fora do Mosteiro o hábito episcopal, ornado com a
bolsa escarlate de Esmoler-Mor.
Se
apenas podemos aperceber-nos, pelas narrações de viajantes, da sumptuosidade
das cerimónias religiosas no templo, da riqueza das alfaias e dos paramentos,
do viver faustoso do Abade, do luxo das hospedarias e da magnificência das
receções, outros testemunhos ficaram da opulência da Ordem, e precisamente aqueles
testemunhos que mais podem comprometer a salvação da alma dos filhos de S.
Bernardo: a doce quietude dos extensos dormitórios, que nos evocam preguiçosas
e infindáveis sestas; a vastidão e a formusura dos claustros, tão propícias ao
deambular sem cuidados; o refeitório imenso, e, sobretudo, a cozinha, a que
Beckford chamou o mais distinto templo de
glutonaria da Europa.
Jamais
se perdoou aos frades a bem-aventurança num mundo de penitência e de
sofrimento. E, em boa verdade, no pecado da gula, os bons frades bernardos de
setecentos em muito excederam aquela medida que se permite a humanos pecadores.
Em
vasto tanque, servido pela levada que atravessa a cozinha, se guardavam os mais
delicados peixes de rio; cargas de caça,
pilhas de legumes e de frutas de infinitas variedades, montes de farinha e de
pães de açúcar, montanhas de pastelaria e de folhados viu Beckford, no fim
do século XVIII, nessa monumental ucharia.
À
mesa do Abade serviam-se infindáveis banquetes, onde figuravam, a par de
iguarias raras, vindas do Brasil e da Ásia, os manjares mais apurados,
laboriosamente concebidos pelos mestres de cozinha do Mosteiro para o farto
passadio abacial. E a quantidade não ficava atrás da variedade. No almoço
fradesco que o Marquês de Fronteira e d’Alorna presenciou, em 1824, as rações de cada religioso eram espantosas,
e o vinho servia-se em copos que levariam meia canada.
Daí
provinham a exuberância adiposa, os rostos corados e oleosos, aqueles bojudos
ventres que as pregas do hábito mal disfarçavam; a perpétua sonolência, o
desamor pelo trabalho e pelo estudo, e essa boçalidade e ignorância que fizeram
cair sobre os religiosos da Ordem as mais irreverentes e cruéis ironias. Mas no
seio dessa Ordem, cumpre dize-lo, ainda no século anterior avultavam homens
como Frei António Brandão, a quem Herculano chamou, uma das mais nobres inteligências que Portugal tem gerado.
E
de tal modo se liou no espirito dos monges a noção de gordura, à de santidade,
que nas obras da estatuária dos frades barristas de setecentos, jamais se nos
depara uma figura asteca, angustiada pelos problemas da salvação eterna, com a
magreza que acarretam os jejuns e os cilícios, as rudes provações da
observância religiosa.
Gordos
anjos, fartos, rotundos, enormes, povoam o altar da morte de S. Bernardo; no
rosto dos apóstolos do antigo altar-mor, no dos mártires e santos da Ordem,
nalgumas imagens de santos e santas do relicário, e até (estranha ironia ou
piedosa complacência!) na própria cara do diabo transparecem as doçuras da vida
bem vivida…
E
podemos censurar, porventura, que na memória dos homens mais perdurassem as
demasias, do que as virtudes fradescas?
Como foi diferente a
vida nos primeiros séculos! Naqueles tempos, escreve um cronista do Mosteiro; qualquer monge de Alcobaça era um varão
seguidor desse caminho estreito que leva em direitura ao reino dos céus.
Então
os frades, homens sábios e virtuosos que viviam entre a oração e os rudes
labores agrícolas, conquistavam o pão com o seu próprio trabalho, através de
suores e de fadigas: propriis manubis et
sumptibus, como preceituava a regra de S. Bento.
E
assim foi durante quase duzentos anos, do meado do século XII ao primeiro
quartel do século XIV, durante os quais a agricultura, até então mister
desprezível de escravos, se dignifica e sublima. Pela ciência e pelo trabalho
dos monges, a brenha hostil, couto de ursos, de lobos e de javardos,
transformou-se em pomar ou em vinhedo, e fartas searas ondeiam na charneca
desbravada. Cede o brejo o lugar a ubertosa campina; escalam o serro agreste
pingues e formosos olivedos. Povoam-se de vilas e de casais os extensos ermos;
e, na pequenina igreja das paróquias, pela primeira vez os sinos repicam
festivamente em louvores a Deus. Já a água dos ribeiros trocou a descuidada
ociosidade pelo labor útil de moer o grão; nas improvisadas ferrarias
trabalhava-se o ferro e forjam-se as ferramentas agrárias; retoiçam alegres
rebanhos em fartas pastagens, sob o olhar carinhoso e vigilante dos monges
pastores.
E
o vasto deserto, o ermo selvoso de outrora, transforma-se num dos torrões mais
fecundos da terra portuguesa.
O
Mosteiro de Alcobaça nasceu em Portugal. Ao lado dos monges guerreiros,
cavaleiros e homens de armas, esforçados pelejadores que conquistaram, palmo a
palmo o território da Pátria, e vezes sem conto o defenderam da cobiça de
cristãos e de infiéis, estes monges pacíficos, propulsores infatigáveis do
desenvolvimento agrícola, que lavram campos regados pelo sangue das batalhas,
entre as devastações e as ruínas do incêndio e do saque, assumem também a
nossos olhos a estatura gigantesca de construtores de uma nacionalidade.
Chamei-lhe Monges Agrónomos. Porque não monges
agricultores, ou mais simplesmente, e adoravelmente, homens bons, boni homines, como nos antigos
documentos? Porque a agricultura era já, nesses tempos recuados, uma verdadeira
ciência nos mosteiros cistercienses e beneditinos. O arado ficava bem junto à
cruz. Ele simbolizava igualmente a redenção do homem. As quinhentas abadias
espalhadas pela Europa, no meado do século XII, constituíam outros tantos
centros agronómicos onde se acumulava a ciência da época, essa ferramenta que
havia de arrancar à escravidão os rudes servos da terra.
E
ainda que escasseiem, infelizmente, documentos escritos que nos permitam
avaliar com justeza o nível da agronomia cisterciense nos séculos XII e XIII,
afigura-se-nos que a obra realizada em Alcobaça, tão rápida, tão segura, tão
eficiente, constitui o melhor testemunho de que estes religiosos aliavam à
visão clara dos grandes problemas agrários, sólidos conhecimentos teóricos e
práticos da arte de cultivar a terra.
E
essa ciência, esse avultoso cabedal de saber, não era apenas fruto da direta
experimentação, do lento aperfeiçoamento de práticas tradicionais. Nunca os
irmãos conversos, que ajudavam os servos no trabalho mais rude, seriam capazes,
só por si, de realizar, em tão pouco tempo, obra de tal vulto.
Documentos
da época revelam que as granjas eram governadas por Mestres, e estes seriam os
verdadeiros propulsores e orientadores do fomento rural. Não lhes faltava, por
certo, o apoio dos monges eruditos e estudiosos que amorosamente reuniam em
preciosos códices os monumentos da ciência agronómica das passadas
civilizações.
Ouviriam
da boca dos peregrinos, ou dos monges vindos das enumeras abadias espalhadas
pela Europa, a narração das práticas usadas em distantes países. Mas bastariam
as peregrinações a Roma para que os monges pudessem apreciar e estudar, durante
tão morosas viagens, os métodos agrícolas dos outros povos, e daí trariam
sementes e plantas com o fim de tornar o cultivo dos seus campos mais perfeito
e mais rendoso. Por fim, a casa-mãe, Cister, acompanhava espiritualmente o
labor dos seus filhos.
Cultores
das ciências e das letras, estes monges que viviam da agricultura não ignoravam
as obras de Demócrito, de Xenofonte, e sobretudo de Teofrasto, onde se tratam
já questões de biologia arbórea. Tudo indica também que lhes eram familiares os
famosos tratados de Catão, Varrão, Columela e Paládio, os luminosos escritores rei rusticae, e que hajam lido,
enlevados, o enciclopédico Plínio. E quase me atrevo a afirmar, tanta poesia
transcende da sua obra admirável, que estes monges, à luz de bruxuleante
candeia, deleitosamente decorariam as Geórgicas nos seus longos serões do
inverno…
Podemos
crer que lhes eram familiares os monumentos agrícolas da antiguidade, e até que
tivessem no mais alto apreço a obra dos agrónomos árabes, apesar de provir de
inimigos de raça e de crença. Recordemos que no século XII maravilhavam o mundo
cristão as hortas e os jardins de Sevilha, de Córdova e de Granada, e que os
agricultores sarracenos tinham elevado a considerável perfeição algumas das
mais importantes práticas agrícolas.
Não
podiam, pois, desconhecer o remoto tratado da agricultura nabateia, de
Ibn-al-Vahschiad, e sobretudo a preciosa enciclopédia de Ibn-al-Awan, esse
agrónomo sevilhano que profundamente estudou os escritores gregos e latinos, e
cuja obra, pela variedade e valor dos conhecimentos que encerra, ainda hoje
merece ser lida.
Pode parecer inútil,
porventura, tão copiosa erudição para a simples conquista do sustento através
de suores e de fadigas, e de tão honesto e frugal passadio, em suma, como
aquele que a Regra prescrevia aos seus monges. A tarefa, porém, era muito mais
vasta e dificultosa.
Pretendia-se
povoar as vastas terras doadas, atrair e fixar os colonos, agricultar
esmeradamente e intensivamente um território de quase meia centena de milhar de
hectares. E isto quando o atraso, a intranquilidade dos tempos e a escassez da
população sobretudo favoreciam a agricultura nómada e a vida pastoril.
Exigia-se,
pois, o granjeio continuado do solo, que envolve questões complexas de rotação
de culturas e de fertilização da terra; reclamavam-se conhecimentos importantes
de agrologia, de climatologia, e das exigências das plantas cultivadas.
Impunha-se a utilização de uma flora variada para acorrer à alimentação dos
homens e do gado. E era necessário ainda que o colono ganhasse amor à terra, e
a agricultasse bem e fielmente: bene et
fideliter, como estatuíam os primeiros forais.
Havia
que fabricar as ferramentas agrárias, e para elas extrair e trabalhar o ferro;
havia que construir estábulos, assegurar o desenvolvimento dos rebanhos, abrir
vias de comunicação, drenar os brejos e os pauis, corrigir os caudalosos
ribeiros que no inverno assolavam as várzeas mais férteis.
Esta
tarefa precisava de conhecimentos copiosos e variados, da visão nítida dos
problemas agrícolas e da economia rural, da técnica segura que se não
improvisa, e até daquele atilamento e prudência na governação que se impunham à
estima e ao respeito dos colonos.
O
alto nível da ciência agronómica dos Monges de Alcobaça e a sua hábil política
agrária evidenciavam-se no confronto com as terras das ordens militares, das
honras dos barões e ricos homens, e até dos reguengos do rei, no centro e sul
do País. Aqui, a agricultura sem ciência nem consciência: sobre a cinza da
queimada lança-se a semente à terra, empobrecida pela viciosa cultura extensiva
e exclusiva de cereais. Pastam rebanhos em charnecas desertas e brenhas
impenetráveis se estendem por léguas sem fim. Protegem-se as feras para
desenfado dos nobres, enquanto o servo da gleba continua na dependência do
imunista, segundo as formas mais primitivas da escravidão da terra.
Mas para que se possa
apreciar com justeza a obra realizada pelos monges de Alcobaça, tem interesse
rápida apreciação do estado do território cisterciense no meio do século XII,
quando chegam os primeiros religiosos e se instalam na abadia velha, mandada
construir por D. Afonso Henriques.
Seriam
as vastas terras completamente despovoadas no tempo em que se fundava o
Mosteiro, como pretendem Fr. Bernardo de Brito e Fr. Fortunato? Existiriam
núcleos dispersos de povoadores, que já as habitavam e cultivavam, como quer
Fr. António Brandão, baseado na tão discutida carta de D. Afonso Henriques?
Não
iremos reviver aqui as apaixonadas discussões do século passado. Bastar-nos-á o
testemunho insuspeito de Herculano: Fundou-se
nesta época (1153), escreve o ilustre historiador, um mosteiro, o de Alcobaça,
que veio a ser o mais célebre de Portugal, e a cujos monges se devem
sucessivamente a cultura de uma extensa parte da Estremadura, a qual até aí
fora uma vasta solidão e por muito tempo servira de campo neutro entre cristãos
e sarracenos.
Ainda
que as colónias romanas, nas terras de Alcobaça, hajam atingido apreciável
prosperidade, esta não sobreviveu à longa dominação sarracena. No segundo
quartel do século XII, o território compreendido entre os castelos de Leiria e
de Óbidos sofre correrias incessantes. O incêndio, o saque, a ruína, juntos à
doença e à fome, dizimariam ou afugentariam a população, e ficam ao abandono as
terras porventura cultivadas. Em 1140, Leiria é destruída pela segunda vez em
curto espaço de tempo; trinta e tantos anos depois da instalação dos monges, o
tirano Miramolim invade as terras de Alcobaça, degola os frades e saqueia o
Mosteiro.
Podemos
acreditar que a agricultura local, no meado do século XII, estava circunscrita
a reduzida área em volta dos castelos de Alcobaça e de Alfeizerão, onde se
refugiriam os escassos habitantes que não quiseram ou não puderam partilhar a
sorte do dominador vencido.
Em
tais condições, não deve surpreender que a dominação sarracena não nos deixasse
vestígios que possam atestar progresso agrícola equivalente ao do sul e leste
da península.
Mas
nem só o período acidentado que antecedeu a instalação dos monges explica a
incultura da região; podemos acreditar também que as nossas terras nunca
interessaram os sarracenos. O árabe foi, sobretudo, um agricultor de planícies,
prodigioso técnico de hidráulica agrícola, um feiticeiro das hortas e jardins
magnificentes. E as terras de Alcobaça não lhe podiam oferecer então a
matéria-prima necessária a tais prodígios.
Escalvada
e árida, erguia-se ao nascente a Serra dos Candeeiros; ao poente cobria o mar
os campos do Valado e da Maiorga. Entre estes dois limites, apenas uma faixa
estreita, selvosa, onde pequeninos ribeiros, raros e delgados fios de água, se
escondem sob os silvedos para fugir, durante a canícula, ao beijo ardente e
mortal do sol.
Esta
ganga grosseira ocultava um diamante magnífico, que viria a ser uma das mais
formosas joias do Portugal nascente; mas só os monges cistercienses o facetaram
e poliram.
E foi gigantesca essa
tarefa. Tenha-se em atenção a intranquilidade dos tempos, o labor exigido pelos
trabalhos ásperos de desbravamento das vastas terras doadas, senão também a
escassez de população rural, o seu atraso e rudeza, e quanto seria dificultoso
incutir-lhe hábitos de trabalho e de disciplina por métodos puramente cristãos.
Ruínas
e incêndios testemunhariam as lutas recentes; não longe ecoava ainda, como
temerosa ameaça, o fragor das batalhas. Revestia as colinas essa vegetação
espinhosa e agressiva, tão característica da flora mediterrânea-atlântica;
charcos e pântanos cobririam então as veigas mais ricas.
Instalados
na abadia velha, e ao mesmo tempo que se erguia o majestoso tempo, começam os
monges a arrotear os campos. No começo do século XIII, quarenta e tantos anos
depois da sua chegada, diz-nos Fr. Fortunato de S. Boaventura, os religiosos já
haviam desbravado a maior parte das terras que ficavam até uma légua de
distância do Mosteiro.
Mas
o cultivo de tão extenso território exigia avultoso número de braços, e aplica-se
uma hábil política de povoação, graças à qual, no dizer do cronista, se
desenvolveu rápida e maravilhosamente
a população dos Coutos. Dão-nos aos colonos as maiores regalias, incluindo a
posse da terra depois de certo número de anos de cultivo, e variável conforme a
sua maior ou menos fertilidade. Nos sítios menos férteis ou mais inóspitos
colocava-se o marco do couto, a que se abrigavam os criminosos perseguidos pela
justiça, e ai se constituíam, com o tempo, pequenas colónias de agricultores.
Em
lugares escolhidos com superior discernimento instalam-se as Granjas e Quintas
do Mosteiro, que vêm a ser verdadeiras escolas agrícolas, ou explorações rurais
modelo, onde os monges habitam e trabalham e são, disse Rebelo da Silva, mestres e exemplos vivos dos preceitos
rurais. Destes seminários saem experientes agricultores que levam a toda a
parte os mais aperfeiçoados métodos de cultivo. Erguem-se a pouco e pouco as
Vilas dos Coutos, e no meado do século XIII instituem-se as primeiras
paróquias.
Apenas pelas Cartas
de Povoação, onde se contém a rudimentar legislação agrícola das terras de
Alcobaça nesse tempo, podemos avaliar a importância da obra realizada.
Rudes
tempos esses; mas que singela e adorável legislação! Aí sobressai, através de
recomendações infinitas sobre o esmerado granjeio, o amor à terra, tão
laboriosamente agricultada.
Na
grande maioria dos casos, os monges entregavam aos colonos o terreno cultivado
por suas próprias mãos, e as Cartas referem-se a olivais, vinhas, pomares e
hortas já feitos; noutros casos,
impunha-se ao colono a obrigação de romper
o que houver de romper, cada um segundo as suas posses. Mas, aqui, os
mestres agrónomos guiariam os colonos na escolha das culturas; de harmonia com
a aptidão dos terrenos; indicariam as rotações mais convenientes para não
enfraquecer a fertilidade do solo; delineariam os trabalhos de drenagem, ou de
irrigação, porventura necessários; ensinariam a podar e a enxertar as espécies
lenhosas, e todas as práticas, enfim, do mais perfeito cultivo.
O
Mosteiro dava ainda ao agricultor as ferramentas agrárias, fabricadas nas suas
ferrarias, emprestava as sementes, que recebia sem acréscimo na época da colheita, e, como senhor das águas e dos
ventos, tomava a seu cargo a construção dos moinhos, e dos lagares de vinho e
de azeite.
Depara-se-nos
também em quase todos os forais esta cláusula importante: que os povoadores sobreditos possam talhar madeira para suas casas
fazerem, e para suas cubas, e para outras cousas que foram mister. Regalia
valiosa, se atendermos às severas restrições que a instituição das coutadas
impunha ao corte de arvoredo nos domínios das outras ordens religiosas, nas
terras senhoriais e até nos reguengos do Rei.
Depois
de alguns anos de cultivo, a terra ficava a pertencer ao colono: 10 anos, por
exemplo, nas veigas mais férteis da Maiorga e de Aljubarrota; 6 anos, nas de
Turquel; 3, nos terrenos de S. Martinho do Porto, areolas pobres e de magro
rendimento.
Mas
veja-se ainda esta hábil e justa política tributária: Se o terreno era
arroteado pelo colono, o imposto a pagar ao Mosteiro aumentava com o acréscimo
anual da produção, como se verifica na seguinte cláusula da carta da Cela Nova:
Porém esses agricultores são obrigados a
romper, cultiva e frutificar esses herdamentos bem e fielmente; e dos que
novamente romperem, e da bravia até há oito anos inculta, paguem no primeiro
ano a oitava parte, no sétimo a sétima, no sexto a sexta, no quinto a quinta,
no quarto a quarta, e daí por diante paguem a quarta parte.
As
prescrições quanto ao cultivo revestem-se de adorável simplicidade. Lê-se, por
exemplo, na Carta de Povoação de Turquel: e
devem conservar o mesmo olivedo, e plantar o que houver de plantar com qualquer
enxertia, e semear e cultivar bem e fielmente, e cercar o mesmo olivedo com
valado ou muro que não possa ser danificado e destruído pelos gados, e se assim
o não fizerem, aquele que for achado culpado e negligente perca a parte que aí
tive. E ainda, no mesmo foral: no
tempo do recolhimento ou da ceifa, devem eles mesmo com seus homens e com suas
famílias, bem e fielmente ceifar o pão… Ou ainda, no foral da Maiorga: E vós deveis aos dez anos vingar o dito
herdamento, morando-o continuamente com vossas mulheres e cavando-o e
frutificando-o e plantando vinhas e olivais e pomares e rompendo bem e
fielmente cada um as courelas que lhe forem assinadas. Os próprios monges
davam o exemplo: A carta de povoação de Turquel revela-nos que ainda no
princípio do século XIV eles pastoreavam os rebanhos: que o Mestre de Turquel e os frades que aí assistem e guardam as
ovelhas e outros animais nossos possam no sobredito terreno fazer suas casas.
Por
isso, a indolência e o desleixo não tinham perdão nas terras de Alcobaça: E se algum desses moradores, diz o foral
de Cós, vagando por sua preguiça ou
malicia desampararem por algum modo negligentemente esse herdamento, deem a nós
o nosso foro assim como dão os seus vizinhos a sua parte.
Já
então se combatia a tendência para o acréscimo descomedido da propriedade
individual, sem a valorização da terra pelo trabalho, tendência que havia de
transformar-se, nos séculos seguintes, num dos maiores flagelos da agricultura
portuguesa. Ainda na Carta de Cós encontramos esta cláusula: E se algum não quiser ou não puder lavrar
todo o seu casal ou parte dele, dê-o a quem o lavrar de tal maneira que o dito
Mosteiro haja completo todo o seu direito, e se o fazer não quiser, dê-o o Abade
ou seu Procurador a quem o lavre e faça nele prole.
Os
frades favoreciam a policultura, não só reclamada pelas necessidades do tempo e
pela economia rural, senão imposta pela diversa constituição dos solos e como
defesa contra as inclemências do clima, então mais para temer do que hoje.
Cultivavam-se os cereais, muitas leguminosas, o linho e plantas hortícolas. Às
vinhas, pomares e olivais encontra-se, amiúde, referência nas cartas de
povoação, o que mostra o especial carinho que os monges lhes dedicavam.
Embora
o colono ficasse na posse da terra, decorrido certo número de anos, só poderia
vender a tal homem que a more e haja
forças e poder de a lavrar bem e cumpridamente. Mas a boa ordem dentro do
Coutos exigia ainda outras curiosas restrições ao direito da propriedade, e
neste particular os frades não hesitavam em medir pela mesma bitola de
idoneidade: clérigos, religiosos, sarracenos e judeus.
Assim,
o colono não podia nem vender, nem
emprazar, nem dar, nem doar, nem empenhar, nem trocar, nem emprestar, nem de
outro modo alienar as terras a clérigo, militar, pagem de armas, ou religioso,
ou sarraceno, ou judeu, nem a outra pessoa qualquer por que possa o Senhoria do
Mosteiro e as suas rendas ser minguadas ou embargadas. Nesta lista negra, como hoje lhe chamaríamos,
figuram ainda, noutros forais, ou cavaleiros, as ordens religiosas e até, por
graves razões decerto, as próprias donas de linhagem.
Por
modestos, e sabiamente e equitativamente distribuídos, de acordo com a
produtividade, valor dos terrenos, natureza das colheitas e riqueza do colono,
os impostos, tributos, rendas ou foros cobrados pelo Mosteiro estavam longe de
oprimir os agricultores. Este facto ajuda a explicar a rápida povoação das
terras de Alcobaça e a sua prosperidade crescente. A agricultura de então,
apesar da rudeza dos tempos, não era ainda a arte laboriosa e difícil de se
empobrecer pelo trabalho.
Visto
através da neblina dos séculos, que esconde os dramas, as angustias, e as
pequeninas imperfeições e misérias da obra humana, esses tempos revestem-se da
mais enternecedora poesia: Monges piedosos, ardorosamente, fazem brotar da
terra pão; uma Rainha, e Santa, transforma o pão em rosas…
Mas ao mesmo tempo
que se realiza a prodigiosa transformação das terras de Alcobaça, os monges defendem
carinhosamente a sua obra, e procuram alcançar regalias que projetam a
prosperidade nascente. D. Pedro isenta os caseiros dos Coutos de pegarem as
armas e irem à guerra, atendendo ao fim a que miravam: o desbravamento das terras e o progresso da agricultura; e este
privilégio, conformado depois por D. João I e D. Afonso V, permitiu que os
braços mais vigorosos não abandonassem a enxada ou o arado. Os povoadores dos
Coutos estavam isentos por D. Denis de pagarem jugada. Ainda D. Afonso V,
confirmando um antigo privilégio daquele Rei, dispensa os caseiros de Alcobaça
de terem armas e cavalo, e do reparo das fortalezas.
As terras de
Alcobaça,
disse Rebelo da Silva, haviam de
contrastar, pelo seu cultivo, com as propriedades imensas das ordens militares
e das igrejas, que constituem exemplos deploráveis de incúria injustificável.
E
assim se explica o alto apreço em que era tida, na época, a ciência agronómica
dos Monges de Cister. As doações dos primeiros reis ao Mosteiro, mais do que
intuitivos piedosos, evidenciam claro propósito de utilizar seus vastos
conhecimentos.
D.
Sancho I, em 1195, entrega-lhes o paul da Ota, e quarenta e tantos anos depois
já ali existia uma povoação considerável. Os campos de Valada e Salvaterra são
entregues também aos monges, e D. Afonso II lega-lhes o reguengo de Aramenha,
perto de Marvão, que tinha sido demolido na guerra contra os mouros. D. Afonso
III faz-lhes doação do seu reguengo de Beringel, cujos povoadores recebem a
carta de foral 14 anos depois.
No
tempo de D. Dinis, enxugam o paul do Ulmar, no termo de Leiria, e este rei,
agricultor e sábio, que em tanto apreço tinha o virtuoso labor dos
cistercienses, encarrega-os de dirigirem a fortificação de praças e castelos, e
até da administração de alguns celeiros.
Não constitui,
todavia, a agricultura preocupação exclusiva dos monges dos primeiros séculos.
Também
eles impulsam a indústria. Vimos como extraíam e trabalhavam os metais; criam
no Mosteiro oficinas de diversas artes; aproveitam a energia hidráulica e
constroem moinhos e lagares.
Mas,
a par disto, as avultadas esmolas que se distribuem na portaria, o hospital
onde se tratam os doentes pobres, o auxílio aos agricultores nos anos de mais
minguadas colheitas, mostram-nos como eles exerciam modelarmente a caridade
cristã. E sabemos também que não descuraram a sua alta missão civilizadora. O
Abade D. Fr. Estevão Martins funda ali, em 1269, as primeiras escolas públicas
de Portugal. É ainda a um abade deste Mosteiro que se deve em grande parte a
criação da Universidade.
Depois do meado do
século XIII, diz Fr. Fortunato, desbravadas e entregues à cultura e aos respetivos
povoadores as terras dos Coutos, os monges, já ricos, deixam de agricultar a
terra. E acaba verdadeiramente aqui a história dos Monges Agrónomos.
Mas
a lição magnífica destes varões timoratos e discretos, de quem o cronista
disse: bem se conhece que só tinham
figura humana, e em tudo o mais eram santos perdura talvez até ao meado do
século XIV.
As
Quintas e Granjas do Mosteiro continuam a ser explorações agrícolas modelo,
onde se aperfeiçoam os métodos culturais, se ensaiam novas práticas, e se experimentam
novas espécies e variedades de plantas. São as escolas agrícolas, de primoroso
granjeio, lição viva e edificante, estímulo permanente para o aperfeiçoamento
da técnica cultural. Assim foram as Granjas da Cela, Vimeiro, Maiorga, Turquel,
Santa Catarina, Bárrio e Évora, nalgumas das quais ainda hoje podemos ver os
vestígios da previdência fradesca.
Mais
tranquilo o país, florescente o estado das terras, monges e colonos gozam o
fruto do seu labor. E ao contemplarem os casais que alvejam entre a verdura, os
férteis e bem cultivados campos, a vegetação ridente dos vinhedos e dos
pomares, todas as promessas, enfim, de aprazível e abastado viver, com que
gratidão estas almas simples e piedosas louvariam a bondade infinita de Deus!
Mas não deviam durar
muito as pacificas relações entre o Mosteiro e os povoadores dos Coutos. No
último quartel do século XIV entra para o abaciato de Alcobaça D. Fr. João
Dornellas, o abade mundano e político, e pronto desaparece a simplicidade
adorável da vida monástica, onde ainda transluziam as altas virtudes de S.
Bernardo. Amargamente, os colonos conhecem então aquilo a que é hoje costume
chamar uma ordem nova.
Capitães
e homens de armas acompanham o Abade quando sai do Mosteiro, e servem-no, para
maior esplendor da sua dignidade,
criados e escudeiros de nascimento ilustre. Os povoadores dos Coutos são agora
perseguidos com impostos e extorsões; o próprio Abade desce a fazer justiça por
suas mãos, e obriga a pagar à força os menos prontos ou mais recalcitrantes.
Desbaratam-se as rendas em requintes de luxo, em obras na igreja e na abadia, e
em largas dádivas para atrair a benevolência dos poderosos.
Constituem
documento impressionante as queixas apresentadas a D. João I pelos povos de
Évora e de Turquel: Numa segunda-feira de
madrugada, narra um dos capítulos, o abade chegou a Évora, onde as gentes
jaziam nas suas camas; e por sua pessoa andou lançando fora das casas as
mulheres que então se levantavam não vestidas com os meninos nus, fechando-lhes
as portas, e tomando-lhes as chaves… até que pagámos quando ele mandou.
Queixa-se o povo, noutro capítulo, de que o Abade manda prender os juízes, como as outras justiças, logo que não façam
quanto ele manda… e estes são presos e levados por seus homens ao castelo do
dito Mosteiro, e manda-os deitar por cordas a um dos fossos das torres, e
outros manda lançar em aljube onde não há sol nem lua, com muito grande crueza
e sem nenhuma caridade.
Este
tardio feudalismo, depois de séculos de límpido entendimento e de fecundo
trabalho em comum, dolorosamente impressionaria o povo dos Coutos, e muitos
campos ficam ao abandono pela emigração dos colonos.
A
vida até então privilegiada do agricultor das terras de Alcobaça desce ao nível
lamentável da do agricultor do resto do pais, quer se trate dos reguengos
reais, das honras dos nobres, das terras dos concelhos, ou dos coutos de outras
ordens religiosas. Evidencia-se já a tragédia da agricultura portuguesa, bem
patente nos capítulos gerais das Cortes do reinado de D. João I e dos reinados
seguintes.
Para
corrigir os abusos desmandos dos abades perpétuos, D. João III passa o governo
do Mosteiro para os administradores seculares, e a estes fez seguir o Cardeal
D. Henrique aquilo a que um cronista chama a
peste dos comendatários.
O
Mosteiro possui agora dois Abades: Um, eleito trienalmente pela comunidade,
simples e apagada figura, tem a seu cargo a administração interna da abadia;
outro, o abade comendatário, possui a jurisdição real e arrecada quase todas as
rendas. E estes prosseguem nas terras dos Coutos com a mesma política de
violências e de extorsões; os próprios religiosos, no dizer do cronista, ficam
reduzidos à mais extrema miséria.
Às
questões internas do Mosteiro, que se desenrolam durante mais de século e meio,
de 1475 a 1640, e às repetidas queixas do povo dos Coutos, juntam-se outros
cuidados e atribulações. As terras e rendas do Mosteiro de Alcobaça constituem
apetecida presa. Havia que defendê-las da cobiça dos nobres e das ambições das
outras ordens religiosas, e até da pródiga generosidade dos reis, sempre
prontos a pagar serviços a seus válidos à custa dos bens cistercienses.
D.
João IV aboliu os comendatários, e dá aos abades trienais todas as regalias que
estes usufruíam antes de D. João III; mas fracos benefícios trouxe tal mudança
à população das terras do Mosteiro. As rendas da abadia já não chegam para as
despesas consideráveis das grandiosas obras e para o faustoso viver monástico,
que atingem todo o esplendor na segunda metade do século XVIII. Um ou outro
abade mais empreendedor tenta restabelecer a prosperidade perdida e destruir o
crescente antagonismo entre o Mosteiro e a população dos Coutos, que por vezes
assume aspetos graves. Mas as dificuldades aumentam depois das invasões
francesas e das suas criminosas devastações. E daí até que, em 1833, os frades
abandonam pela última vez o Mosteiro, foi uma curta agonia, com todas as
misérias do crepúsculo da vida.
Quais foram os
reflexos, na vida agrícola de Alcobaça, da lamentável política seguida desde o
século XV ao XIX?
A
primorosa organização inicial, a solidez das bases em que assentou a povoação
das terras e a fixação do homem ao terreno cultivado, e o adiantamento agrícola
atingido até ao fim do século XIV, permitiram que tão longo período fosse
atravessado, com dolorosas provações e cruéis vicissitudes, é certo, mas sem
que se destruíssem os fundamentos da grande obra realizada.
Embora,
através dos tempos, as quintas, cercas e granjas da abadia continuem a ser
modelos de progressivo e inteligente granjeio, o Mosteiro só parece
interessar-se, verdadeiramente, pela sorte dos agricultores, quando os
infortúnios ou o desânimo destes obreiros ameaçam as rendas e os impostos.
Curtos períodos de desafogo assinalam a passagem de abades mais previdentes e
esclarecidos; mas é talvez na segunda metade do século XVIII, já quando nuvens
negras ameaçam a vida da própria Ordem, que tardiamente se procuram reviver as
nobres tradições dos primeiros Monges Agrónomos. Eram os derradeiros clarões de
uma lâmpada que se extingue.
Plantam-se
os grandes olivais da Serra dos Candeeiros, transforma-se a Quinta de Vale
Ventos, junto a Turquel, numa formosa granja, com seu apiário que produzia o
mais claro mel de Portugal, e alinhados olivedos e pomares de laranjas e de
limas.
Ao
Abade Fr. Manuel de Mendonça, primo do Marquês de Pombal, deve-se o enxugo dos
campos de Famalicão, Alfeizerão, Valado e Maiorga, trouxeram considerável
acréscimo de riqueza ao domínio fradesco; e
a esses novos terrenos, escreveu meu Pai, para os quais eram necessários
processos de bem diversa cultura, levou o Mosteiro todos os segredos
indispensáveis, todas as sementes que oferecessem mais larga colheita.
E
quando o Prior de Avis, em 1794, perguntou aos agricultores da região quem lhes
havia ensinado a lavrar as terras com tal esmero, adubar com tanto
discernimento, a obter tao abundantes colheitas a poupar o gado a todo o
trabalho excessivo, - ouviu, diz-nos Beckford, esta resposta pronta e uniforme:
Foram os nossos indulgentes senhores e
bondosos amigos, os monges de Real Mosteiro.
Já
nos séculos anteriores o esmerado cultivo dos pomares cistercienses havia
levado aos confins de Portugal a fama das frutas de Alcobaça; mas é ainda no
século XVIII que esta cultura atinge a maior perfeição, e todos sabemos que aos
monges da época não eram estranhas as maravilhas pomológicas de Versalhes.
A
cultura da laranjeira e do limoeiro ocupava então área apreciável em Évora,
Cela, Alcobaça, Vimeiro, Aljubarrota; e até os terrenos secos e pedregosos do
jurássico, em Turquel, Benedita e Ataíja, produziam nesse tempo deliciosas
laranjas. A cultura das outras espécies fruteiras adquire grande
desenvolvimento, e a viticultura atinge um esmero não igualado pelos mais
afamados centros vitícolas do mundo.
Ainda
no princípio no século XIX, já na decadência da Abadia, o Marquês da Fronteira
e d’Alorna descreve-nos assim a cerca do Morteiro: Tudo ali se via reunido: um jardim com mimosas flores, um pomar de
laranja perfeitamente alinhado e tratado com todo o desvelo, dando laranjas que
tinham reputação no país, diferentes pomares de todas as qualidades de frutas,
que, como se sabe, têm grande reputação, sendo anunciada a fruta de Alcobaça
como primorosa, uma extensa e boa vinha… e magnificas hortas.
Este
esmerado granjeio se observava em todas as Quintas do Mosteiro. Já, porém, eram
outros os tempos. E o fim inevitável de todas a obra humana aguardava também
aquela a que as crónicas chamaram a Real Abadia de Santa Maria de Alcobaça, e
que fora no mundo um dos mais celebrados e opulentos institutos religiosos do
seu tempo.
Depois que o último
monge abandonou o Mosteiro, decorreu até hoje pouco mais de um século. E,
perguntar-se-á: Que ficou dessa dominação que durou setecentos anos, das belas
tradições dos agrónomos cistercienses?
Foram
os monges dos séculos XII e XIII que estabeleceram as diretrizes por que se tem
guiado a agricultura regional até aos nossos dias. Os olivais, os pomares, as
vinhas, tão amorosamente protegidos nas primeiras cartas de povoação,
constituem hoje ainda uma das maiores riquezas das terras de Alcobaça. Este
culto pela árvore, da mais pura tradição da agronomia latina, pois já Plínio
olhava a árvore como a mais preciosa dádiva dos deuses, sobrevive no povo, numa
visão clara de que as condições agroclimáticas obrigam a colocar em primeiro
plano as espécies arbóreas e arbustivas.
Devem-se
aos monges o incremento da cultura da vinha e o seu aperfeiçoamento técnico;
devemos-lhe também o enorme desenvolvimento da olivicultura na região. Os
extensos e formosos olivedos que sobem pelas bancadas calcárias da Serra são de
iniciativa do Mosteiro. A técnica oleícola foi elevada à maior perfeição no seu
tempo: ainda vi, na infância, o monumental lagar dos frades, na Ataíja, tal
como era, por certo, nos tempos passados. A enorme construção brasonada, que
atestava o poderio da Ordem, obedecia aos mais exigentes preceitos da técnica
oleária.
Introduziram
os monges na região a cultura dos citrinos, e tão amorosamente que ao pomar de
laranjas se ficou chamando jardim; e, com tal acerto, que os derradeiros
laranjais dos nossos duas, que produzem os mais apreciados frutos, se encontram
nas antigas quintas do Mosteiro. Desses pomares, infelizmente perdidos, se
exportavam anualmente, no meado do século passado, muitos milheiros de laranjas
para o Brasil e Inglaterra. Já no nosso tempo, ainda saíam pela barra de S.
Martinho do Porto, para Lisboa, Algarve e África do Norte, avultadas
quantidades de fruta da região.
Deploremos
que, em muitos aspetos, não soubéssemos conservar a riqueza criada, nem se
aproveitassem, como convinha, as imensas possibilidades que a iniciativa
fradesca nos abriu. Assim, da trilogia regional: Azeite, Frutas, Vinho,
acertadamente imposta pelos monges às terras de Alcobaça, não substituímos, com
a amplitude que os modernos recursos consentem, os velhos pomares que tanto
ilustraram a agricultura regional dos passados séculos. Nos nossos olivais não
chegámos, sequer, à perfeição de cultivo que ensinavam, há dois mil anos, os
agrónomos latinos.
Devemos
ao Mosteiro a fertilidade das campinas da Cela, Alfeizerão e Maiorga; foram
ainda os monges, como diligentes silvicultores, que salvaram da ruína certa as
famosas matas do Valado e do Vimeiro, as quais passaram intactas para a posse
do Estado depois de extintas as ordens religiosas.
E
devemos-lhe, sobretudo, uma tradição admirável e ininterrupta de perfeito
cultivo dos campos, tão antiga como o próprio Portugal, dura escola de homens
bons onde aprende às vezes a ser sublime, o povo amorável e simples da minha
terra!
Depois de tão
longamente falar do passado, eu não desejava concluir sem mostrar que a obra
realizada pelos cistercienses não tem apenas interesse histórico. Nem só lhes
devemos a prosperidade; deixaram-nos também uma lição.
Como
há oito séculos, nas terras de Alcobaça, hoje, nas terras de África, imensos
territórios precisam ser valorizadas pelo trabalho e pela inteligência do
homem. Ali, também, há que polir e facetar um diamante magnífico.
E
eu creio firmemente que, para essa obra urgente e grandiosa, encontraremos na
técnica colonizadora dos monges de Alcobaça admirável incentivo. O recurso
confiado aos mais avançados conhecimentos agronómicos da época para valorizar o
seu pequenino império, a arte de conseguir a fecunda fixação do colono à terra,
a assistência constante e modelar através das escolas e granjas para promover o
adiantamento agrícola, reunidos a uma hábil e sã política agrária, oferecem-nos
uma lição e um exemplo que talvez fosse atilado não desprezar nesta hora.
Minhas
Senhoras, meu Senhores:
A
|
s terras de Alcobaça foram desbravadas e amorosamente
agricultadas, há oitocentos anos, por monges que viviam entre o trabalho e a
oração. E tão fecundo foi esse trabalho, e tão fervorosas essas orações, que a
bênção de Deus desceu sobre as terras, e permitiu que através das vicissitudes
do tempo, de tantos erros e desvairadas paixões, de tanta loucura e impiedade,
esse trabalho se não perdesse, antes frutificasse, como que por suave milagre,
para maior felicidade dos homens.
Esses primeiros monges eram agrónomos.
E eu, que tão bem conheço as agruras da profissão, ainda
hoje não sei, se eles eram santos, por serem agrónomos, ou se eram agrónomos,
por serem santos…
1 comentário:
No final dos anos 70 consultei 6 livros de Vieira Natividade, cedidos pela responsável da Biblioteca da altura.
Adorei revisitar esta obra.
Gostaria de ler as outras se estivessem publicadas em papel ou neste formato.
Obrigado
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