Um
balanço dos 50 anos do regime nascido em
25 de
Abril de 1974
Jorge Araújo
Médico
A
natureza humana tem horror à monotonia, ao imobilismo, e constância:
encarrega-se de alterar tudo, mesmo o que está bem e funciona com regularidade.
Assim tem acontecido também com o regime iniciado em 1974. Houve progressos e
dificuldades como em todos os regimes.
Todos
regimes têm virtudes e defeitos. Também este é assim. Talvez a discussão
política se devesse fazer mais entre agentes honestos e com amor ao próximo com
provas dadas, do que entre políticas de “esquerda” e de “direita”, ou da
escolha de líder dum partido, em alternativa a outro.
É
paranoica a escolha de um “rótulo” ou duma pessoa, onde cabe tudo, como
mentiras e o oposto do que anunciam nos seus programas. Mas a escolha acaba
sempre por ser entre duas ou três pessoas, entre “esquerda e direita” e os
antagonismos artificiais e exacerbados entre elas.
Ainda
hoje há quem louve quem levou o país à bancarrota, e abomine quem o deixou mais
próspero.
Mas
o que se fez pelos objetivos principais do regime?
-Liberdade
e democracia:
O
impacto do regime nascido em 1974, começou por tornar possível discutir todas
as ideias, (desejo generalizado), mas trocou a anterior censura que era muito
evidente, por outro tipo de controlo social subtil: as dependências. Assim
foram sendo geradas dependências, do Estado sobretudo. Escapar à sua vontade e
tutela, parece quase impossível. Indivíduos, empresas, magistrados,
autoridades, órgãos de comunicação e seus profissionais, representantes
profissionais, e políticos, só à custa de muita coragem, e risco pessoal
conseguem contrariar a corrente dominante. Podem falir, perder cargos, ser despedidos,
humilhados publicamente, ridicularizados, ostracizados! Mas a verdade devia ser
sempre valorizada, em ditadura ou em democracia, que sem ela não se progride. A
falta de transparência é um trunfo que não devia ser utilizado, mas o que é
mostrado é o que tranquiliza a população, deixando ocultado o inaceitável, tal
como a corrupção que se esconde nas entrelinhas. A atenção vai sendo desviada
para novos assuntos, fornecidos em larga dose, e o futebol, entre muitos
outros, um poderoso instrumento de distração. São as novas modalidades de
censura, discretas, laboriosas, imaginativas, mas eficazes. Há liberdade de
pensamento, desde que alguns assuntos não cheguem ao conhecimento generalizado,
desde que não dominem as agendas mediáticas.
A
hegemónica luta entre esquerda e direita, acabou por ser mais importante e
omnipresente, que a luta entre mentira e verdade, honestidade e corrupção,
pobreza e riqueza. E acabou por proteger indivíduos (mesmo capitalistas
dominantes) e empresas “amigas” da esquerda, em detrimento de todos os outros
que não o são. Também políticas de direita podem passar com complacência se
forem produzidas por partidos de esquerda, e políticas de esquerda, têm de ser
feitas por partidos e políticos de direita, pois de outro modo é difícil
resistirem. Capital e esquerda por vezes se associam, desde que os interesses
de alguns setores não sejam afetados. Nos momentos decisivos mete-se medo com a
possibilidade do campo oposto ganhar, e em nome dessas vitórias, tudo parece
ser desculpável (a incompetência, o retrocesso económico, a criminalidade,
desonestidade etc.).
-Descolonização:
O
colonialismo condenado por todos os países, foi trocado por novos imperialismos
em que super-potências procuram dominar os frágeis Estados saídos de antigos impérios.
A estratégia de muitos séculos da nossa história, com heroicos investimentos
individuais e coletivos foi destruída, e trocada por interesses alheios. Graças
a esse redireccionamento, hoje Portugal é “respeitado” por quase todos os países. De Império com
debilidades, passou a país que sobrevive com ajudas comunitárias, e nalguns
aspetos é “colónia” dissimulada de outros países. O serviço militar obrigatório
e a guerra terminaram (o que foi muito bom), mas o desinvestimento na defesa
vai criar grandes vulnerabilidades já num futuro próximo. Venderam-se quartéis,
não temos militares em número suficiente, porque as guerras foram coisas do
passado, mas as atuais guerras entre países democráticos e ditaduras, vieram
lembrar que essa ideia muito desejável, é uma utopia. E os países utópicos vão
ser presa fácil dos realistas. Uma nova Ordem Mundial passou quase toda África
e América latina para a órbita de Rússia e China, da qual dificilmente escapam.
-Desenvolvimento:
Hoje
quase não há analfabetismo, ao contrário do que existia antes de 1974, há mais
acesso a cuidados de saúde, mais consumo, mais bens disponíveis, mais acesso ao
crédito, mais bem-estar material, do que existia no antigo regime.
Mas
o regime atual, com a instabilidade com que começou, teve de ser pago por
todos, e com a venda de toneladas de ouro amealhado pacientemente ao longo de
décadas pelos antigos senhores do poder. Depois o progresso continuou com
endividamento do país, das pessoas e das empresas, seguido dos apoios da Comunidade
Europeia, dos investimentos nacionais e estrangeiros, da energia barata, do
desenvolvimento técnico, científico, e da globalização que transporta bens
produzidos a baixo custo por escravizados noutros países. Excetuando as tão
necessárias infraestruturas mais que as políticas internas, a meu ver,
globalização e inovações técnicas e científicas foram os fatores que mais
potenciaram o crescimento e acesso a bens de consumo.
O
consumismo também garante mais receitas ao Estado, e é estimulado por todos.
Aparentemente o aumento do bem-estar material derivou da política, mas para
todo o Mundo entre outros, foi sobretudo a exploração de um sector da população
chinesa pelo partido comunista, que permitiu produzir a baixo custo, quase tudo
o que hoje se consome. Os países “progressistas” como o nosso sobretudo, mas de
qualquer modo todo o mundo ocidental, em breve será dominado pela estratégia de
Deng Xiao Ping, que tem arrecadado grande parte da liquidez monetária mundial.
Mas Portugal teima em se manter na “luta de classes” diabolizando as empresas e
empresários, quando a tónica noutros países não é tão acintosa. E vamos
alegremente consumindo freneticamente enquanto os países mais sábios, se
preocupam em produzir e vender, mais produtos a outros.
-Educação:
O
acesso à educação tornou-se mais abrangente no número de indivíduos, embora se
tenham apagado dos currículos básicos e secundários algumas matérias
indispensáveis, ou fornecidas com alguma carga ideológica.
A
aprovação menos exigente dos alunos, torna-os menos aptos a progressão, e mais
débeis no mundo competitivo em que estamos inseridos. Ainda assim há alguns
alunos, cursos, Faculdades, e instituições que apesar disso progridem com altos
níveis de exigência, que contrastam com a generalidade. Continuam altos níveis
de ignorância, apesar de grande melhoria da escolaridade.
Em
todo o caso também há mais licenciados, que quase na totalidade só têm acesso a
um vencimento mínimo, ou em alternativa, a emigração será o seu ascensor
social.
A
educação que no anterior regime era “ascensor “, agora passou a ser
gradualmente um “estagnador”, nivelando todos por baixo (os mais produtivos com
os menos produtivos). E o desemprego e os baixos vencimentos atingem sobretudo
a juventude, que hoje não tem qualquer esperança de ver alterado este estado de
coisas. O excesso de impostos, outros exuberantes custos de produção , e
ambiente nefasto para o empreendedorismo, têm eliminado muitos empregos, e
tornado o País menos competitivo!
-Políticas
sociais:
Camuflando
as estatísticas, distribuem-se todos os anos mais alguns euros, que remuneram o
voto de eleitores cada vez mais numerosos, (e assim deixam de ser incluídos na
pobreza, mas conseguem comprar cada vez menos produtos). Mas essas verbas são
retiradas a uma classe que já foi “média”, nivelando a quase totalidade dos
Portugueses, com salários que quase só dão para a subsistência. O rendimento
médio está encostado ao rendimento mínimo, reduzindo todos os anos a pequena
diferença. Não aumentando a riqueza dos cidadãos, que com a inflação tornam
insuficientes os ilusórios aumentos, pelo contrário tem diminuído os
rendimentos. Iludem-se estatísticas, e iludem-se os eleitores que esperam
ansiosamente pelos “aumentos”.
-Saúde:
A
assistência na doença e prevenção de Saúde que foram dos grandes sucessos do
regime democrático, tem se preocupado sobretudo com os números (mortalidade,
saúde infantil, cobertura de grávidas, planeamento familiar, diabéticos,
hipertensão, de prevenção vacinal) mas tendencialmente tem desinvestido no
acesso atempado, de urgências e consultas. Tudo o que não for quantificável tem
menos importância, e se alguma coisa correr mal, a culpa é dos profissionais.
Neste
item, os profissionais se debatem com sobrecargas, burocratização, redução de
efetivos, remuneração insuficientemente, e más condições de trabalho. Vai sendo
exigido mais e mais, a cada vez menos profissionais, que por isso mesmo menos
tempo dispõem para os seus doentes.
Justiça:
Na
qual os principais partidos dizem estar confiantes, baseada em leis por eles
promulgadas, deixa sem punição a grande criminalidade económica, e política. As
dificuldades de investigação somadas aos intermináveis recursos processuais, e
prescrições, têm sido as ferramentas principais dessa impunidade. Têm tido
estas poderosas ferramentas para que as Máfias políticas escapem.
A
segurança pública, apesar do esforços das mal pagas Autoridades, vai ficando
mais fragilizada, facto que não é alheio, à impunidade que sentem os que a ela
atentam, e a falta de meios disponíveis.
Depois
destas considerações genéricas, para ilustrar o setor que melhor conheço,
descrevo algum impacto que teve o regime democrático na minha vida estudantil e
profissional.
Seguindo-se
a uma infância e adolescência em que tudo foi estável e quase imutável, ano após
ano, o 25 de Abril apanhou-me no 2º ano da Faculdade de Medicina de Lisboa. Aí
assisti como espetador às lutas estudantis, com curiosidade pela novidade que
traziam. Mas cedo nelas desacreditei.
Não
tinha sido mobilizado para o Serviço Militar enquanto estudante, e depois
também não porque entretanto acabou a Guerra Colonial. Esse foi um grande
benefício direto do regime democrático para a minha vida e de muitos.
A
efervescência política tinha começado e era potenciada nas universidades, pela
hegemonia dos partidos da extrema-esquerda, que lá se tinham instalado já no
antigo regime.
Era
tudo novidade, que se alimentou da ignorância, inexperiência, falta de
ponderação, e ingenuidade da maioria. A política passou a ser hegemónica, e
tornar tudo o resto secundário.
O
primeiro choque que tive com essa nova realidade política, foi-me revelado
pelos saneamentos políticos, inversão das hierarquias. Sucedeu a quase ausência
de publicidade dos órgãos de comunicação nos primeiros tempos pós 25 de Abril,
porque as empresas, os empregadores, foram fortemente diabolizados, pelos
ventos que sopravam da União Soviética, Cuba, China, RDA.
Mais
tarde seriam as independências da ex – colónias, com o regresso de muitos
colonos. Também o aumento de antagonismos e conflitualidade com risco de guerra
Civil. Felizmente esse perigo se esbateu, mas ainda hoje se sente alguma
conflitualidade social como entre patrões e empregados.
Um
começo de alguma racionalidade económica começou com ministros como Hernâni
Lopes e Cavaco Silva. Mas problemas económicos surgiram em várias épocas, com
as “bancarrotas “ de forma rápida, mas as soluções foram lentas. A inflação
fazia retroceder as “conquistas” salariais.
Depois
terminado o curso de Medicina participei no Serviço Médico à Periferia, que foi
o embrião do Serviço Nacional de Saúde, que veio mudar o panorama sanitário do
País. A minha geração e a sua dedicação, fez um esforço heroico, que julgo
difícil de replicar na futura medicina
pública, com tão poucas contrapartidas
como as que dispusemos.
O
Serviço Nacional de Saúde sucedeu nos Centros de Saúde, às antigas consultas
das Caixas de Previdência do antigo regime, que tinham sido uma abordagem
barata e muito mal remunerada de consultas Médicas. Apenas permitiam a obtenção
de uma prescrição comparticipada, ou uma solução de um problema de saúde que
não devia demorar mais de 5 minutos a resolver. Ainda assim havia muita
afluência, que se transferiu, e aumentou com o novo serviço.
O
grande Ex-libris do novo regime, o SNS veio substituir a anterior situação,
colocando a saúde dos portugueses, nos primeiros lugares em termos
estatísticos, a nível Mundial, mas foi um trabalho muito intenso, mal
remunerado, de muitos jovens Médicos, instalados em todo o território. As
exigências sempre crescentes do poder político, que aplicou à sua atividade,
associadas à boa vontade dos profissionais, deu bons resultados, mas também
alimentou excessivo consumismo por parte de todos.
Concluída
a Licenciatura em 1978 seguiu-se o internato Policlínico em 1979 e 1980 que
incluiu trabalho no Hospital de Stª Maria e 6 meses em Alcobaça. Depois em Alcobaça o Serviço Médico à
Periferia em 1981 e 1982 e a carreira de Clínica Geral / Medicina Familiar de
1983 a 2011 no SNS.
Permitiu
o SNS acesso a toda a população a consultas diárias no Centro de Saúde, e
urgências imediatas no Hospital gratuitas ou quase, colocou os Médicos da
Carreira de Clínica Geral na situação de concorrentes muito baratos, dos seus
próprios interesses na Medicina privada, durante alguns anos. Ainda assim e
progressivamente as Clínicas Privadas vieram a crescer, e ocupar um lugar cada
vez mais importante, graças às burocracias do setor público, e aos
constrangimentos exigidos aos seus profissionais. Progressivamente foram
criadas as condições para a Medicina estatal diminuir de importância, o que
sobretudo foi conseguido paradoxalmente pela “esquerda”, enquanto publicitada
sobretudo a intenção oposta. Em todo o caso a pressão política para alargamento
de lista de utentes, e redução de tempo de consulta sempre se fez sentir, o que
também contribuiu para sobrecarga, e diminuição da qualidade, funcionando como
“castigo” não assumido mas implícito, que se exerceu sobre os profissionais e
utentes, levando a que uns e outros fossem optando pela Medicina Privada.
Enquanto
as demoras da Justiça se foram medindo em muito anos, décadas, ou ausências de
eficácia, na Saúde, a exigência foi sempre de uma solução imediata tanto quanto
possível, o que foi ilustrado pelo uso excessivo das urgências hospitalares.
Mas estas em tempos recentes surpreendentemente encerram alguns dias por falta
de profissionais, em muitos dos nossos Hospitais.
As
urgências do Hospital de Alcobaça desde o inicio do SMP e de seguida do SNS,
sem Médicos efetivos, mas “emprestados” pelo Centro de Saúde, como foi o meu
caso, e outros colegas colocados nesta localidade, asseguraram o atendimento a
uma população de mais de 50.000 habitantes, nalguns dias com uma afluência
comparável ao dum Hospital Central, onde um ou dois médicos escalados (mais tarde,
mas já recentemente, seriam reforçados com um Internista), tinha de assegurar
essa cadência avassaladora. O
atendimento tinha de ser extremamente rápido devido à imensa procura, e se
alguma situação demorava, tinha de ser mantida em vigilância pela enfermagem,
enquanto se passava a outros atendimentos. A eficácia e profissionalismo que a
população exigia, e se faltasse ninguém perdoaria, foram garantia de bons
resultados. É difícil a quem não trabalha na saúde em Alcobaça, imaginar o
esforço hercúleo durante tantos anos, com milhares de atendimentos, tanta
responsabilidades exigida, e tantos problemas resolvidos localmente.
Com
o excessivo consumismo que alimentou o Serviço nacional de Saúde cresceram de forma
exponencial os negócios paralelos da saúde como os farmacêuticos, analíticos,
outros exames complementares, e atividade seguradora.
Mais
tarde, a nível nacional, houve a ideia de reduzir os profissionais efetivos nos
quadros Hospitalares, passando a recorrer-se a sub-contratação de empresas
privadas, sobretudo para complementar esses serviços. Estes Hospitais agora por
vezes sem profissionais suficientes, menos motivados, e com menores ligação à
comunidade, claudicam. Nos Centros de Saúde foi progressivamente exigido maior
número de utentes, e mais burocracias, e no fim da minha carreira pública,
deviam ser observados em 11 minutos cada, independentemente da gravidade ou da
complexidade do caso, e nesses escassos minutos a maior parte era consumida com
as ditas burocracias informáticas ou outras. Um “sufoco” de que a maior parte
dos utentes nem se apercebia.
Com
estes pressupostos, e a perda de poder de compra generalizada, mas sobretudo dos
profissionais de Saúde, passou a fazer-se sentir cada vez mais, a necessidade
destes integrarem cada vez mais Clínicas privadas, saídos ou não do Estado, ou
em alternativa, a sua emigração.
Hoje
chegamos à situação de encerrarem Serviços de Urgência com alguma frequência,
dos utentes serem atendidos por profissionais em “burnout “, entre imensas
macas acumuladas nos corredores hospitalares, esperando horas intermináveis
para serem atendidos. Nos Centros de Saúde, quando durante muitos anos quase
todas as consultas eram marcadas e atendidas no próprio dia, hoje não é tão
fácil o acesso no próprio dia.
Com
alguns constrangimentos descritos, em todo o caso há maior acesso a cuidados de
saúde, comparativamente aos existentes antes de 1974, seja na medicina pública,
seja na privada que também se desenvolveu imenso.
Depois
da minha aposentação da Função Pública, regressei ao exercício da Medicina em
clínicas privadas, até à presente data, testemunhando o crescimento da
atividade destas.
Noutra
atividade Médica que também exerci, a de Perito Médico-legal, posso dizer houve
uma evolução positiva das perícias médicas, sobretudo na Tanatologia, desde
1988 praticada em condições indignas, na casa mortuária do Hospital de
Alcobaça, onde nem água corrente, nem câmaras frigoríficas existiam, ficando os
cadáveres muitas vezes depositados em adiantado estado de decomposição, com
larvas e o respetivo cheiro nauseabundo, e riscos para a saúde pública.
Acertadamente
transitou esse meu exercício, logo que criados os Gabinetes Médico Legais,
passando as autópsias da Comarca de Alcobaça a ser efetuadas no Gabinete Médico
Legal de Leiria, já com as exigências sanitárias e técnicas que se impõem no
Mundo desenvolvido, onde exerci desde o seu início, até à minha aposentação de
funções públicas em 2011.
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