segunda-feira, 23 de março de 2020

A PRAIA E OS BONS COSTUMES

A PRAIA E OS BONS COSTUMES 

FLeming de OLiveira 



Ainda antes da II Guerra, o governo começou a investir no turismo balnear, um pouco em detrimento do tradicional turismo termal, como forma de captar mais receitas e divisas. As praias por excelência, eram a Costa do Estoril, Figueira da Foz, Espinho e Póvoa de Varzim. Até o Algarve, se tornar o grande fator de atracão, iria mediar muito tempo. O desenvolvimento do turismo, acarretou alterações nos hábitos e na moral nacionais. A praia, o sol e o calor, estavam conotados como uma vida menos regrada, mais despretensiosa ou liberal. Apesar dos apelos e de alguma condescendência aos novos hábitos, o Salazarismo, continuava a impor uma moral puritana, por alguns já considerada obsoleta. O País sofreu um choque com a chegada da vaga de refugiados, cujos hábitos e cultura eram bem diferentes. Ainda me recordo de no Porto ouvir dizer com um misto de galhofeiro e depreciativo, que a esplanada da Pastelaria Suíssa, nos Restauradores, era a nossa “Bonpernassa”, pela relação com a exibição de pernas de mulheres, que “até” fumavam em público. 
O Dec.Lei nº 31247, de 1941, afixado em editais nas praias, havia imposto às senhoras, sob pena de multa, um “fato de banho adequado, inteiro, sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido nas axilas, os homens calção justo à perna e reforço da parte da frente cobrindo o ventre”, o que dava muita canseira aos zelosos cabos-do-mar, qual jogo de gato e rato.  
Num país com um regime que obrigava as professoras primárias e enfermeiras a pedir autorização ao governo para casar, as mulheres a ter autorização do marido para exercer comércio ou ir ao estrangeiro, não é de espantar que a indumentária das pessoas fosse regulamentada, não sendo permitidos certos modelos considerados ousados. Tudo, enfim, em nome da moral e dos bons costumes. Ou, como justificava o referido diploma, para “salvaguarda daquele mínimo de condições de decência que as concepções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam”. Ainda magro e menino, lembro-me de usar um fato de banho com calção quase até aos joelhos, com uma saia dianteira que ocultasse eventuais entusiasmos (viris) e uma camiseta de alças à moda dos antigos olímpicos, que tapasse algum pêlo que ousadamente despontasse no peito. 
O cabo de mar, uma autoridade vestida de branco da cabeça (boné) aos pés (sapatos), era o fiscal intransigente da defesa da moral. Hoje, se alguém se apresentasse numa praia portuguesa, nos preparos que a lei então prescrevia, seria alvo de suspeita, não por parte de um polícia, mas de um psiquiatra que duvidaria da sanidade mental.  
As regras que impunham decência no vestuário continuaram legalmente em vigor por vários anos, mas foram cada vez mais sendo postas em causa. Para isso, muito contribuiu o turismo que, na década de sessenta, começou a procurar o nosso país como local de veraneio, onde apareciam ingleses, franceses, holandeses e alemães, com indumentárias ousadas para os nossos padrões e costumes. Foi a época da minissaia e do biquini, das longas e despenteadas cabeleiras para os rapazes. E se muito boa gente, ainda se escandalizava com a pouca-vergonha das vestimentas dos estrangeiros, outros, especialmente a juventude, adotavam alegremente as novas modas.  
O nazareno Manel “Bexiga, recordou-me um caso, ocorrido nos primeiros anos da década de sessenta. Se é verídico ou anedota não posso atestar. Conta que apareceram umas francesas, de biquini, num areal onde todas as senhoras e raparigas ainda só usavam fato-de-banho. Então o cabo do mar foi falar com elas, tentando, com as poucas palavras em francês que aprendeu com a irmã “concierge” em Paris, ou talvez mais por gestos, explicar-lhes que na Nazaré, só era permitido usar fato-de-banho de uma peça. “Só uma peça, uma só”, tentava o pobre homem explicar. Então as francesas disseram que sim, tinham compreendido muito bem, só não sabiam era qual das duas peças era para tirar, a de cima ou a de baixo. 
Quando as férias eram um mês de praia, com casa e barraca alugadas, metade do Ribatejo e Estremadura mudava-se para a Nazaré apesar da água frias. A praia, era o palco por excelência da infância e adolescência, e despertava o imaginário para a vida. À beira das barracas listadas a azul ou a verde, quando a tarde esmorecia e a brisa se levantava, jogava-se o prego, o anelinho, o ring. Acertar com o anel de borracha na eleita pertencia ao ritual da iniciação. Quando as gaivotas voavam atras das traineiras que regressavam, com o sol a queimar de oiro a babugem das ondas, sentados na areia, passavam segredos no grupo, afagos de mão ou beijos castos sempre recusados em alarido ao dono da prenda que está para sair. Nas mesas das esplanadas ou cafés, o vocabulário pretendia-se mais cuidadoso, mais de circunstância. Os veraneantes bem aperaltados, embora já um pouco leves no trajar, à inglesa, iam para a sala para uma “batidela de cartas. Enquanto isso, as mães de família com os penteados alteados e enformados, metidas em vestidos já graciosamente decotados, abanavam os leques para fazer frente aos “caloraços, e matavam o tempo bebericando chá ou um refresco à espera do consorte. As raparigas exibiam vestidos camiseiros, de godé, nylons ululantes, meias de vidro, realçando a curvatura da perna depilada que se vinha calçar no sapatinho. Muitos rapazes trajavam de branco, calça, camisa e sapatos. 
E não faltavam os bailes de estação, com o que se pretendia recuperar a “belle époque, organizando concursos, como a mais bela da praia, o mais original vestido de chita ou o baile das vindimas. Rapazes e meninas espigavam na hora do picadeiro (após o jantar), andando para cá e para lá, olhares melados no momento de cruzarem, ancorados nas regras da civilidade e etiqueta. As mães pensavam que tendo as filhas debaixo de olho podiam adormecer sossegadas. Dos pais sabia-se que mantinham as aparências e talvez rezassem pela virgindade das filhas. Tudo funcionava regularmente, como convinha. Mas com o tempo tudo mudou.  
Bolacha americana era doce e torradinha. Porquê americana? Soava, mas não sabia a liberdade. Era redonda e de reticulado impresso. Na marcha sobre a areia quente, ouviu-se mais tarde “olha a língua da sogra”. Eram iguais no açúcar e na consistência, mas esta parecia transportar algo entre brejeirice e anedotário. Virara espátula recurvada e longa, comida a dentadinhas demoradas. As bolachas não eram para matar a fome, esculpiam apenas a gulodice. 

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