Fleming de Oliveira
Porque simplificadores, dualismos como lícito/ilícito, bem/mal, branco/preto, certo/errado, sempre exerceram ao longo dos tempos um enorme fascínio, pois que se segmenta uma realidade matizada em duas categorias alegadamente opostas e irredutíveis, como se assim se encontrasse solução para tudo. Embora reconheça esse fascínio, poucas vezes me tenho deixado seduzir por ele, nomeadamente na minha atividade profissional.
Porém, tal saída parece ser cada vez menos sustentável como solução, por maior que seja o grau de abstração do observado e na consideração do fenómeno. A sociedade, avança transpondo em dias, meses ou anos, barreiras culturais e tecnológicas de séculos, não se apresenta mais como um objeto asseticamente dividido em duas categorias, opostas e claras.
É necessário, se se busca alguma fidelidade na descrição dos fenómenos analisados, que se reduza a abstração dos raciocínios, concretizando os argumentos, pois o excesso de conceitualismo tecnocrático, mormente na área político-social (mas também no mundo do Direito), tende a manter antigas e ultrapassadas categorias ou procedimentos, com mudanças cosméticas (muda-se um pouco, para que tudo fique na mesma…), quando a realidade já não o autoriza.
Portugal não é o que conhecíamos há três ou quatro décadas (nem é necessário ir ao caetanismo). Houve, nestes últimos anos, mudanças reais que assustadoramente transformaram o nosso modo de ser e viver, de modo a autorizar a afirmação de que Portugal está a viver um período de intensas e incríveis transformações (reais), difíceis de se dimensionar no seu valor.
A sociedade portuguesa parecia um mundo estável até mais ou menos o terceiro quartel de século vinte (na altura, dizia-se, viver numa estabilidade podre, de cemitério…), sendo hoje caracterizadamente instável, com reflexos diretos na Política e no Direito, pelo que se vê obrigada a assumir outras formas e instrumentos, para atender a necessidades socialmente distintas.
Com o início deste século XXI, parece ter proliferado, consolidado a ideia de Crise. Passou a falar-se no dia a dia em Crise do contrato, da economia, da sociedade ou da ideia do Ocidente/Europa, como cultura ou civilização em que nos revemos e ainda reputamos de superior.
O fim do século XX, ao contrário do século IXX, considerado o século das grandes certezas e das grandes sínteses, foi gerador de perplexidades. A continuidade das crises, revela um processo de saturação, a acentuar-se, gerando uma multiplicidade de questões. Neste momento, independente da ideologia que se professe (ideologia entendida, aqui, no sentido de valoração de valores), apresenta-se como uma realidade complexa, dinâmica e aberta, no sentido de possibilitar inúmeros e distintos futuros. Não há (não tenho) certezas absolutas, definitivas e acabadas, embora não me reconheça como pessoa especialmente fútil ou volúvel. Outrossim, vivo entre relações multiformes, matizadas e cambiantes, as quais, por assumirem configurações inéditas, não aceitam o mesmo tratamento conferido àquelas que se repetem há longo (e perdido) tempo. A magna questão consiste em saber se será possível descrever, com razoável grau de fidelidade ou segurança, uma realidade reconhecidamente intrincada/complexa, com categorias teóricas necessariamente biformes e/ou duais?
Tenho as maiores dúvidas (não certezas, claro) quanto à capacidade do governo (e não me refiro especificamente ao atual) para praticar uma política anti-recessiva, acima de tudo, por falta de golpe de asa e autoridade, senão de rumo ou de visão. O governo teria, de saber ou poder impor à UE uma mudança de postura, obrigando-a a um aumento de solidariedade (que não resulta do expresso nas letras de um Tratado, que o Povo não conhece) através de medidas macroeconómicas e financeiras.
A dispersão de esforços e de atenções dos governantes não é compatível com o quadro de necessidades que o País atravessa, pois não sendo reconhecida uma gestão direcionada (com um rumo definido) para uma estratégia de escalonamento de importâncias, espreita o risco descalabro que se traduzirá na progressão do desemprego, o fim das prestações sociais, a redução dos salários e as pensões, como se não houvesse direitos adquiridos, mas meras expectivas. Entraremos, então, no quadro mais negro da nossa História recente, porque vivemos numa soberania altamente limitada e comprometida.
Portugal parece seguir um caminho auto-destrutivo. Talvez mais de um milhão de homens e mulheres debatem-se com o desemprego (a que nunca nos habituarenos, seja qual for a respetiva taxa) e os que assim não se encontram têm cada vez menos emprego com direitos. O trabalhador desempregado é ser desumanizado, perde direitos, não usufrui de igualdade, nem liberdade. O trabalhador desempregado, como os que dele dependem, perde na prática acesso a serviços essenciais como a educação, cultura, saúde, mobilidade, capacidade de reivindicativa inerente à noção da dignidade do trabalho (veja-se o recente caso do PINGO DOCE, em que o aflito consumidor no Dia do Trabalhador cedeu perante o incomensurável valor da dignidade do trabalho e dos que trabalham).
Com o aumento do desemprego e do trabalho sem direitos (não é na flexibilização das leis laborais que se vai encontrar a panaceia para o desemprego, muito provavelmente aquela para este fim terá efeitos preversos), o trabalhador é utilizado como moeda de troca para a redução de direitos, salários e aumento dos deveres, responsabilidade e horas de trabalho, dos concidadãos ainda empregados. Estes, assim chantageados, acabam por ceder a situações ilegais, indignas ou imorais, aparentemente tornadas muito legais ou economicamente muito interessantes.
O trabalhador desempregado precisa de apoio social na procura de emprego, mas acima de tudo precisa de um emprego digno (a flexibilização não cria emprego outrossim mero desemprego), estável, que cumpra os seus direitos legais e morais, para poder viver a vida e contribuir, como os seus concidadãos, para o bem comum. Ver o nosso arco parlamentar tolerar ou repudiar (oportunística ou com convicção) aquele acontecimento, é algo que me causa desconforto, porque vivi tempos em que a direita que mandava fazia a apologia da ditadura do capital, cultivava a ideia de desigualdade, enaltecia a falta de liberdade, enxovalhava e troçava da democracia, mesmo burguesa. Abril parecia ter sepultado essa direita, fazendo germinar uma outra ainda que a contragosto. Chama-se-lhe a, condescentemente, progresso ideológico. Coisa que os eternos amantes do simplismo não deixam, nem irão deixar de condenar, com viva suspeição.
Democracia capitalista? Penso que na resposta a estas interrogativas, irei convergir pontualmente com a nossa direita sem me deixar afastar da velha denúncia anti-capitalista (de esquerda algo folclórica), na precisa medida em que a resposta é demasiado consensual para que possa haver discordância significativa entre gente civilizada, bem intencionada e séria. Dou-a sem hierarquizar pois desconheço as certezas, dificuldades como o desemprego, pobreza/miséria, insegurança, crescente desigualdade social.
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