sexta-feira, 13 de setembro de 2019


UMA QUESTÃO DE TEMPERO!

FLeming deOLiveira

A)-Há uma razão bem para que, há vários anos para cá, tenha começado a escolher no restaurante, o mesmo prato que a Ana Maria. Posso dizer, ela escolhe melhor. E nunca recusa o bacalhau, quando consta do menu.
Quando antes fazia o pedido pela minha cabeça, ela muito benévola e generosamente dividia o seu prato, para eu não ficar desconsolado.
Na verdade, como antiga senhora professora, nesta e outras matérias, além de saber ensinar, sabe fazer e, portanto, decidir por ela, por mim, pelos filhos e netos.

Durante muitos anos mantive-me conservadoramente preso às regras que trouxe da casa de meus Pais, nomeadamente em matéria de temperos, onde se seguia uma prática muito conservadora. A Ana Maria temperava-me, por isso, com paciência a salada de alface, tomate e pepino (por vezes com couve roxa), conforme as minhas rigorosas e teimosas especificações. Isto durou até ao dia em que, com algum ceticismo, provei a sua salada e constatei que o seu tempero era bastante melhor que o que herdara de casa da minha Mãe. Para não dar parte de fraco, fingi que não me importava de partilhar da sua salada, pois assim iria poupar-lhe tempo e trabalho…
Eu julgava que sabia o que era salada russa, porque sou maluco por salada russa e nunca na minha vida recusei uma que fosse. A salada russa da Ana Maria era tão perfeita, ao ponto de eu descobrir que afinal nunca tinha na vida provado salada russa.
Tudo o que ela faz, tem de envolver grandes riscos, pois é a única maneira de não se aborrecer. Por exemplo, decidiu fazer a maionese caseira com um garfo (em vez de colher) e utilizar três vezes mais a tradicional quantidade de vinagre. Talhou? Não talhou, não Senhora. Ficou deliciosamente leve e é de chorar por mais.
No sábado passado, estávamos a acabar de almoçar em Peniche quando chegou uma caldeirada para a mesa vizinha, onde ansiosamente salivava e palrava alegremente um grupo familiar.
Reconheço que a cobiça é por vezes muito forte e cedo a ela. Mesmo com o estômago cheio, cobicei a caldeirada da mesa vizinha com o seu cheiro e colorido, e admirei-me com o silêncio repentino que precedeu ao ataque do grupo de comensais com talheres em punho.
Já me tinha acontecido há anos no Porto uma coisa algo parecida, com a chegada de uma dobrada (prato que aprecio, como bom tripeiro) para a mesa de uns lisboetas espertos (apesar de benfiquistas…) em contraposição com o Bacalhau à Gomes de Sá, em que seguimos a orientação da professora Ana Maria.
Desta vez ela não teve razão. Afinal os professores também se enganam. Será assim Professor Marcelo? Rimos, mas tivemos de ficar pelo Bacalhau à Gomes de Sá, apesar do aspeto assombroso da Dobrada à Moda do Porto.
B)-Nos fins de julho estive na baixa de Lisboa, o que hoje em dia poucas vezes me acontece. É infernal, não há moradores, só turistas. Centros como este, tornaram-se cemitérios coloridos e tontos, onde já se chora a morte da cidade que foi.
Caros leitores, o que destrói uma cidade é a impermanência, não as casas em que há pessoas, portuguesas ou estrangeiras, que passam lá a vida. Não são diretamente os turistas que estragam a cidade, mas a falta de moradores que vivam na cidade e lhe deem vida.
Até já imaginei compartilhar o centro da cidade de Lisboa com comunidades estrangeiras, mas creio que o Medina não acharia boa a ideia de compor esta salada. Desde que lá morassem e se sentissem em casa, devolver-lhe-iam a vida. Lisboa ganharia muito em ter como tempero, uma pequena Angola, um pequeno Moçambique, um pequeno Cabo Verde, um pequeno Brasil, e por aí fora. Isso sim seria compatível com uma bem temperada capital cosmopolita, como Lisboa. Não estar cheia de viajantes vestidinhos de calção e panamá, a correr de um lado para outro de livrinho guia e telemóvel em punho, e sem vontade ou habilidade para falar português.
Mas não, creio que o Medina não aceitaria este tempero.



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