Lembro-me
das conversas com o Inácio Catarino, que nasceu há mais de noventa anos nos
Montes aonde fez a vida, seja na agricultura ainda com sete ou oito anos (nas
férias escolares, na vindima ou apanha da fruta), mais tarde na Cova da Onça/
Casa Raposo de Magalhães como encarregado, ou durante cerca de dezoito anos na
construção civil.
Era do
tempo em que o amola-tesouras ia de
terra em terra afiar as facas e tesouras, usando uma bicicleta que tinha uma
roda que amolava/afiava o que fosse preciso. Fazia-se acompanhar de uma gaita
que fazia um som característico que chamava as pessoas. Até se dizia que a
presença do amola tesouras trazia chuva. Porquê? Não sei esclarecer.
Era do tempo em que os meninos ou meninas sabiam de onde vinham os pintos, como cortar canas, construir um moinho de água, apanhar rãs, distinguir os pássaros, os insetos ou répteis, bem como as árvores de fruto (uma pereira é diferente de uma macieira?). E também do frio ou calor que sentiam nos pés descalços, o que era, todavia, esquecido pelas intensas e emocionantes brincadeiras.
O jogo
do pião, com o imprescindível bico de prego, era muito popular entre os rapazes.
E o jogo do eixo? Neste jogo, o
número de participantes era variável, sendo que quanto maior fosse o número de
jogadores, mais interessante se tornava. Embora existam diversas versões do
jogo, a mais comum, consistia em fazer amochar um ou mais jogadores, curvados,
apoiando as mãos ou os cotovelos nos joelhos. Este jogo consistia em saltar
sucessivamente sobre todos os colegas (dizendo previamente “aqui vai eixo”), de forma a que todos
saltavam e “amochavam”.
Catarino
ao mesmo tempo que a jogar o pião ou saltar ao eixo, aprendeu com os mais
velhos que, quem nos Montes “ensinou”
a podar, foi um jumento. Um jumento T´i Catarino? Sim um jumento que roeu uma
cepa, que depois veio a rebentar com mais força e deu melhores cachos. Era
também do tempo em que o exame da terceira classe, marcava a escolaridade da
maioria da população escolar, dos meios rurais. Recordava o professor Adelino,
que dava aulas na recém-inaugurada escola masculina e que tinha um método
infalível para ensinar a ler, escrever e contar. A sentença, de que não havia
recurso, consistia em que cada erro implicava umas reguadas na mão com o uso da
“menina dos cinco olhos”.
O professor Adelino bebia bastante, ainda que de manhã, o que se traduzia na forma como lidava com os alunos, a quem além de bofetadas utilizava a travessa de uma cadeira ou uma vergasta nas orelhas ou no traseiro. O professor ausentava-se com frequência da sala, ao que constava para matar a sua enorme e permanente sede, encarregando um aluno, filho de algum agricultor mais abonado e a quem devia favores, de vigiar os demais e apontar no quadro, as pretensas infrações de disciplina, que depois eram objeto de pronta sanção, quando chegava, a cambalear. Inácio Catarino dizia que não teve o diploma da quarta classe, pelo medo que o professor Adelino lhe inspirava e que nem a ameaça de chamar a Guarda ou lhe bater, caso não prosseguisse os estudos, o demoveu, no que foi apoiado pelos pais.
A temível palmatória ainda ensombra os pesadelos de alguns velhotes. Indiferente, atravessou grande parte do século XX ao serviço daquele tipo de professor que, desdenhava das novas correntes pedagógicas, da legislação reguladora, e a legitimava como um instrumento de manutenção da ordem e da propagação do conhecimento. “Palmatória ou menina dos cinco olhos”, seja qual for a designação, era um ícone da sala de aula e do método de ensino. Isto fez-me lembrar o velho professor primário, que quando se reformou a deixou no armário ao sucessor, e que me mostrava, não por ser usada, mas como recordação de uma época em que a autoridade (na escola, na política) estava sempre primeiro.
Catarino recordava-se do colega Joaquim
Fortes que tinha botas de carneira com sola de pneu, muito boas para jogar à
bola, mas que para caminhadas pareciam de chumbo, bem como do colega que teve
umas botas para estrear no primeiro dia de aulas. Nesse dia choveu
torrencialmente e as botas pareciam vir mesmo a calhar. Ao fim do dia, o rapaz
chegou a casa desolado e com os pés molhados, pois as solas das botas estavam
desfeitas. Eram afinal de cartão colado sobre uma sola inicial já gasta. Bem
pintadas, com anilina preta e graxa, as botas tinham um aspeto muito bom. O
rapaz fartou-se de chorar com o desgosto. Mas como tudo tem solução, foi ela
encontrada na circunstância de o avô ser um habilidoso sapateiro. Arranjou um
bocado de sola de borracha e, como tinha as ferramentas adequadas, formas,
sovelas etc., foi ele quem colocou as novas solas nas botas que o rapaz usou enquanto
lhe serviram.
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