quinta-feira, 6 de maio de 2010

Alcobaça, o Movimento Revolucionário de Santarém (1919), a Torre e Espada e o Brasão da Terra (Cap. V)

No ideário e na lembrança dos republicanos, o quixotismo e a bravura da população e da tropa de Alcobaça nos acontecimentos de Janeiro de 1919, relevaram mais que tudo e haveriam de ser recompensados politicamente quando as circunstâncias se alterassem e as forças tivessem outra correlação entre si, o que não demorou muito.

Graças à meritória actuação da tropa e dos habitantes da Vila no Movimento de Santarém, na Monarquia do Norte e na defesa da República, decidiu o Governo da República, sendo Primeiro-Ministro o Dr. Domingos Pereira, que entretanto seria substituído, sob proposta do Ministro da Guerra, em 10 de Maio de 1919, pelo Decreto nº 5.644, atribuir à Vila de Alcobaça a Torre e Espada, a mais alta condecoração portuguesa.

Para entregar a condecoração deslocou-se a Alcobaça, no dia 17 de Maio de 1920, o Presidente da República Dr. António José de Almeida, acompanhado pelo Ministro da Guerra e por Cunha Leal, entre outras personalidades.

O estojo que encerra o colar oferecido à Câmara de Alcobaça, que se encontra hoje em dia guardado e exposto no gabinete do Presidente da Câmara, contém a seguinte dedicatória:

“À Vila de Alcobaça, pelo seu heroísmo na defesa das instituições republicanas - 10 de Maio de 1919 - O Governo da República Portuguesa”.

Como se disse atrás, António José de Almeida assumira as funções de Chefe de Estado em 5 de Outubro de 1919. Era tribuno ardente, pleno de encanto pessoal, ídolo das massas republicanas, possuidor de uma bela imagem, em que se destacava uma farta cabeleira branca. O seu discurso de posse, é importante para se perceber um pouco da sua personalidade:

“Agradeço ao Congresso da República a alta honra que me dispensou, elegendo-me Chefe de Estado. Sou um homem simples e modesto, sem qualidades que o distingam, nem predicados que o imponham. E se fui elevado ao alto cargo em que me encontro, a dignidade que me concederam só pode ser atribuída à benevolência de quem me elegeu e porventura ainda à circunstância de o Congresso querer mostrar que não se esquecia da minha dedicação à causa pública e da persistência convicta, inalterável e tenaz, com que, nesta Casa do Parlamento, defendi sem desfalecimentos, e nas condições mais variadas, a legítima causa dos Aliados, a que sempre considerei indissoluvelmente ligada a nossa sorte de povo livre. (...) O Congresso deliberou escolher-me para uma República Parlamentar, em que o Chefe de Estado se deve considerar alheio a todas as lutas e paixões, presidir ao destino da Nação, a q ue se condicionam todos os destinos partidários. Este facto, que não deve ser olvidado, significa que a República Portuguesa está na resolução de pôr, acima dos interesses de grupo, os interesses genéricos da Pátria, e que só passageira e superficialmente se deixará impressionar pela modalidade técnica da política dos homens, para apenas ter em conta a superior expressão do seu patriotismo, contando que eles sejam merecedores, pela sua lealdade, da confiança com que os homens as honram. Mais ainda que o galardão que me conferiu, eu agradeço ao Congresso a segurança que atribui ao meu carácter e à certeza antecipada que se criou e que eu, no alto cargo a que ascendo, serei imparcial e sereno, sem outra paixão que não seja o engrandecimento da pátria e sem outro sentimento que não seja o amor à República”.

Por sua vez Cunha Leal, nestes anos bem conturbados, parecia ser também pessoa especialmente vocacionada para os negócios de Estado, ao mais alto nível. Todavia, como muito justamente foi qualificado, era um “opositior nato e apaixonado”, o que lhe retirava credebilidade e aceitação para desempenhar com permanência funções mais destacadas.

A deslocação do Presidente da República a Alcobaça ficara assente após os vereadores João Ferreira da Silva e José Magalhães o terem ido convidar a Lisboa. A título de curiosidade, diga-se, não foi esta a primeira visita de um Presidente da República a Alcobaça. Teófilo de Braga, veio a Alcobaça em 26 de Setembro de 1915 inaugurar a Exposição de Frutas, Flores e Plantas Ornamentais, que se realizou no Claustro de D. Dinis. Esteve presente a Banda da Armada e à noite, no claustro, realizou-se uma festa de arte, durante a qual Manuel Vieira Natividade proferiu uma conferência sob o título “Poesia dos Frutos”.

A recepção a António José de Almeida foi notável. Artur Faria Borda ainda se recorda dela.

A comitiva veio de Lisboa, em comboio, até à Estação do Valado de Frades. Eram cerca de 14 horas do dia 17 de Maio de 1920 quando, à entrada da Vila, do lado de Valasdo de Frades, estoiraram três morteiros, anunciando a presença do Chefe de Estado. Em todas as ruas de percurso havia mastros com bandeiras e as janelas das casas encontravam-se enfeitadas com ricas e formosas colchas. Na ampla Praça do Município, frente ao Mosteiro, ornamentada com bandeiras das nações aliadas, galhardetes e festões, havia muita gente que aguardava a chegada do Chefe de Estado. Outros espalhavam-se pelas escadarias de acesso à Cãmara. As janelas, ornamentadas com magníficas colgaduras, estavam repletas de senhoras. No terreiro, estavam presentes diversas entidades e corporações locais, oficiais e não oficiais. escolas, os Bombeiros Muinicipais e da Fábrica Fiação e Tecidos de Alcobaça, a Banda do 3º Batalhão da G.N.R. e a Banda de Alcobaça. Povo, muito povo, em suma, uma grande multidão de entusiastas.

O automóvel presidencial e os demais que o acompanhavam, estacionaram frente à Câmara. O Presidente da República desceu, tendo-lhe sido feita de imediato a devida continência, pela força do Regimento de Cavalaria 4 e da G.N.R., cuja banda tocou “ A Portuguesa”. Após os cumprimentos da praxe, os visitantes dirigiram-se pela vasta escadaria da Câmara Municipal que dá acesso à Sala das Sessões. A assistência não poderia ser maior. Tomados os lugares, o Presidente da Câmara João Palha Pinto, dirigiu-se ao Chefe de Estado “ em nome desta terra cuja fé republicana e a sua palavra persuasiva e arrebatadora ajudara a cimentar”.

Uma vibrante salva de palmas apoiou a intervenção, tendo em seguida o Dr. António José de Almeida, vivamente comovido, colocado no estandarte o distintivo da Torre e Espada, o que deu lugar a mais uma estrondosa ovação e ao repicar de sinos. Falou depois, Fernando Alípio Carneiro e Sá, Presidente da Comissão Executiva da Câmara, e que também era o Director da Companhia Fiação e Tecidos de Alcobaça, que explicou como se ficou a dever a concessão do grau de Cavaleiro da Torre e Espada a Alcobaça, salientando que neste caso só é atribuído aos alcobacenses que apoiaram e entraram no Movimento de Santarérm. A propósito traçou o quadro do modo de ser a população alcobacense, “onde não existe a febre do luxo ou do jogo mas sim a compreensão bem nítida de que é o íntimo entendimento entre o capital e o trabalho”, e a melhor e a maior contribuição de cada um, para a máxima produção em todos os campos da actividade humana. Foi numa terra assim que se educaram os republicanos a que se deve a cooperação no Movimento de Santarém, os quais justificaram com o seu procedimento, a distinção que a esta terra foi concedida pelo Governo da República.

João Lopes Pelaio, procedeu à leitura de uma mensagem que os revolucionários de Janeiro de 1919 resolveram entregar ao Chefe de Estado, e em que se faz a história da ideia republicana em Alcobaça, desde as suas épocas mais remotas, até aos últimos acontecimentos e do quinhão que coube aos alcobacenses em prol da defesa dos seus ideais.

Os discursos terminaram com o do Chefe de Estado, que agradeceu a extraordinária recepção que lhe foi feita e que “não julgava possível” e, referindo-se concretamente a Alcobaça, enalteceu o amor desta terra pela República, fazendo salientar “a justiça da condecoração atribuída e que veio pessoalmente entregar”.

Depois da recepção na Câmara teve lugar o almoço no Jardim-Escola, sendo o trajecto feito para lá entre duas alas compactas de povo e no meio de constantes aclamações.

Não conseguimos apurar a ementa do almoço. A imprensa da época não assistiu a ele. Sabemos, porém, que foi “abundante e distintamente confeccionado”, relevando os vinhos, os doces e as frutas e que foi servido em três mesas, na sala principal do edifício do Jardim-Escola. Aos brindes usaram da palavra, entre outros, o Governador Civil de Leiria, o Presidente da Câmara, os Ministros da Guerra e da Agricultura, o Juiz da Comarca e, finalmente, o Chefe de Estado. Todos se levantaram e assim se conservaram enquanto este falou. Com algum romantismo e vibração, confessou-se altamente sensibilizado pela forma como foi recebido em Alcobaça e saudou na pessoa do Dr. José Emílio Raposo de Magalhães todos aqueles que aqui, pela causa da República, teceram esforços, pedindo a José Magalhães, que estava presente, que transmitisse a seu pai as homenagens que com tanta satisfação e respeito lhe dirigia como Chefe de Estado. Depois de se tirar um retrato de grupo, realizou-se uma visita ao templo do Mosteiro, Quartel do Regimento de Cavalaria 4 e Posto Agrário.

Na Sala dos Reis, aguardando a visita do Dr. António José de Almeida, encontrava-se muita gente. Artur Faria Borda, então com doze anos, segundo nos contou, explicava a alguns presentes a Lenda da Fundação do Mosteiro, seguindo os painéis existentes. Foi então que o Presidente da República se destacou da comitiva e, dirigindo-se a ele, o cumprimentou afavelmente dizendo “adeus amigo”.

Aproximava-se a hora do regresso do combóio a Lisboa. Os automóveis puseram-se em marcha, com o Esquadrão de Cavalaria 4 a tomar o seu lugar, enquanto a multidão, que não arredou pé, mais uma vez vitoriava o Presidente da República.

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