quinta-feira, 6 de maio de 2010

O MUSEU DO VINHO DE ALCOBAÇA, O PRANTO DE MARIA PARDA ( Gil Vicente ), AFONSO LOPES VIEIRA E O SEU FECHO ESCANDALOSO EM 2007

Em Alcobaça existiu, até 2007, um Museu do Vinho que encerrou portas. Ninguém na (social democrata) Câmara Municipal ou no (socialista) Governo da República, estava ao que parece efectivamente interessado em mante-lo aberto. Foram unânimes, em dizer que não havia condições… Mas o Museu era interessante, e não dizia respeito apenas a Alcobaça.Será que um dia poderá reabrir?

Há muita gente em Portugal que, embora viajada, desconhece(u) este singular museu Museu Nacional do Vinho. Faltava na maior parte dos roteiros turísticos nacionais, embora venha referenciado nos reputados guias franceses Michelin. Também é verdade que muitos alcobacenses não o conheceram. Todavia, mesmo correndo o risco de ser considerado algo exagerado, asseguramos que o Museu do Vinho justificava plenamente o tempo de uma deslocação. Está(va) instalado nos armazéns que pertencem ao Instituto da Vinha e do Vinho, paredes meias com a Adega Cooperativa de Alcobaça à entrada da cidade e na chamada Estrada de Leiria. Este edifício foi adquirido em 1948 pela denominada Junta Nacional do Vinho, aos herdeiros de um conhecido e importante vitivinicultor de Alcobaça, o Dr. José Eduardo Raposo de Magalhães, para montar a Adega Cooperativa. Terá colaborado de forma decisiva, para esta aquisição, o Eng. Joaquim Vieira Natividade, reputado cientista-agrónomo, ao que se dizia bastante amigo do então vice-presidente da J.N.V.. O crescimento da capacidade de armazenamento, a homogeneização e o aumento da qualidade do vinho passavam pela associação dos produtores em adegas cooperativas. Entre os finais dos anos 40 e meados da década seguinte elaboraram-se e aprovaram-se os planos de redes de adegas cooperativas, entre as quais a de Alcobaça, cuja necessidade se fazia de há muito sentir. Assim, com algum apoio financeiro do Estado, as adegas cooperativas foram surgindo, pois ainda havia vinho. Todavia, há em Alcobaça, quem defenda que a adesão à Adega Cooperativa (de Alcobaça) foi maior nos escalões médios, não se tendo verificado, como se esperava, tão grande aderência de pequenos produtores. Para isso contribuíram razões como o auto consumo de vinho e ainda as permanentes dificuldades económico-financeiras dos nossos agricultores, que não tinha capacidade para esperar um ano ou mais pelo pagamento. Acontecia, portanto, que mesmo mais barato, os agricultores da nossa zona vendiam logo que podiam a comerciantes que garantissem um pagamento mais rápido. E a Adega não cresceu, quando podia e se impunha.

Na antiga casa agrícola do Dr. J. Eduardo Raposo de Magalhães, o assento da lavoura, construído em 1875, era composto pelas Adegas do Vinho Tinto e do Vinho Branco, Adega dos Balseiros e dos Tonéis, Casa das Caldeiras de Destilação de Vinho, Bagaços e Borras, Tanoaria, Casa da Caldeiras de água para lavagem das vasilhas e para derreter a parafina utilizada nos cascos destinados ao transporte de aguardente, garrafeira, carpintaria, abegoaria e Casa da Malta. O Dr. José Eduardo Magalhães, recorde-se, foi o primeiro viticultor português a importar de França um pasteurizador, que entretanto se perdeu e, lastimavelmente, nunca chegou a fazer parte do acervo do Museu. O Museu do Vinho de Alcobaça começou timidamente a tomar forma com a desactivação do equipamento que pertenceu à Junta Nacional do Vinho, em fins dos anos 60. O Eng. Técnico Agrário Manuel Augusto Paixão Marques, a trabalhar no armazém de Alcobaça da Junta, com a justa e sabedora percepção de que não se podia perder tão importante espólio cultural e etnográfico, começou aos poucos a guardar e a catalogar as peças mais importantes e com interesse museológico, com destaque para as que estavam arrecadadas ao deus-dará num armazém da Junta, em Braço de Prata. A elas juntou as que haviam sido herdadas da Casa Agrícola Raposo de Magalhães e muitas outras oferecidas por amigos. Como surgiu a ideia do Museu? Segundo contou Paixão Marques, que veio em 3 de Janeiro de 1990 a ser justamente agraciado com a Medalha de Honra do Concelho de Alcobaça, terá ela nascido quando em 1966 recebeu um ofício da J.N.V. para recolher material fora de uso, a fim de ser vendido como sucata. Durante os anos que se seguiram, o Museu do Vinho, o único deste ramo em Portugal que pertence ao Estado, mas que nunca lhe deu atenção, foi crescendo identificado com a pessoa do seu criador, o qual até se reformar, se dedicou a ele como um pai a um filho. Propriedade do Instituto da Vinha e do Vinho, é esta entidade quem assegurou, nem sempre muito diligentemente como se constatava, o seu funcionamento e pagamento ao pessoal. Entre todos os que lá trabalharam é de inteira justiça destacarFernando Manuel da Silva Gonçalves, durante muito tempo na prática o responsável pelo Museu, já que de Lisboa poucas ou nenhumas instruções eram fornecidas.

Alcobaça, situa-se numa região tradicionalmente agrícola, em que os seus vinhos chegaram a ser algo renomados. Quando a agricultura era diferente, o vinho produzia-se em quase todo o concelho, em explorações descontínuas, onde a par da quinta principal existiam outras unidades dispersas que lhe davam apoio. Já Gil Vicente, o fundador do teatro português, celebrou os vinhos de Alcobaça na farsa Pranto de Maria Parda. Nessa obra, descreve-se a angústia de uma inveterada bebedora, que sem dinheiro, não consegue que lhe fiem uma canada de vinho. Depois de lembrar os locais onde atenuou a sua sede insaciável, resolveu dirigir-se aos taberneiros seus conhecidos pedindo-lhes, Que me dêem uma canada//Sobre o meu rosto fiada//A pagar lá pelas eiras.

Todos lhe negaram o pedido, pelo que desiludida da vida, Maria Parda dispõe-se a morrer de sequia em cima de um almandraque. E antes do meu finamento//Ordeno meu testamento//Desta maneira seguinte (…)

No seu testamento, a velha borrachona passa em revista as terras de Portugal onde se produzem os melhores vinhos, legando para elas e injuriando as que os produzem maus. Diz Maria Parda numa passagem do seu etílico testamento e mantendo-se o saboroso texto arcaico que Item mais mando fazer//Num espaçoso esprital,//Que quem vier de Madrigal//Tenha onde se acolher.//E do termo de Alcobaça//Quem vier demlhe em que jaça.

Mais tarde, os vinhos de Alcobaça continuaram a ser distinguidos, conforme decorre, por exemplo, do Decreto de 10 de Maio de 1907, no seu artº 5º:

-Para todos os efeitos legaes são considerados vinhos de pasto do typo regional os que a tradição firmou com as designações usuaes de Collares, Bucelas, Dão, Bairrada, Borba, Torres, Cartaxo, Alcobaça , Douro (virgens), Minho (verdes), Amarante, Bastos, Fuzeta e Monção.

1º Parágrafo: Só podem considerar-se, e como taes ser expostos à venda, vendidos, armazenados, expedidos ou exportados com as designações indicadas os vinhos de pasto provenientes das respectivas regiões.

Nos tempos que correm, os vinhos de Alcobaça perderam bastante importância no contexto económico da zona, bem como qualidade. Será que Maria Parda, se fizesse um novo testamento, não injuriava desta vez o vinho de Alcobaça?

Oedifício principal do actual Museu do Vinho compreendia antigamente três adegas. A Adega dos Brancos, a Adega dos Tintos e a Adega dos Tonéis.

Na Adega dos Brancos, fazia-se o vinho branco, de acordo com o processo tradicional da bica aberta, sem curtimenta. A uva entrava na prensa e só o mosto da uva era fermentado. Na Adega dos Tintos, fabricava-se o vinho tinto, com curtimenta. Neste caso, a uva era fermentada com pele para que o líquido absorvesse a cor que este dava. Na Adega dos Tonéis fazia-se, conforme a qualidade e o tempo, o estágio do vinho.

Ali existem, para se ver, os balseiros que durante muitos anos foram utilizados como ânforas para fermentação de vinho tinto, os enormes depósitos de dezenas de milhares de litros em cimento armado, os lagares para receber as uvas e a esprema dos bagaços ou ainda os tonéis em madeira de carvalho. Na abegoaria estão expostos carros antigos, tais como carros de bois, carroças, galeras de tracção animal utilizados no transporte de uvas, vinho e pessoal e diversas alfaias para granjeio da vinha. Há uma interessante colecção de milhares de garrafas com vinho, rótulos de todas as regiões do País, cartazes (recordam-se do slogan salazarista Beber vinho é dar pão a 1 milhão de Portugueses?), quadros e reproduções sob a temática do vinho, azulejos com ditos populares, miniaturas de carros de bois, objectos tradicionais de cerâmica caseira, como canjirões, canecas e terrinas, jogos de medidas em metal, canadas, mandadas construir em 1819, reinava em Portugal D. João VI. A propósito, lembro-me de ouvir referir em casa do Dr. Magalhães que uma canada de Alcobaça correspondia a 1 litro e 4 decilitros e não tinha correspondência noutras regiões do País. A medida do vinho em litros, relativamente recente, veio permitir que ele pudesse ser negociado honradamente.

Destaca-se aqui, pela imponência, um conjunto de grandes talhas de barro alentejanas, de boca muito grande, sendo a mais antiga datada de 1620. Foram propriedade da Junta Nacional do Vinho, estiveram segundo consta num dos seus armazéns do Alentejo e destinavam-se a conter vinho, o qual depois de fermentado era nelas simplesmente guardado ou para envelhecer, com azeite à superfície para assim evitar a acidez. Quando se pretendia mostrar ou provar o vinho novo, chamavam-se os convidados para soprar o azeite. Assim podia-se retirar o vinho com uma vasilha que entrava pela boca da talha. Uma das coisas que atraá a atenção do visitante é uma colorida placa de sarro, proveniente de um tonel de madeira, que pertenceu a um alentejano de Portalegre, que conteve 25 colheitas antes de ser dessarrado. Note-se que o sarro, ou seja a precipitação dos tártaros da cálcio existentes no vinho e que cobrem as paredes dos depósitos, é retirado normalmente de quatro em quatro anos, o que torna aquela peça um exemplar talvez único no País. Há no Museu com muito interesse a Sala do Sarro, num antigo depósito de vinho, cujas paredes têm um brilho muito especial, como se fossem cristais a cintilarem. Só quem não for conhecedor do processo de fabricação é que se queixará dos bitartaratos de potássio, pois é a prova provada que o vinho não é a martelo.

É impossível esquecer a reconstituição de uma antiga taberna à portuguesa, devidamente decorada e equipada, bem como a Casa da Malta.A taberna, segundo a concebeu Paixão Marques, pretendia ser uma minuciosa representação desse local de convívio, tão antigo, vulgar e importante nos ambientes rurais do País, no tempo em que não havia clubes e os homens se reuniam após a jorna para conversar e beber, quantas vezes demais, e antes de ir para casa, um copo de vinho tirado do pipo. No Museu do Vinho de Alcobaça, a taberna tinha a curiosidade de ter feito a reconstituição de dois reservados, onde os homens jogavam a sueca, a bisca ou a batota e, quando calhava, realizavam algumas conversas mais discretas, negócios, política ou saias… Paixão Marques, conseguiu recuperar para a taberna do Museu um jogo do burro e um jogo da malha, hoje em dia autênticas raridades. O jogo do burro, consiste num tabuleiro de madeira montado numa mesa sem pés, no qual existem diversas pontuações demarcadas por quadrados, numa das quais está desenhado um burro. No caso da malha cair sobre o burro, o jogador perde a pontuação acumulada. O jogo da malha, aqui uma variante de chinquilho mas de sala, tradicional nas zonas do Ribatejo e Oeste, foi trazido ao que consta de Santarém por Paixão Marques, e faz-se sobre um tabuleiro em madeira, em que o objectivo é deitar abaixo um palito, utilizando uma pequena malha de ferro. Na taberna, em local de destaque e como não podia deixar de ser, há um Zé Povinho em louça, imortal criação de Rafael Bordalo Pinheiro, fazendo o tradicional manguito, Queres fiado? Ora toma.

A Casa da Malta foi criteriosamente reconstruída para o Museu do Vinho de Alcobaça, à moda do princípio do século, no local de uma antiga adega da Casa Agrícola Raposo de Magalhães. Era na Casa da Malta que também existiu naquela Casa Agrícola, que o pessoal que vinha trabalhar nas vindimas dormia, fazia as refeições e ocupava os tempos livres. As camas eram tarimbas, em palha e sem colchão.

Hoje em dia é fácil, mas justo?, tendo em conta o contexto, rotular de demagógico, senão mesmo hipócrita, o discurso salazarista sobre o mundo rural e a vida camponesa em Portugal, expresso pelo Secretariado da Propaganda Nacional. António Ferro, muito especialmente, tenta retratar a família camponesa, o trabalho do campo, a casa portuguesa, concerteza, onde há sempre uma côdea ou um caldono suporte ou no símbolo da harmonia social, das virtudes de um Povo e na estabilidade do regime. A realidade, felizmente já um pouco esquecida era, porém, bem outra, mas a democracia não assume neste campo uma boa consciência.

Logo à entrada do Museu do Vinho, e para dissipar dúvidas quanto às virtudes do vinho, estavam afixados os célebres 10 Mandamentos do Abade de Travanca, ou os Mandamentos da Báquica Beleza que Resumem o Beber à Portuguesa, e que apesar de muito conhecidos passo a recordar:

O primeiro bebe-se por inteiro

O segundo até ao fundo

O terceiro como o primeiro

O quarto como o segundo

O quinto fica em meio

O sexto é para provar

O sétimo para começar

O oitavo para tombar

O nono para continuar

O décimo para acabar .

Em países de forte tradição vitivinícola, o vinho ocupou sempre um lugar de destaque na voz do povo, na literatura e noutras manifestações artísticas. Hoje em dia esse gosto parece estar de volta. O vinho estava presente no trabalho e nas horas de comer, nas romarias, baptizados e casamentos, chegando a minorar o sofrimento e a dor em momentos como os velórios. Selava, e sela ainda certas solenidades e juramentos. Nos pedidos de casamento, em meios rurais ainda não vão muitos anos, a noiva oferecia uma taça de vinho ao futuro esposo. Alguns dos nossos escritores, foram grandes conhecedores do vinho, em certos casos também seus consumidores, porventura imoderados. A videira, como planta característica do espaço mediterrâneo, aparece na obra de muitos dos nossos mais importantes autores, tal como a vindima ou o fabrico do vinho. Eça de Queirós por variadíssimas vezes, Fialho de Almeida no livro de contosO País das Uvas, Ramalho Ortigão em As Farpas, Aquilino Ribeiro em Geografia Sentimental e Aldeia e Miguel Torga na Boémia ou a narrar uma lagarada no Douro, entre muitíssimos outros que não é possível aqui referir, dedicaram-se a tratar este tema com carinho. Afonso Lopes Vieira, que foi um dedicado amigo de Alcobaça, cuja história bem conhecia e a quem dedicou belas páginas em prosa, em as Árvores oferece à videira estes versos:

Setembro, com seu carinho,

Abre o regaço cheio de produtos:

Dá-nos a força rubra e ardente do vinho

E a graça luminosa,

Essa luz saborosa,

Que perfuma e que aloira a polpa clara dos frutos.

Na postura das coisas se descobre

Este esforço gigante e humilde: a criação...

Uma cepa de vinha é uma mãezinha pobre

Consumida e torcida de aflição,

Que sofreu e penou, chorou, obscura,

Passou dias de luto e de amargura

E se fartou de chorar,

Para poder criar,

Contra a sanha da geada e do escalracho,

O seu filho jovial e perfumado-o cacho!.. .

A origem divina da vinha e do vinho, e o prestígio que desde sempre ambos gozaram junto dos nossos maiores, levou a que fossem considerados objectos privilegiados de intervenção artística, que inspiraram pintores, escultores e mesmo músicos. A pintura e escultura frequentemente tomaram estes motivos como fonte de trabalho na tela, na madeira, no barro, no mármore ou no vidro. As iluminuras de alguns dos mais belos códices medievais, onde se incluem os de Alcobaça, acolheram algumas vezes este tema. Afinal o que é que pretendiam os artistas ou os seus mecenas? Fixar, se possível para a eternidade, os factos mais marcantes da vida dos homens e do momento, aqueles que a intuição do artista apontava como disso merecedores. Mas o vinho era objecto de aproveitamentos bem mais prosaicos. Em Portugal, a chamada canção nacional, que inicialmente se cantava vadiamente nas tabernas, exalta frequentemente o vinho como manifestação de virilidade. Lembram-se, por exemplo, destas rimas?:

Eh pá

Não fiques calado

Eh pá canta lá o fado!

O fado é assim, meus senhores:

O vinho da pipa a correr!

Assim, malcriado e avinhado,

É que o fado

É fado a valer!

Origem divina? É com o advento do cristianismo que o vinho assume definitivamente a sua relevância, passando a integrar-se na liturgia da Eucaristia e na apresentação das oferendas. Na Última Ceia, Cristo oferece aos discípulos o vinho como o Seu sangue e proclama-se doravante que pelo mistério desta água e deste vinho sejamos participantes da divindade de Cristo, que assumiu a nossa humanidade. Bendito sejais Senhor, Deus do universo pelo vinho que recebemos da Vossa bondade, fruto da videira e do trabalho do homem, que hoje Vos apresentamos e que para nós se vai tornar vinha da Salvação. De igual modo (Cristo) tomou o cálice (com vinho) e, dando graças, o deu a Seus discípulos dizendo: Tomai e bebei todos. Este é o cálice do meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança, derramado por vós e por todos os homens para a remissão dos pecados. Fazei isto em memória de mim.

Escolhendo o vinho para a Liturgia da Eucaristia, o cristianismo elevou-o ao nível do sagrado, distinguindo-o entre todas as bebidas. O vinho espremido de muitos bagos de uva, é o Povo, tornado um em Cristo.

O Museu era, antes do mais, um honesto hino ao vinho e ao mesmo tempo um alerta para o seu mau uso, como se lembra desde logo num azulejo de parede que mais homens se afogam num copo que no mar. E se é verdade que um bom vinho faz bom sangue, também não se esquece de sublinhar que o vinho mesmo bom arruína a bolsa, mulher que muito bebe tarde paga o que deve, quem vive na taberna morre no hospital e quem bebe antes do almoço chora depois do sol posto. Nesta linha de pensamentos, simples e populares, manifestada através de rifões, provérbios ou adágios,exemplos na expressão vicentina, o Manuel Lourenço, que há muitos anos mostrava dedicamente o Museu aos turistas e que gostava sempre que possível de tirar uma fotografia com eles, apesar de mal saber assinar o nome o que não lhe retira sabedoria, bem sabe que o vinho é coisa santa que nasce da cepa certa, a uns faz perder o tino a outros errar a porta.

Desde os tempos mais remotos o vinho tem constituído uma das mais apreciadas bebidas da humanidade. Talvez não haja nenhum outro produto da terra que o ultrapasse em universalismo, pois é comum às civilizações que têm por base da sua alimentação o milho, o trigo e o arroz. A cultura da vinha está indissociavelmente ligada à existência de povos como o nosso, tal o peso da sua influência no secular desenvolvimento económico, demográfico e cultural do País. Presente na vida quotidiana dos portugueses, sobre o vinho se teceram lendas, se criaram mitos, se construíram belíssimas e perenes obras de arte. É bela a tradição medieval do Santo Graal, aonde os feitos da cavalaria, os enredos do amor, o vinho e o sangue estão associados a uma intenção religiosa. O Santo Graal, era numa versão entre outras, a taça pela qual Cristo bebeu o vinho na Última Ceia e onde depois José de Arimateia recolheu o seu Divino Sangue, por este transportado através de variadas vicissitudes de Jerusalém para Inglaterra, onde ficou guardado pelo Rei Pescador. Durante a Idade Média, constituiu preocupação mística de numerosos cavaleiros que o procuraram e a quem seria dado o prémio da vida espiritual, antes de se despojarem da sua carcassa terrena.

Nos antigos coutos de Alcobaça, os Monges Agrónomos na conhecida expressão de Joaquim Vieira Natividade, desempenharam um relevante papel no desenvolvimento da cultura da vinha, tal como na da oliveira, o que de certo modo se compreende na prática dos cistercienses franceses, de onde provieram. Existe uma carta datada de 1294, do Rei D. Dinis ao Abade de Alcobaça, autorizando-o a tirar da minha terra para hu quiserem sem embargo nenhum seu vinho e seu sal, o que nos permite inferir que nesta altura devia ser importante a produção de vinho nas granjas e nos aforamentos do Mosteiro. Recolhe-se também da Carta de Povoação de Maiorga o seguinte pormenor: (...)E vos devedes chantar vinhas e olivaes e pommares (...). As receitas dos aforamentos deviam ser entregues anualmente no Mosteiro de Alcobaça por alturas da festa de S. Miguel, ou seja, em 29 de Setembro. Estes foreiros podiam utilizar os lagares do Mosteiro mediante o pagamento de quantias variáveis que atingiam a elevada soma de 15 soldos. Para vigiar o cumprimento das regras dos aforamentos o Abade do Mosteiro delegava os seus poderes nos cerealeiros. Embora os textos que nos chegaram não sejam abundantes sobre este tema, sabe-se pelo menos e sem dúvida que a vinha estava entre as mais importantes culturas dos coutos, sendo a exportação do vinho, que era monopólio do Mosteiro, efectuada pelos portos de S. Martinho do Porto, Pederneira e Paredes da Vitória. As vinhas encontravam-se frequentemente em mau estado ou envelhecidas. Nesse caso, o Mosteiro dispensava durante alguns anos o pagamento do foro.

Muitos anos mais tarde, Frei Fortunato de S. Boaventura, na sua História Cronológica e Crítica da Real Abadia de Alcobaça contou que o almoxarife de Torres Vedras pediu a D. Afonso IV que desse consentimento ao Abade de Alcobaça para talhar nas matas reais os arcos necessários para fabricar cubas para a recolha do vinho.

E a Harley-Davidson, de 1939, importada da América, com a matrícula LI-30-31, de cor verde, assombro de motards e não só? Note-se que como as demais motos da J.N.V. esteve inscrita na Legião Portuguesa, e tem uma história curiosa que no Museu se gosta(va) de salientar. Trata-se de uma moto simples, sem side-car, utilizada com mais algumas dezenas, pelos Serviços da Junta Nacional do Vinho, em operações de fiscalização. Fez parte da Brigada Motorizada, tendo percorrido pelo País e durante alguns anos muitos milhares de quilómetros em serviço de fiscalização da venda de vinho a retalho, além das verificações das existências permanentes obrigatórias no comércio, declarações de manifestos de produção, etc. Os fiscais da J.N.V. gostavam de se auto-reclamar, às vezes com despropósito, zeladores da lei e não caçadores de multas, pois antes que tudo o mais diziam ensinar e aconselhar os taberneiros. A batalha da qualidade foianunciada, no início do Estado Novo, como o grande desafio a vitivinicultura nacional. A qualidade estava porém dependente dos meios de fiscalização técnica e não só, que os organismos corporativos conseguissem manter. Esta moto está equipada com um sofisticado aparelho de rádio, receptor e transmissor. No dia 15 de Fevereiro de 1941 foi o País assolado por um violentíssimo temporal, ainda na memória de muita gente, que derrubou inúmeras árvores, fez ruir casas, tornou ruas intransitáveis. Os socorros estavam por isso bastante dificultados. Foi esta mota, abnegadamente conduzida pelo motociclista Manuel Martins da Silva, que percorreu sem descanso e enquanto necessário a zona centro do País, estabelecendo contactos e tentando minorar as dificuldades da população.

Em Alcobaça ainda se produz vinho? Sim, mas como se sabe em bastante menor quantidade que antigamente. Outrora era a cultura que absorvia mais mão-de-obra e por períodos mais longos. A larga maioria dos produtores eram pequenos e médios, não chegavam às dez pipas anuais. Apesar das melhorias introduzidas nos anos cinquenta por alguma assistência técnica, a produção do vinho em Alcobaça continuou a assentar nos métodos tradicionais e na grande repartição da vinha. A zona hoje em dia delimitada como IPR-Indicações de Proveniência Regulamentada para a produção de vinhos a integrar na categoria dos chamados V.Q.P.R.D. da nomenclatura comunitária, compreende grande número de freguesias do Concelho de Alcobaça, três freguesias de Caldas da Rainha (Carvalhal Benfeito, Salir de Matos e Santa Catarina) e ainda uma de Porto de Mós (Juncal). As castas tradicionais e recomendadas, adaptadas a terrenos calcáreos e barrentos, pardos e vermelhos, são para os tintos a periquita, trincadeira e baga e para os brancos o fernão pires, arinto, malvasia, tamarez e vital. No tempo em que na casa agrícola do Dr. A. Magalhães, nos Montes, ainda se fazia de vinho mais de um cento e meio de pipas, era ele leve, perfumado e aberto, com uma graduação que rondava, naturalmente, os 11,5º para o tinto. Na zona vitivinícola de Alcobaça e nos últimos anos, muita coisa mudou para pior. Os vinhos protegidos por este estatuto, com força de lei, devem provir de vinhas com pelo menos 4 anos de enxertia e a sua elaboração, salvo casos especiais, deverá decorrer na nossa zona em adegas inscritas e aprovadas para o efeito que ficarão sob controlo. Os mostos destinados a este vinho de denominação, devem possuir um título alcoométrico em potência mínimo natural de 11,5% para os tintos e 11% para os brancos. Por outro lado, o engarrafamento do vinho só poderá ocorrer após um estágio mínimo de 14 meses e aprovação, confirmado satisfazer as respectivas exigências. Será que os nossos produtores de vinho, e a própria Adega Cooperativa de Alcobaça, se revêm nestas directivas?

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