quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ensaios (Cap. VII) NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO

-ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA E A VOZ

-E VIVAM AS MULHERES

- EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA

-UMA QUESTÃO DE COMUNICAÇÃO

-O FUTURO NO FEMININO?

-E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)

-NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO



Ele supõe que a nossa aldeia é o mundo inteiro, desde que seja o presidente, se possa disfarçadamente vingar do colega de escola que há anos lhe roubou a namorada ou aumente o seu pé-de-meia.

Como vaidoso impenitente que é, embora diga que não, e com a palavra fácil que manuseia saborosamente, despreza olimpicamente os gigantes com botas de sete léguas, tal como o espaço ignora os planetas que giram eternamente sonolentos, sem jamais chocar. Se é verdade o que diz, não tem tempo para deitar a cabeça no travesseiro, tantos são os problemas da aldeia que tem de resolver pessoalmente, não avalia nem de perto nem de longe, quanto as armas do discernimento levam vantagem sobre o improviso.

Disse-lhe um dia destes, durante um trabalhoso e bem regado almoço de cozido à portuguesa, que os muros das ideias que não constrói, valeriam mais que todos os outros feitos de pedras. E como estava inspirado, estávamos a ver em directo na TV a atribuição do prémio Nobel da Paz, acrescentei que uma ideia enérgica acesa a tempo, é capaz de deter um pelotão de polícias indonésios. Respondeu-me, com o peso de um ventre bem alimentado e assessorado por umas centenas de votos que lhe asseguraram uma vitória fácil nas últimas eleições, que tudo isto é pura retórica, intelectualismo passadista, já que o que interessa na política é acreditar na terra e no bom povo que se governa com bonomia. Que depois vêm os votos certinhos.

Digam-me, caros leitores, o que que acham de tudo isto.

Como é que a nossa aldeia pode progredir se as escolas primárias fecham por falta de alunos? Como é que a nossa aldeia se pode equiparar às das redondezas, se os políticos que nos representam não conhecem a arte e a técnica de governar, se apenas se refugiam, muito empiricamente, no que dizem ser os sinais peculiares de ser português?

Os jovens, que acabam o ensino obrigatório e saiem para o mundo, afinal a nossa aldeia, utilizam lentes de aumento para perceber o que o povo quer e que não conhecem.

E, mesmo assim, viram políticos.

A professora, novata em idade e na experiência da vida, disse na aula que a política da nossa aldeia devia ser levada mais a sério e vedada por lei, aos que desconhecem os seus rudimentos e não são capazes desde logo de governar a própria casa.

E chegou até a sugerir, pelo menos assim me contou um aluno que é sobrinho do presidente, que o concurso de quadras que se costuma fazer pelos santos populares, este ano fosse substituído por um outro com o tema critérios para o desenvolvimento da aldeia.

Ia caindo o carmo e a trindade.

Ora vejam lá estas modernices, comentou o presidente.

Devem ser ideias esquerdistas, para confundir as boas almas e pôr em perigo alguns pilares da nossa cultura tradicional.

Claro que a oposição logo se apoderou da ideia da professora, que tomou como sua, e o candidato a presidente, que em tempos também perdeu a namorada em proveito do rival, começou a dizer em alto e bom som no café aos correlegionários, que para resolver um problema importante da aldeia, como é o do abandono da cultura da vinha, coisa que muito bem o preocupa segundo as más línguas, conhecendo as razões é mais fácil e proveitoso que tentar resolve-lo sem as conhecer.

Parecia óbvio o destinatário da mensagem.

Mas, a acreditar nas sondagens á opinião pública, que o presidente entretanto encomendou, ninguém lhe deu atenção.

Pelo que pode continuar a dormir sem pôr a cabeça no travesseiro.

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