quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ensaios (Cap. II) E VIVAM AS MULHERES

-ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA E A VOZ

-E VIVAM AS MULHERES

- EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA

-UMA QUESTÃO DE COMUNICAÇÃO

-O FUTURO NO FEMININO?

-E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)

-NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO



Em trabalho, faço os possíveis para não ceder a emoções.

Mas quando aquele cliente, que conhecia vagamente há alguns anos, me entrou porta dentro no escritório, com ar destroçado, e começou a contar a custo o seu problema, que aqui não vem ao caso, mesmo fazendo esforço, senti um nó na garganta.

E não mais o esqueci.

A morte de uma jovem, uma jovem esposa, é um acontecimento inaceitável. Direi mesmo absolutamente insuportável, por ser contra as regras da natureza.

A literatura portuguesa dos nossos dias, nomeadamente a poesia que, aliás, não se encontra entre o meu género preferido, ao que conheço não dá especial relevo a este género de tristezas.

É um assunto bem estafado, dirão alguns, com excepção daqueles que expõem cruamente os sentimentos, a troco de tempo de antena.

Não me considero um inexperiente que vá falar de poesia no momento em que um cliente, nem que fosse um bom amigo, tem o coração dilacerado.

Falo-lhe se necessário, cuidadosa e simplesmente de outras coisas, ainda que comezinhas, como convém e se espera de alguém que é chamado a ser mais que um jurista, porque nesse momento palavras como amor, desespero, vingança ou indemnização, causar-lhe-iam tão só horror.

-Gostava tanto da sua companhia, mais talvez que amor por ela , confessou-me muito desageitadamente.

Percebi então, na sua simplicidade complexa, que aquela frase me recordava uma situação que não consegui logo identificar, que o desespero daquele homem, pela perda da mulher, era maior do que se tivesse tido por ela uma grande paixão.

Aparentemente estranho, sem dúvida.

Mas talvez já não, se se aceitar que o homem apaixonado aceita transferir a paixão para outra pessoa, que o mais importante é a paixão e menos o seu objecto.

Os lutos da amizade são bem mais pesados que os lutos da paixão, pois não se curam facilmente , pensei para mim.

Há duas dezenas de anos, em África, em plena guerra e no mato inóspito, quando se perdia um amigo não era possível substitui-lo por outro.

Não faço generalizações, impróprias, sobre esta matéria.

Trabalho, no meu dia a dia, sobre hipóteses é certo, determinando caminhos ou soluções, muito pouco técnicas por vezes, segundo os casos expostos pelos clientes, que se revelam tão verdadeiros como um qualquer mentiroso profissional.

As minhas estatísticas, passe o pretensiosismo, têm o mérito de me permitir concluir que, mesmo utilizando dados viciados, se pode exprimir alguma verdade.

E procurar o caminho certo.

Era o caso?

Creio que não.

O tempo foi passando, até que me encontrei a gostar de conversar sobre os mais variados assuntos com aquele cliente, agora virado amigo.

Umas vezes bebíamos um uisque que tive a sorte de conservar para certos momentos e num recanto escondido a que ninguém, em casa, tinha acesso.

A conversa soltava-se e, curiosamente, quase aceitando em mim o papel de psicanalista, voltava com frequência ao tema da sua mulher perdida, de tão terna afeição.

-Atira para fora esse anel, disse-lhe com crueza, numa vibrante tirada de ocasião, quando já nos tratávamos por tu. A Luíza desapareceu, pelo que o que te resta é simplesmente apaixonares-te, como acontece com a generalidade das pessoas normais como nós, e descobrir com algum prazer como o coração faz a classificação dos sentimentos, segundo uma hierarquia ainda que arbitrária.

-Tens razão, concedeu sem constrangimento. Já me apaixonei por dez mulheres, o que nunca me acontecera com a Luíza. Mas o que sinto é a sua falta.

Acerca de mulheres, apesar dos meus cinquenta anos, tenho de reconhecer uma ignorância quase infantil, o que me impede de discorrer utilmente sobre o assunto.

Mas na convivência com o meu amigo, percebi que não há nada que se compare ao poder falar-se livremente das pessoas sobre que se teve uma terna inclinação.

Claro que não poderia dizer-lhe que volatizada a sua Luíza, ele tinha ainda assim preservado a felicidade.

Era uma fórmula demasiadamente linear para ser compreendida.

Porque o seu e o nosso estilo de vida, a sua e a nossa defesa, inclui com naturalidade a paixão de apreciar e cumprimentar as mulheres que nos rodeiam pelas suas toiletes, pela sua presença e aroma ou interessá-las pela variedade de algumas histórias ainda que chatas que se dispõem a escutar de nós.

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