quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ensaios (Cap. III) EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA

-ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA E A VOZ

-E VIVAM AS MULHERES

- EM QUE SE FALA DE OGIVAS, OVOS E DA BELEZA

-UMA QUESTÃO DE COMUNICAÇÃO

-O FUTURO NO FEMININO?

-E TOCA A BANDA(Vira o disco e toca o mesmo)

-NINGUÉM LHE DEU ATENÇÃO



Desde sempre o homem procurou a harmonia, partindo do pressuposto que é inalienável da beleza. Assim argumentavam os clássicos e com eles me identifico.

Podem-me dizer que este é um conceito esteticamente mais que retrógrado mas, queiramos ou não, na vida e portanto na natureza tudo se resume, afinal, a umas tantas linhas harmoniosamente rectas ou curvas.

Com traços redondos ou direitos, tudo se desenha ou contorna.

A partir de rectas ou curvas, é possível dar todas as definições, com exemplos de símbolos da natureza que nos rodeia. Vejamos!

Horizontal ou verticalmente o homem pode ser uma recta, ou seja, a linha mais curta entre dois pontos, o finito ou o infinito.

Perpendiculares são os caminhos, quebrados são porém os desejos ou os raciocínios.

As casas que habitamos têm quadrados ou rectângulos e as copas dos plátanos da Praça D. Afonso Henriques, em frente ao meu escritório, desenham meios círculos ou triângulos.

Duas paralelas no espaço, é exemplo tão comezinho que se encontra em qualquer grupo de pessoas em passo lado a lado, cujos caminhos tão próximos, estão sempre afastados.

Oblíquas, verticais, horizontais, cruzadas ou meros pontos, tudo isto está contido na vida, e persiste com tanta nitidez, que não é difícil distinguir, entre os homens, os que são oblíquos ou verticais.

E os simples ou grande pontos!

Tenho especial apreço por duas formas de que lhes vou falar ainda, se tiverem paciência para me seguir nestas divagações diletantes.

Revejo na ogiva uma referência ao estranho, melhor dizendo, ao Divino.

Creio que essa especial sensibilidade decorre de viver de há muito paredes meias com algumas ogivas, das mais belas, que o compasso ou o cinzel do homem medieval português foi capaz de legar.

Claro, as ogivas do Mosteiro de Alcobaça.

Partindo de semi-rectas, duas curvas inclinam-se uma para a outra, subindo sempre até se encontrarem num ponto comum.

Suponho que por almejarem uma ideia de elevação, os artífices das grandes catedrais as utilizaram com uso desmedido, quase se poderia dizer de abuso. Olhemos por um momento o portal do nosso Mosteiro, em que duas linhas nascidas em separado, partindo de um base comum, como que se erguem na vastidão do espaço.

Não, não se tocam no infinito porque são apenas obra do homem.

Creio que foi Rodin, e cito de memória, que levantou em escultura a sua catedral gótica, com duas mãos humanas postas em gesto de uma ogiva.

Não tenho dúvidas em concluir, a ogiva geométrica é uma das figuras mais conseguidas, desde logo por encontrar na espécie dos seres vivos e racionais, a réplica mais certa.

Mas também como poderia deixar de não apreciar a geometria do ovo?

Pois esta sugere a imagem mais feliz e concludente da vida.

Na sua simplicidade complexa contém o embrião e todas as células de que precisa a vida. Veio de repente à minha memória um apontamento de vida que vou contar e que sempre me sensibilizou.

Nos meus tempos de rapazinho de calções, a dar os primeiros passos na instrução primária, tinha um colega e vizinho cuja mãe punha uma galinha a chocar para dar os pintos no seu dia de anos para cuja festa, com mais outros meninos, era convidado.

Ela nunca se enganava e nós quando lá íamos, entre uns pontapés na bola, um refresco de grozelha e uma mousse de chocolate, maravilhvamo-nos a ver os pintos quebrar a casca e nascer. Era um belo programa e, apesar de repetido durante alguns anos, nunca nos fartámos dele.

Um amigo, que alia a fama de arguto à de cínico inveterado, diz que beleza é apenas um dos possíveis nomes de um ideal e que a paixão pela beleza é um simples sentimentalismo, um êxtase.

-Porquê ?, perguntei-lhe inquieto.

-É simples. A beleza não se pode contemplar por muito tempo. Depois de um objecto belo nos transmitir a magia da sensação, o meu espírito põe-se de imediato a divagar. Não compreendo como há pessoas que ficam indefinidamente a olhar uma obra de arte ou uma paisagem. A beleza, como êxtase, é tão simples como o apetite, há pouco a dizer sobre ela. Come-se e pronto. Tudo o que se pode dizer ou recomendar sobre a Gioconda, possivelmente um dos quadros mais célebres de todos os tempos, e que conterá a beleza mais pura, é ide ao Louvre e olhai. Para além disto será a sua história, biografia ou outra coisa qualquer complementar. À beleza, para lhe dar conteúdo, há que acrescentar algumas qualidades, como a ternura, o amor ou o interesse humano. Como perfeição que é, a beleza desperta a atenção apenas por um breve momento, é um beco sem saída, é um cume da montanha que uma vez alcançado não leva a parte alguma.-Beleza não é o que satisfaz o nosso sentido estético?, ainda argumentei.

-Mas quem quer ser satisfeito, quem considera que uma migalha vale um banquete?

Bom, caros leitores, veio isto tudo, muito simples e prosaicamente, a propósito da harmonia ou da geometria do mundo.

Mas para mim, continuo a pensar sem me importar de ser apelidado de conservador, que a ogiva e o ovo são dos símbolos mais perfeitos de um programa de vivência interior...

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