quinta-feira, 20 de maio de 2010

D. MAUR COCHERIL, W. BECKFORD E A COZINHA DE ALCOBAÇA (Parte IV) A COZINHA NO SÉCULO XVIII (1752)

A COZINHA NO SÉCULO XVIII (1752)

O Mosteiro de Alcobaça sofreu bastantes melhoramentos nos séculos XVII e XVIII. O número de conversos diminuiu e o edifício que lhes era destinado, passou a revelar-se inútil. O Abade precisava de instalações. Era necessário arranjar salas para as deliberações dos Capítulos Gerais da Congregação Autónoma, bem como para a administração da própria congregação. Desejava-se também criar uma hospedaria digna de príncipes e reis que ali se alojavam, por ocasião das suas deslocações. A evolução da disciplina monástica tornara inúteis algumas das divisões da Abadia. Os monges iriam trabalhar em células e não frequentavam as salas de trabalho e o calafactório.

A partir de certa altura, os monges abandonaram a austeridade dos tempos difíceis e iniciais, passando a dormir em celas individuais, em prejuízo dos dormitórios colectivos (26).

No século XVII, utilizou-se o edifício dos conversos para alojar o Abade e instalar uma hospedaria. Na maioria das abadias foi esta parte do edifício transformada em Palácio Abacial.

O de Alcobaça foi demolido e outro construído no seu lugar, mas encostado ao claustro. A Ruela dos Conversos desapareceu. Talvez esta ruela tenha sido suprimida ou estreitada durante a construção no tempo de D. Diniz. Com efeito, a Ala do Claustro, bordejando o edifício dos conversos, parece ter sido recuada, e isso por causa dos trabalhos, como nos leva a pensar o enorme maciço de alvenaria que se acha no ângulo noroeste do claustro. Nestas condições, o claustro teria invadido a ruela, como nas abadias catalãs de Poblet e de Santa Creus.

Na extremidade do Celeiro primitivo preparou-se a Sala dos Reis, que comunicava com a nave da Igreja pela antiga porta dos conversos. Entre o refeitório e o novo corpo de aposentos, no lugar da cozinha e do seu pátio, o Rei D. Afonso VI, também quis ligar o seu nome ao edifício monumental de Alcobaça, fundando um claustro; porém a revolução palaciana que o precipitou do trono ao fundo de um cárcere, não lhe permitiu acabá-lo (27).

Para substituir a cozinha desaparecida, os monges utilizaram o calafactório tornado inútil. Aí encontravam o essencial: uma grande chaminé e água no pátio.

A sala de trabalho, também desactivada, substituiu o celeiro primitivo, suprimido ao mesmo tempo que a ala dos monges.

Atribuiu-se ao Marquês de Pombal a iniciativa dos grandes trabalhos que modificaram o aspecto exterior do Mosteiro. Os monges condescenderam ao gosto da época, levantando imponentes construções. Isto era vulgar na Europa. Não nos devemos precipitar ao acusá-los, como se tem feito. As construções medievais de Alcobaça devem ser estudadas em comparação com as demais da Europa dos séculos XII e XIII, tais como as dos séculos XVII e XVIII com as abadias reconstruídas por essa altura e, ainda, com a arquitectura civil. O novo corpo do edifício, que foi construído sobre a fachada, à direita da Igreja, estava destinado ao Colégio da Nossa Senhora da Conceição e ao alojamento dos monges mais velhos. Os arco-botantes que escoram a extremidade do chamado Dormitório do Cardeal, ou seja, do Cardeal D. Afonso, Abade Comendatário, não devem ser entendidos como manifestação de ostentação, pois foram construídos para consolidar a construção abalada pelo tremor de terra de 1755. O gosto da época exigia uma simetria, de que as demais construções contemporâneas nos fornecem exemplos. Alcobaça não podia ser excepção. Ao longo da (antiga) estrada de Lisboa ao Porto, o pátio da cozinha primitiva desapareceu englobado no novo Claustro de D. Afonso VI. Entre o calafactório e a extremidade da sala dos monges subsistia um vazio: o pátio do calafactório. Construiu-se uma parede que enchia esse enorme edifício. O Dormitório do Cardeal foi elevado e encimado por uma estátua de D. Afonso Henriques.

A estátua de D. Afonso Henriques foi colocada em 6 de Novembro de 1632, sob o reinado de Filipe III, que veio a Alcobaça de propósito. Algum tempo antes, o mar havia atirado à praia de S. Martinho do Porto, um enorme madeiro, que foi transportado por muitas juntas de bois para Alcobaça. Depois de muito cortado e desbastado, serviu de guindaste para a colocação da estátua no alto da frontaria.

Em 17 de Abril de 1952, aquando de uma violenta trovoada que caiu sobre a Vila, foi a estátua atingida por uma faísca, sofrendo danos na cabeça e na coroa. A parte central da fachada do mosteiro foi acrescentada no século XVIIL Nessa altura foram construídas as torres.

Em 1881, uma faísca havia destruído a parte superior da torre do lado esquerdo. A ala sul da fachada, data também do século XVIII e nela estiveram a partir de certa altura, melhor dizendo, após a extinção das ordens religiosas, até à tentativa de restituição da traça original, residências particulares e arrecadações (28).

Para restabelecer a simetria, a nova fachada da cozinha foi também elevada em um piso com duas janelas cegas.

A primeira cornija desta fachada, corresponde à cobertura do refeitório, enquanto que a segunda prolonga a primitiva cobertura do dormitório. Esta parede, rectificando a fachada do Mosteiro, delimitava ao mesmo tempo a cozinha nova. Se se quiser tomar a devida nota as dimensões desta não ultrapassavam, em plano, as do calafactório do seu pátio e em altura as do dormitório.

Manuel Vieira Natividade chamou a atenção para as suas dimensões.

A cozinha mede 28,83 metros de comprimento, 5,66 ms. de largura e 18 ms. de altura. Os monges de Alcobaça não tiveram o trabalho de fazer passar um braço do Rio Alcoa pela cozinha, pela muito simples razão que esta canalização existia desde o século XIII, no mesmo lugar. Quanto às dimensões da levada, convém reduzi-las às devidas proporções. O canal de chegada não mede mais de 35 cm de largura. A chaminé ocupava o lugar do calafactório. A sala contígua, conhecida hoje por Adega, e sobre cujo destino muito se discutiu, é simplesmente a antiga sala de trabalho dos monges. O chão, é construído em vastos degraus para acompanhar o declive, muito pronunciado. Nestes degraus era fácil colocar mesas.

No refeitório, existem ainda as janelas primitivas, tornadas já úteis, desde que o calafactório foi englobado na cozinha em 1752. Elas permitem, pelo menos, determinar com segurança as dimensões do calafactório. A chaminé exterior pode, a bem dizer, ser criticada, mas apenas em nome da estética.

É lícito conjecturar se as suas dimensões extraordinárias, em termos de altura, são fundamentalmente devidas ao cuidado de evitar que fumo dos fogões fosse rebatido sobre as paredes do edifício do Mosteiro. Não há que ir mais longe nem remontar ao século XVII, para encontrar condutas de fumo tão altas como esta.

Seja como for, as dimensões reais desta cozinha, não têm relação com a vasta cúpula de 60 pés de diâmetro que causava a admiração e ao mesmo tempo escandalizava o virtuoso William Beckford.

Não se concebe todavia a necessidade de dispor de numerosas pontes sobre um tanque que não mede mais que 5 metros de comprimento por 3 metros e meio de largura e é rodeado por um espaço suficiente para a circulação de pessoas.

O Marquês de Fronteira talvez tenha exagerado. Informa-nos que um grande caldeirão estava sob a chaminé central da cozinha. Na polémica que se seguiu à pilhagem de Alcobaça, em 1833, faz alusão aos caldeirões que foram roubados. Conheciam-se 3 em Alcobaça.

O mais pequeno, escapou à pilhagem e encontra-se hoje em dia, em exposição, na Sala dos Reis. A origem dos caldeirões é bem conhecida. Depois de vitória de Aljubarrota, os portugueses confiaram à guarda dos monges os três enormes caldeirões onde os castelhanos prepararam a alimentação da sua tropa. De acordo com o cronista Frei Manuel dos Santos:

(…)No caldeirão maior, quando estava na cozinha do rei de Castela, fazia-se nele comer para 293 criados, os quais, segundo se conclui da grande capacidade da caldeira, não deviam comer pouco (29).

O troféu exposto no claustro estava acompanhado duma inscrição evocativa das vitórias portuguesas. Esta inscrição, está hoje na Sala dos Reis com o caldeirão, salvo da pilhagem.

O terceiro destes utensílios fora transportado pelos monges para uma das suas granjas. Está fora de questão a existência de um quarto pertença dos religiosos.

A última referência feita ao segundo caldeirão, a propósito da sua exposição no claustro, teve lugar em 1744. Espantava a sua estranha corpulência , a ponto de Pinho Leal estimar que nele se podiam assar 4 bois ao mesmo tempo, afirmação talvez tão temerária como para a chaminé da cozinha. Este pormenor leva-nos a pensar que o monstruoso caldeirão do Marquês de Fronteira não era mais que o enorme utensílio primitivo dos castelhanos devolvido ao seu destino primitivo pelos monges e por eles colocado sob a base da chaminé do calafactório.

No Mosteiro de Alcobaça existiu durante muitos anos, cerca de 450, um muito célebre caldeirão, também conhecido por Caldeirão de Alcobaça, tomado em 14 de Agosto de 1385 a D. João de Castela, na Batalha de Aljubarrota, por Gonçalo Rodrigues, que por isso ficou conhecido doravante porCaldeira. Diz-se na tradição popular, que no tal caldeirão, que era de cobre, se podiam cozinhar 4 bois de cada vez. Este caldeirão, foi dado com outros dois mais pequenos ao Mosteiro de Alcobaça, por D. João I para eterna lembrança da vitória de Aljubarrota , no dizer do cronista Frei Manuel dos Santos.

Um dos mais pequenos, foi mandado pelos frades para um lagar de azeite na Fervença, pertencendo segundo Pinho Leal, a uma tal D. Francisca Jacinta Pereira (Portugal Antigo e Moderno, vol. I).

O outro, segundo o mesmo autor, foi colocado pêlos frades no forno, mantendo-se hoje na Sala dos Reis. O caldeirão maior, era de metal mais fino e estava no claustro para ser visto mais facilmente. Batendo-se-lhe com uma pedra, o som cobria o repique de todos os sinos. Era de tão extraordinária corpulência que, quando servia na cozinha do rei de Castela, fazia nele comida, a que chamavam badulaque, ou seja, guisado de fígado e bofe de vaca, para 293 pessoas. Este caldeirão desapareceu após a fuga dos monges e o saque do Mosteiro, havendo polémica sobre o seu destino. Na pedra, onde estava assente, havia a seguinte inscrição:

HIC EST ILLE DEBES, TOTO CANTATUS IN ORBE QUEM LUSITANI, DURO, GENS ÁSPERA BELLO DE CASTELLANIS SPOLIUM MEMORABILE CASTRIS ERIPUERE; CIBOS HIC OLIM COXERAT HOSTI AT NUNC EST NOSTRITERTIS SINE FINE TRIUMPH .

Traduzido para português significa:

Eis o caldeirão, famoso no mundo inteiro que os lusitanos, povo valente na dura guerra tomaram ao exército castelhano, despojo memorável. Ele servia outrora para fazer a comida do inimigo. Ele é hoje, do nosso triunfo, imperecível testemunho.

O Dr. António Luís de Seabra, mais tarde Visconde de Seabra, tomou posse como Corregedor Interino de Alcobaça, sendo exonerado pouco tempo depois. A sua passagem por Alcobaça, foi por nós estudada e publicada no jornal O ALCOA. Os tempos eram de intensas paixões e tensões políticas. Não se esqueça que o País vivia a luta fratricida entre miguelistas e liberais. O Visconde de Seabra, que atingiu os mais altos postos da Nação, como os de Reitor da Universidade de Coimbra e Ministro da Justiça, e que deixou o seu nome ligado ao primeiro Código Civil Português, também conhecido por Código de Seabra, chegou a ser acusado, ao que se crê sem fundamento e por mera chicana, do furto deste caldeirão. O mais provável é que após a fuga dos monges e a vinda de Seabra para Alcobaça tenha ocorrido o seu desaparecimento. Segundo ainda Pinho Leal, na sua referida obra, andou durante muito tempo em voga a seguinte quadra:

NO ANO DE TRINTA E QUATRO

LÁ SE FOI O CALDEIRÃO! SÓ NOS FICOU POR MEMÓRIA,

UM VISCONDE ... E A INSCRIÇÃO!

De facto ficou a inscrição, mas não o caldeirão (30).

A transformação do calafactório em cozinha, explica-se pela necessidade de instalar uma nova cozinha no lugar da que foi suprimida. Esta razão, era suficiente, sem que fosse obrigatório recorrer à justificação de glutonaria ou sibaritismo dos monges cistercienses. As suas dimensões eram condicionadas pelas construções que a delimitavam. A ribeira existia há vários séculos no mesmo sítio em que ainda se pode ver hoje. Ela alimentava a fonte que se encontra na fachada que por causa disso, se chama Largo do Chafariz. Esta praça corresponde ao antigo pátio que separava o Mosteiro das dependências, onde se guardavam os instrumentos agrícolas.

Estas dependências, no lado oposto à fachada do Refeitório, estão hoje em dia ocupadas por estabelecimentos comerciais, cafés e habitações. A actual Praça D. Afonso Henriques, era outrora um pátio que fazia parte das dependências do Mosteiro, foi conhecida como Largo do Chafariz, dado a fonte ali existente, que já não jorra água que se veja. A zona envolvente do Mosteiro, com destaque para a actualmente denominada Praça 25 de Abril, neste ano de 2005 encontra-se a ser intervencionada urbanisticamente, de acordo com a perspectiva de melhor valorizar, como se impõe, a frontaria principal do edifício.

Foi em 1839 que se demoliram os muros para se fazer a comunicação do quadro do Mosteiro com a Vila. Destas demolições, resultou a junção do Largo do Chafariz com o Rossio, hoje Praça 25 de Abril, entretanto também chamada Dr. Oliveira Salazar, actualmente em grandes obras como se referiu.

O nome de Praça de D. Afonso Henriques vem de 17 de Janeiro de 1876 e aqui realizou-se durante muito tempo o mercado da hortaliça. Foi pavimentada e arranjada em 1948, tendo as velhas árvores sido substituídas pelos actuais plátanos. Alguns destes plátanos foram derrubados em 2004 para permitir (o progresso?) e as obras em curso na praça. Liga com a actual Praça da República, pelos Arco de Cister e Arco de Claraval. O Arco de Cister, chamou-se Arco do Vazão enquanto que o Arco de Claraval, Arco do Chafariz. A actual denominação provém de 1876. A Praça da República foi também em tempos um pátio das dependências do Mosteiro, tendo recebido naquele ano e dia o nome de Praça das Amoreiras. Em 17 de Maio de 1886, recebeu o nome de Praça Príncipe D. Carlos e em 8 Outubro de 1910, (obviamente?) a de Praça da República. Realizou- se aqui também o mercado do peixe, nome porque chegou a ser conhecida (31).

Pode-se, pois, encontrar uma explicação tanto no que diz respeito ao arranjo da cozinha, como à transformação da Sala dos Monges em Celeiro. Resta-nos , e isso é importante, a acusação de gula, solidamente alicerçada na existência do que foi qualificada da Cozinha de Titã, Cozinha de Gargântua ou mais simplesmente de templo de gastronomia ou de glutonaria.

(CONTINUA)

Sem comentários: