quinta-feira, 13 de maio de 2010

D. MAUR COCHERIL, W. BECKFORD E A COZINHA DE ALCOBAÇA (Parte II) A cozinha do Mosteiro Cisterciense de Alcobaça

A cozinha do Mosteiro Cisterciense de Alcobaça, é um monumento que merece atenção.



Escreveu-se muito sobre este assunto e algumas das conclusões prejudicaram a reputação dos monges. Não se trata aqui de fazer um processo de intenções a Beckford ou a todos os que nele se inspiraram. Desejamos verificar, através dos textos, e interrogando a própria construção, certas afirmações que ainda persistem, tanto mais que os visados não estão cá para se defenderem. A descrição de Beckford tornou-se clássica e, algumas das suas expressões pertencem ao que se poderia chamar o folclore de Alcobaça.



(...)entraram os Grão-Priores de mãos dadas e em conjunto. Para a cozinha, disseram em perfeito uníssono e imediatamente. Então ajuizará se fomos falhos de zelo para o regalar. Um convite, nestes termos, era irresistível. Os três prelados, mostraram-me o caminho do que é, estou convencido, o templo da gastronomia mais notável de toda a Europa. (...).Todavia os meus olhos nunca viram em convento moderno de França, Itália ou Alemanha, um espaço tão grande dedicado a uma finalidade culinária. No centro desta sala imensa, de diâmetro não inferior a 60 pés, corria um riacho alegre, da mais límpida água, que atravessava reservatórios de madeira perfurada, que continham os mais belos peixes de rio, de todas as espécies e tamanhos. De um lado acumulavam-se as espécies de caça. Do outro, legumes e frutos, de uma variedade infinita. Além, uma longa linha de fogões, seguida de fornos e perto destes, montes de açúcar, cântaros cheios de puro azeite e uma quantidade enorme de doçaria que, um grupo de numerosos irmãos leigos e ajudantes, estendiam e formavam em cem feitios diferentes, ao mesmo tempo que cantavam tão alegremente como pássaros num campo de trigo (6).



Seria deselegante recusar o mérito poético e o poder evocativo desta entusiástica descrição. Ela prova que o prazer da mesa, não era a menor das virtudes de Beckford.



A descrição que por sua vez faz mais tarde o Marquês de Fronteira, é bastante mais prosaica:



(…)Entretanto, conduziram-me à cozinha, a qual correspondia, em tudo ao refeitório. Um grande caldeirão dava nas vistas, estando colocado numa formidável chaminé de ferro. Para o limpar, entrava um moço dentro, que, enquanto com a pá de ferro deitava para fora o resto da comida e o lavava, não era visto de fora, tal era o tamanho do caldeirão! Grande quantidade de fornalhas de ferro guarneciam a parede, uma banca de dimensões extraordinárias ocupava o centro da cozinha, rodeada por doze cozinheiros, e um rio bastante caudaloso e com uma corrente rápida, tanto de Verão como de Inverno, atravessava a cozinha, havendo várias pontes para se passar de um lado para outro. Com muita facilidade se podia inundar a cozinha aos Religiosos para a lavar, mas isto raramente acontecia, sendo repugnante o estado de porcaria em que se achava (7).



Poder-se-ia salientar algumas contradições entre estas duas visitas e respectivas descrições.



O texto da Excursão ... foi escrito em 1834 e 1835, quer dizer 4 anos mais tarde.



Beckford declarou que esta narrativa foi redigida de acordo com apontamentos reduzidos.



Rose Macaulay, nota aí um conjunto de incidentes, de fantasias e de descrições, ao mesmo tempo deliciosas e divertidas, em parte recordações, em parte imaginação, pensadas em noites de insónia. Os detalhes da descrição da cozinha, como os do banquete que se seguiu, não devem por isso ser aceites sem reservas.



Merimée, havia já chamado a atenção para o facto de que todas as grandes enfabulações necessitam de um detalhe minimamente credível, seja ele qual for .



Aqui, os detalhes são abundantes, mas subsiste logo a suspeita instintiva, quando se sabe que o autor não passou mais que umas horas na Abadia, não participou minimamente na vida conventual e, reviveu, com muita imaginação, quarenta anos mais tarde, todas as cenas que descreveu.



Pelo contrário, o Marquês de Fronteira, que permaneceu uma dezena de dias na Abadia, conviveu com os monges, na medida do possível. Enfim, o estilo jocoso e ligeiro do viajante inglês, dissimula a intenção de ridicularizar e de fazer alusões equívocas, especialmente deploráveis num velho de 75 anos.



(…) Quando a mesa se levantou, quatro lindos noviços, rapazes de 15 ou 1 anos, cuja candura inocente os aproximava da afectação, entraram oscilando perfumadores em filigrana de Goa, onde fumegavam o odorífero calamba e as melhores qualidades de aloés (8).



Pode-se aceitar, todavia com uma certa boa vontade e admitir com André Parreaux que, o interesse da Excursão..., não está aí, ou seja, na descrição fiel de acontecimentos autênticos. Ela reside, principalmente, no valor literário duma obra cujas críticas têm, desde há mais de um século, reconhecido a sua superior qualidade .



Os cistercienses de Alcobaça foram vítimas destas circunstâncias. Quaisquer que tenham sido as intenções de Beckford, e os méritos literário e artístico da sua obra, dedicaremos as páginas seguintes à crítica da mais célebre descrição da cozinha do mosteiro e do banquete.



Além das vastas proporções deste templo de culinária e da incrível acumulação de vitualhas, que tanto divertiram Beckford e seus companheiros, alguns outros pormenores espantaram os visitantes.



Encontram-se, muito bem resumidos, no texto de F. Batista Zagallo:



Nessa parte há ainda digno de ver-se a cozinha, amplíssima, com os seus tanques de mármore, servidos com profusão de água que corre por uma torneira colocada em cada um deles, a colossal chaminé em que se assava um boi, o vasto tanque aberto no pavimento ao fundo, destinado ao depósito de peixe, e fornecido de água por um copioso caudal derivado da levada e a espessa mesa destinada ao corte da carne (9).



O número de bois que os monges assavam na colossal chaminé, nunca poderá ser determinado com exactidão.



Ramalho Ortigão visitou o Mosteiro em 1886 e escreveu em AS FARPAS que a cozinha, é verdadeiramente monumental, é de uma altura catedralesca, em abóbada forrada de tijolos esmaltados e medindo perto de trinta metros de comprimento. A chaminé, colocada ao centro da casa, sobre colunas de ferro, é de tais dimensões, que permitia assar no espeto a um tempo, sobre o lar que ela cobre, seis ou oito bois. Em roda estão os fornos de mármore, servidos de água por grossas torneiras de bronze. A um topo vê-se a abertura em que deve ter girado a grande roda destinada a passar comidas para o refeitório (10).



Para Zagallo e Vilhena Barbosa (11), ela não servia para mais que um.



Manuel Vieira Natividade, dá as dimensões exactas e calcula que três bois podiam ser assados à vontade.



(…) Contígua ao refeitório fica a cozinha, que é o assombro de todos os visitantes, pela sua grandeza e pela sua disposição. Passa como lenda que na sua chaminé, se podia assar um boi inteiro, mas nós afiançamos que esse animal triplicado ainda deixaria vasto campo para se fazerem acepipes e badulaques para os reverendos frades (12).



Somos de opinião que é este autor quem tem razão. O GUIA DE PORTUGAL (13), calcula que podiam-se assar no espeto, ao mesmo tempo, seis ou sete bois.



É da mesma opinião o autor da excelente obra AS ESTRADAS DE PORTUGAL (14).



Varela Altamira num certo ROTEIRO DAS MUITAS E VARIADAS COISAS editado em 1939, que não podemos consultar, informa o turista que a chaminé possui tais proporções que se podiam assar ao mesmo tempo oito bois (15).



Fixemo-nos nele e veremos que o número de bois sacrificados em conjunto ao apetite, este ardor fisiológico dos bernardos de Alcobaça, não aumentou desde 1939.



É manifesto que uma chaminé, dotada de tão curiosas propriedades e capaz de crescer segundo a óptica e o estado de espírito dos que a descrevem, é um monumento de valor excepcional que há que rodear de todos os cuidados. O autor da nota sobre Alcobaça na GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA faz um judicioso e pequeno comentário: A enorme cozinha actual, é ladeada de altas chaminés parietais, com a vasta lareira central, de ampla mesa para tassalhar os blocos de vianda, tudo em duplicação da craveira comum, como se as vitualhas fossem preparadas para o insondável estômago de Gargântua.



Não era necessário mais nada para transformar Alcobaça numa Abadia de Telemo, equipada com uma Cozinha de Gargântua ou Titã, digna do que Beckford estigmatizou, possuído de virtuosa indignação, com o epíteto de Templo de Gastronomia, ou Glutonoria. Manuel Pinheiro Chagas, escreveu que tinham grande reputação de ignorância e de glutões os frades Bernardos, sempre bernardo o frade espesso das picarescas lendas populares. Confirmou essa tradição José Agostinho de Macedo, na sue célebre dedicatória do poema OS BURROS, ao Geral dos bernardos... Mas é certo que a sua tradição é


Injusta na sua generalidade .



Almeida Garrett, no poema D. Branca, na cena entre os frades bentos e bemardos não foi muito lisonjeiro para estes últimos. A despeito do muito de bom que fez, o frade alcobacense tornou-se, com o tempo sinónimo de estúpido e de glutão. Dicionários antigos como o Morais, definem Bernardo como sujeito muito gordo e estúpido que só se preocupa com a glutonaria, ou Cândido de Figueiredo, bernardoestúpido e gordo, reflectindo o que entrara na gíria e nos conceitos mais populares (16).



Poderíamos limitarmo-nos a reproduzir, sem comentários, a conclusão de Varela Altamira:



(…)Até onde se pode ir? Não se sabe. O laboratório culinário conventual está sempre no mesmo lugar, com a sua alta chaminé recoberta de azulejos brancos. Não se fizeram lá quaisquer obras desde 1834 e as suas dimensões permaneceram as mesmas. Todavia, em menos de um século, a cozinha observada por diversas pessoas multiplicou oito vezes o seu volume. É também possível que um boi do século passado, valha um rebanho de hoje em dia, época de vacas magras que atravessamos (17).



Como vimos e sabemos, a cozinha não é apenas isto, a chaminé. Na verdade, não há acordo quanto ao destino do tanque aberto no pavimento. Uns, vêm aí um viveiro onde se conservava o peixe fresco. Outros, pensam que servia para a limpeza da cozinha e talvez da loiça conventual.



Ele mede 5 metros de comprimento por 3 metros de largura. Admite-se, com facilidade, mas sem razão, que os monges eram uns sibaritas que desviaram um braço do Rio Alcoa para o fazer passar na cozinha.



O alcobacense Bernardo Villa-Nova escreveu que um dos tanques é escavado no pavimento e abundantemente alimentado de água por um braço ramificado da levada que, por sua vez, é uma ramificação do Rio Alcoa (18).



Luis Augusto Rebelo da Silva (1812-1817), que já referimos supra, foi um notável escritor que escolheu Alcobaça para alguns capítulos do seu romance LÁGRIMAS E TESOUROS , com o sub-títuloFRAGMENTOS DE UMA HISTÓRIA VERDADEIRA baseado na visita que Beckford fez ao Mosteiro.



Vamos reproduzir alguns passos da dita obra, hoje em dia difícil de encontrar, em que é descrita a cozinha de Alcobaça:



(…) A cozinha justificava o orgulho do Abade Geral. Era o templo mais sumptuoso que podia dedicar-se aos ritos de Comus. Beckford, maravilhado, não se atrevia a acreditar no que estava vendo. Em nenhum dos conventos de França, de Itália ou da Alemanha, que visitara, contemplara tão vasta e admirável fábrica. Mestre Simon Cabarrus erguia as mãos e expressava o seu espanto, em interjeições mais ou menos ortodoxas. De facto, os estrangeiros, que a experiência e peregrinação habilitam a ser juízes, diziam que dificilmente apontariam em toda a Europa outra casa semelhante para competir com a de Alcobaça em grandeza e esplendor (...). Nesta cozinha, ou mais exacto, nesta sala espaçosíssima e lavada, que media sessenta pés de alto, trabalhava uma legião de mestres, de ajudantes e de serventes, com mangas e túnicas arregaçadas. Atravessava a casa pelo meio um rio de águas vivas, um verdadeiro rio, braço do Alcoa, e murmurando ia entornar tesouros líquidos nos amplos reservatórios, aonde nadavam peixes de todas as qualidades e tamanhos (...). Mesas enormes de pau e de mármore ostentavam de um lado hortaliças, os legumes e as frutas acabadas de colher, enquanto do outro se viam também a monte, as vítimas inumeráveis sacrificadas pela espingarda de conteiros à faustosa hospitalidade dos seus amos. Perdizes, patos bravos, galinhas, narcejas, lebres, coelhos, e veados, acusando ainda no sangue fresco o chumbo recente, esperavam em vistosa confusão pelas ordens do leigo emérito, ao qual o Dom Abade Geral confiaria o inteiro domínio daquelas regiões (19).



(CONTINUA)

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