terça-feira, 11 de maio de 2010

A moral e os bons costumes na praia

NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS
A MORAL E OS BONS COSTUMES NA PRAIA E NÃO SÓ
EM QUE SE FALA DO CATITINHA

Catitinha

.O Estado Novo, a partir de certa altura, ainda antes da II Guerra, havia começado a investir no turismo balnear, um pouco em detrimento do tradicional turismo termal, como forma de captar mais receitas e divisas.
As praias, por excelência, eram a Costa do Estoril, Figueira da Foz, Espinho e Póvoa de Varzim.
Até o Algarve, zona periférica, se tornar o grande factor de atracção, ainda iria mediar muito tempo.
O desenvolvimento do turismo, acarretou alterações nos hábitos e na moral nacionais.
A praia, o sol e o calor, estavam conotados como uma vida menos regrada, mais despretensiosa ou liberal.
Apesar dos apelos e de alguma condescendência aos novos hábitos, o Salazarismo, continuava a impor uma moral puritana, por alguns já considerada obsoleta. O País sofreu um choque com a chegada da vaga de refugiados, cujos hábitos e cultura eram bem diferentes. Ainda nos recordamos de ouvir dizer com ar galhofeiro, misto de depreciativo, que a esplanada da Pastelaria Suiça nos Restauradores, nos tempos da II Guerra, era conhecida como a nossa BONPERNASSA, pela relação com a exibição de pernas de mulheres, que até fumavam em público.

O Dec.Lei nº 31247, de 1941, afixado em editais pelas capitanias marítimas,havia imposto às senhoras, sob pena de multa, um fato de banho adequado, inteiro, sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido nas axilas, os homens calção justo à perna e reforço da parte da frente cobrindo o ventre, o que dava muita canseira aos zelosos cabos-do-mar, envolvidos nas praias, qual jogo de gato e rato.
Num país com um regime que obrigava as professoras primárias a pedir autorização ao governo para casar, as mulheres a ter autorização do marido para exercer comércio ou ir ao estrangeiro, não é de espantar que a indumentária das pessoas fosse regulamentada, não sendo permitidos certos modelos considerados ousados.

Tudo, enfim, em nome da moral e dos bons costumes.
Ou, como justificava o referido Decreto-Lei, relativo aos modelos de fato de banho, para salvaguarda daquele mínimo de condições de decência que as concepções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam.
Ainda magro e adolescente, lembramo-nos de termos de usar um fato de banho com calção quase até aos joelhos, com uma saia dianteira que ocultasse eventuais entusiasmos (viris) e uma camiseta de alças, à moda dos antigos olímpicos, que tapasse algum pêlo que ousadamente despontasse no peito.



O cabo de mar, uma autoridade vestido de branco da cabeça (boné) aos pés (sapatos), era o fiscal intransigente na defesa da moral.
Hoje, se alguém se apresentasse numa praia portuguesa, nos preparos que a lei prescrevia então, seria alvo de suspeita e não por parte de um polícia, mas de um psiquiatra, que duvidaria da sanidade mental.
As regras que impunham decência no vestuário continuaram legalmente em vigor por vários anos.
Mas, com o correr do tempo, na prática foram cada vez mais sendo postas em causa.
Para isso, muito contribuiu o turismo que, na década de sessenta, começou a procurar o nosso país como local de veraneio, onde cada vez mais, apareciam ingleses, franceses, holandeses e alemães, com indumentárias ousadas para os nossos padrões e costumes.

Foi, recorde-se, a época da mini-saia (a britânica Mary Quant) e do biquini, das longas e despenteadas cabeleiras para os rapazes (beatlemania). E se muito boa gente, ainda se escandalizava com a pouca-vergonha das vestimentas dos estrangeiros, outros, especialmente a juventude, adoptavam alegremente as novas modas.



O Manel Bexiga, que é nazareno, recorda um caso, ocorrido nos primeiros anos da década de sessenta, na praia.
Se é verídico ou anedota não podemos atestar.
Conta ele que por lá apareceram umas francesas, de biquini, num areal onde todas as senhoras e raparigas ainda só usavam fato-de-banho.
Então o cabo do mar foi falar com elas, tentando, com as poucas palavras em francês que aprendeu com a irmã concierge em Paris, ou talvez mais por gestos, explicar-lhes que ali, na Nazaré, só era permitido usar fato-de-banho de uma peça. Só uma peça, uma só, tentava o pobre homem explicar.
Então as francesas disseram que sim, tinham compreendido muito bem, só não sabiam era qual das duas peças era para tirar, a de cima ou a de baixo.

Quando as férias eram um mês de praia, com casa e barraca alugadas, metade do Ribatejo e Estremadura mudava-se para a Nazaré apesar da água frias, com o picadeiro, a lota, o salva-vidas e o grande promontório do Sítio.
Havia, nesta e em praias como a Figueira da Foz, no ambiente um certo charme de gente fina, como se fosse de luva branca. Uma nova burguesia que se queria afirmar como distinta, adoptava estereótipos em voga para se identificar.

A praia, era o palco por excelência da infância e adolescência, e despertava o imaginário para a vida, singrando nas ondas da água ou nas da areia. À beira das barracas listadas a azul ou a verde, quando a tarde esmorecia e a brisa se levantava, jogava-se o prego, o anelinho, o ring. Acertar com o anel de borracha na eleita pertencia ao ritual da iniciação.
Quando as gaivotas voavam atrás das traineiras que regressavam, com o sol a queimar de oiro a babugem das ondas, sentados na areia, passavam no grupo segredos, afagos de mão ou beijos castos sempre recusados em alarido ao dono da prenda que está para sair.
Segundo o crepitar do brilho do amor, ele ou ela, tudo combinado na força da fuga do olhar, quando o anel passava nas mãos em concha fechada.




Fora desta, nas mesas das esplanadas ou cafés, o vocabulário pretendia-se mais cuidadoso, mas de circunstância. Os vereaneantes bem aperaltados, embora já um pouco leves no trajar, à inglesa, iam para a sala para uma batidela de cartas (king, bridge ou canasta). Enquanto isso, as mães de família com os penteados alteados e enformados, metidas em vestidos já graciosamente decotados, abanavam os leques para fazer frente aos caloraços, e matavam o tempo bebericando um chá ou um refresco à espera do consorte.

As raparigas exibiam vestidos camiseiros, de godé, nylons ululantes, meias de seda (de vidro), realçando a curvatura da perna depilada que se vinha calçar no sapatinho. Muitos rapazes trajavam de branco, calça, camisa e sapatos.
E não faltavam os bailes de estação, com o que se pretendia recuperar a belle epoque, organizando para o efeito concursos, como a mais bela da praia, o mais original vestido de chita ou o baile das vindimas. Rapazes e meninas espigavam na hora do picadeiro (após o jantar), para cá e para lá, olhares melados no momento de cruzarem, ancorados nas regras da civilidade e etiqueta.
As mães pensavam que tendo as filhas debaixo de olho podiam adormecer sossegadas.
Dos pais sabia-se que mantinham as aparências e talvez rezassem pela virgindade das filhas. Tudo funcionava regularmente, como convinha.

Mas com o tempo tudo mudou. Bolacha americana era doce e torradinha.
Porquê americana? Soava, mas não sabia a liberdade.
Era redonda e de reticulado impresso. Na marcha sobre a areia quente, ouviu-se mais tarde olha a língua da sogra, sem adjectivos. Será que também eixou de ser doce e torradinha? Eram iguais no açúcar e na consistência mas esta parecia transportar algo entre brejeirice e anedotário. Virara espátula recurvada e longa, comida a dentadinhas demoradas. As bolachas não eram para matar a fome, esculpiam apenas a gulodice.

Sempre que aparecia, um mundo de gente pequena abeirava-se dele. Era o Catitinha, um homenzarrão velhote de longas barbas, que percorria as praias do país de norte a sul, do Minho ao Algarve, brincava com todos os miúdos e tinha um apito para chamá-los.
Nunca o vimos pedir, mas também nunca o vimos com fome. Pode ser que tudo isso tenha acontecido mas, possivelmente não faltava quem lhe tapasse a fome e o frio, porque todos (mesmo mais velhos) já antes o tinham ouvido. Ninguém lhe pagava, ninguém lhe agradecia.
O Catitinha para muitos era como uma instituição, um avô de todos.
Dizia-se que tinha sofrido um grande desgosto, a morte de um filho, e ficou sem tino.


Por essa altura, o jornal satírico Os Ridículos, publicou uma caricatura de um cabo do mar em funções, devidamente uniformizado de branco, boné e sapatos, utilizando uma fita métrica para medir uma banhista de formas generosas e arredondadas, com o comentário que doravante os fatos de banho, das senhoras, não podem ter menos de de metro e meio de pano nas costas. Segundo preconizanva a M.P.F., que pretendia guiar as mulheres de Portugal e criara mesmo um modelo oficial, os fatos de banho femininos excessivamente curtos e decotados, de fazendas leves e cores muito claras eram proibidos pela moral cristã.




Em 1955, O Alcoa, de 22 de Setembro, na primeira página e com todo o destaque, sob a epígrafe de Decência e Moralidade nas Praias-Escárnio da Autoridade e Inimigo da Pátria, alertava os leitores sob a pena de M.J., exprimindo um forte grito de desabafo de um banhista da Nazaré, para o despertar desta nova realidade de impudor que alastrava, parecendo que os homens entraravam em competição desenfreada com as mulheres. (…) Como é possível isto em Portugal? (e aqui ao nosso lado na Nazaré?, acresecentamos nós.) E a nossa surpresa não tem limites, quando somos informados que neste nosso País existe lei, muito clara e categórica, que desce até à determinação da qualidade, dimensões, e locais de uso dos fatos de banho, não deixando de mencionar as graves penas em que incorrem os transgressores (…). Afinal para quê? Para que quem chegue verifique, que grande parte, talvez a maior parte dos banhistas, se apresentam na praia e até fora dela, desacatando as ordens legais e a autoridade. Efectivamente, fez-se tudo quanto podia para o desprestígio da autoridade e para sancionar o libérrimo reinado da tanga (…).
Ainda bem que a vida muda, embora por momentos isso nos pareça acarretar desconforto.

Recentemente, na praia, vimos um homem das Bolas de Berlim.
Estávamos com a nossa neta. Nem pensamos duas vezes. Chamamos por ele e pedimos uma bola, mas foi uma profunda desilusão. O homem não tinha bolas com creme e vendeu-nos uma muito seca, pela qual não obstante cobrou um euro.
A partir daqui nem pensar mais no antigo e esquecido pregão frut’ó chocolate, que nos levaria direito ao bar da praia e obrigaria a comprar um gelado, a um preço exorbitante.

Afinal, a praia também mudou muito.
Longe vão as Bolas de Berlim fresquinhas ou caracóis, como apregoavam as mulheres fardadas de branco que, de manhã à noite, caminhavam na areia, com as caixas de lata cheias de bolos, à cabeça.
Mas também havia, os vendedores de bolacha americana. Estes eram homens e a lata cilíndrica que transportavam às costas tinha uma espécie de roleta na tampa. Bolacha americana doce e torradinha!
Porquê americana? Soava bem, mas não sabia a liberdade... Era redonda e de reticulado impresso. Na marcha sobre a areia quente, ouvia-se também um olha a língua da sogra, neste caso sem adjectivos, como convinha. As bolachas não eram para a fome, esculpiam apenas a gulodice.

Não há mais cabo do mar, Bolas de Berlim com creme, vendedores de barquilhos, nem o homem dos gelados, factos muito importantes, na praia da nossa adolescência.

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