sexta-feira, 21 de maio de 2010

Beber vinho é contribuir para o pão de um milhão de portugueses; Nostalgia dos padeiros do antigamente Tempos de ruralidade

NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS
Beber vinho é contribuir para o pão de um milhão de portugueses
Nostalgia dos padeiros do antigamente?
Tempos de ruralidade

José Pereira Machado, que goza de saúde e já dobrou a casa dos oitenta, nasceu no Montes, onde passou a sua juventude, indo viver para Cós, quando se casou com vinte e tal anos. A sua aparência é boa, mas diz que é velho, bastante velho mesmo, pois nasceu quando a I Guerra acabou. Não tem especial nostalgia desse tempo para além, do facto de ser muito mais novo. Machado dava-se mais ou menos por feliz, por viver em paz. A II Guerra era muito longe, lá na Europa, por cá não faltava a malga de sopa, broa, e toucinho para adubar. Teve sorte e as mães portuguesas bem o reconheceram, agradecendo a Salazar. Portugal escapou quase incólume da Guerra, graças à argúcia e boa governação do Chefe.

Os portugueses, como Salazar bem sabia, têm no pão um emblema forte da sua dieta.
Ainda hoje, os portugueses são zelosos guardadores da epopeia do pão, símbolo dos seus anseios, nas palavras de políticos e poetas. A paz ao lado do pão, tal como a saúde e a habitação.
O preço do pão, foi o grande barómetro descontentamento mais elementar e o único produto a que o Salazar nunca permitiu subir de preço. Assim, quando Salazar não deixou aumentar o preço do pão, foi necessário fabricar um pão mais leve, vendido ao mesmo preço do de meio ou de um quilo. Enganava-se o cliente, mas tornava-se mais viável o negócio. Terminada a Guerra tudo iria melhorar, melhores dias virão, como suponha e confia a boa sabedoria popular.

Embora o pão continue entre nós a ser especialmente apreciado, a tradição da profissão de padeiro encontra-se porém definitivamente em crise. Pelo mundo fora, a profissão teve que se adaptar ao desenvolvimento da sociedade, das tecnologias e do comércio, sofrendo com novos padrões de vida e competição. O processo de adaptação às mudanças começou no final dos anos 60, com o aparecimento de tecnologias, como o fogão eléctrico e os armários para impedir o excesso de fermentação. A profissão, que fora baseada na habilidade manual, no olfacto e na visão, passou a ser controlada e substituída por equipamentos, como balanças e termómetros.

Francisco (vulgo Sico) Carlos da Costa, industrial de panificação à moda antiga, ora reformado por doença, salienta que no passado havia uma íntima relação entre o padeiro e o pão, pois aquele tinha que usar os sentidos para descobrir se o pão estava no ponto. No seu tempo, havia que sentir com as mãos a textura da massa e conhecer o cheiro próprio para avaliar se o pão estava pronto. No entanto, reconhece que, com novas máquinas, a vida dos padeiros foi facilitada e, ao invés de acordarem às duas da manhã de inverno ou verão como acontecia, podem acordar (pelo menos) às quatro.

Apesar do desenvolvimento da profissão, os padeiros portugueses tradicionais, como Sico Carlos, sofreram uma crise a partir dos anos 80, quando nutricionistas começaram a apregoar que o pão engorda. Além disso, com a expansão dos supermercados, o comércio tradicional e a sua forma de aquisição começou a modificar-se. Hoje, há pão fresco, variado e saboroso a toda a hora. A venda de pão assemelha-se a uma confeitaria.

Sico Carlos aprendeu há mais de cinquenta anos o ofício com os mais velhos, trabalhando de início como assistente em funções menores, como limpeza. Depois de ter trabalhado bastante tempo numa padaria, já preparado, abriria o seu próprio negócio. No entanto, com a industrialização e a necessidade de satisfazer as exigências da clientela, os aprendizes têm logo aulas práticas, sem terem que passar por essas funções. À medida que a sociedade se transformou, evoluíram também as necessidades e desejos. Um português come em média metade da quantidade que há 50 anos atrás. Apesar de os padeiros serem continuamente desafiados, a população portuguesa mesmo a rural, não cosendo mais o pão em casa, mantém a tradição de consumir pão todos os dias, ainda que em menor quantidade (o preço não é irrelevante), porque está nas raízes de sua cultura.

José Machado manteve sempre estreitos contactos, privando de perto e com familiaridade com a vida e muitas famílias dos Montes. Em jovem, era já lembrada como se recorda, mas pouco acarinhada, a conveniência de caiar as casas, limpar as ruas, cada um na parte que lhes pertence, remover certo lixo que se amontoa aos cantos das ruas e nos largos, porque não só dá um mau aspecto à terra, como também a adopção desta medida de higiene que evita um certo número de doenças daí provenientes. É preciso mostrar, mais uma vez que, embora desprezados pela Câmara de Alcobaça que não atende às (vossas) necessidades locais, (vós) sabeis remediar essas faltas.

Fazendo um esforço para se recordar desses tempos, chega à triste conclusão que afinal, a vida nesse então não era assim tão maravilhosa, apesar de se saber que se ouvir um burro a zurrar, choverá antes de o dia terminar. Mas, na verdade, pensando um pouco mais serenamente, admite que o conceito de felicidade, de bom ou de mau, é altamente relativo e impossível de mensurar objectivamente. Reconhece que é de um geração em que se comiam as sobras, e que hoje, em tempo de carestia de alimentos, sobra mesmo assim quase tudo. Montes era uma terra rural, sem indústria, aliás como hoje, uma terra onde a rapaziada se divertia nas adegas. e na boa linha de pensamento cristão e nacionalista de Salazar, as mulheres eram mães, esposas, filhas ou irmãs de todos os que somos portugueses.

O trabalho feminino fora de casa, e na defesa dos bons costumes, era aceite apenas o do campo (vender criação ou legumes no mercado, fazer as vindimas ou a apanha de fruta, em suma, o mito do ruralismo). As mulheres não deviam trabalhar em sectores onde pudesse haver homens desempregados e nesse caso, não justificavam receber o mesmo que eles, nem lhes era reconhecido igual estatuto profissional. Fazer costura era uma actividade que significava uma promoção social, melhor que o uso de farda de criada ou o trabalho no campo.

As creches e jardins infantis eram raros no Pais, nos Montes nem pensar, pois não se reputava conveniente, que outras pessoas, que não as mães, tomassem conta das crianças. As famílias eram numerosas, fez sentir os seus efeitos. Esta povoação, que já viu muita miséria, que tem sentido muitos gemidos de dor, de muito sofrimento moral e físico, está assente sobre um lençol de água, manacial de numerosas nascentes que brotam, aqui sim, dos alicerces das construções, acelerando a sua ruína, foi aquela onde Machado acabou por radicar a sua vida. Ter famílias numerosas é um acto heróico que o Estado devia premiar. Cós, ali ao lado, não era diferente na estrutura social, uma terra triste com casas denegridas pelo excesso de humidade do solo e da sua exposição a norte, de casas com paredes fendidas, perdendo a verticalidade, dando a impressão de que um violento terramoto.
Quando, por exemplo, tinha necessidade de ir aos Montes matar saudades a casa de António Salgueiro, seu amigo de peito, e perguntava se podia entrar, este respondia-lhe invariavelmente e como se fosse um ritual que aliás ambos cumpriram divertidos durante anos que, quando precisasse de licença a fosse buscar à Câmara.

Até aos 23, 24 anos José Pereira Machado trabalhou na agricultura, muito na vinha, como aliás quase toda a gente e grande número de portugueses. Se não era especialmente feliz, repete-se também não era propriamente infeliz, o que poderia significar ter alguns difusos ou indefinidos problemas, dúvidas, angústias ou ansiedades. Quase de certeza nunca leu Pessoa, diremos nós. A vida é para nós o que concebemos dela. Para o rústico cujo campo lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.

Sem se assumir como um cínico, não acredita que exista uma receita para ser feliz. Existem sim, processos que podem ser utilizados na vida dia a dia e ajudar a encontrar um caminho para a felicidade. Naturalmente, não é uma ciência exacta como querem fazer crer mestres descobridores do segredo. A vida em si, não é um destino, mas uma caminhada. Nesta caminhada podem-se encontrar caminhos amplos e agradáveis ou atalhos tortuosos, que conduzem a becos sem saída, bem como a muitas pedras. Ser feliz em vários sentidos, como a vida, não é pois um destino, mas um processo pelo qual se vai desenvolvendo ao longo da vida. Ser feliz implica liberdade de pensamento e saber reconhecer as possibilidades que os caminhos oferecem. Aliás, todas as dificuldades que se enfrentam no presente são preciosidades que teremos no futuro, se houver capacidade em aprender.

Há pessoas, o que não é o caso de José Machado, que gostam de associar o sucesso à sorte ou azar, dependendo do resultado. Não, cada um é fruto do que tiver feito no passado.
Ao fim da tarde, os homens reuniam-se na taberna, ou na adega. O Manel da Anta dizia quando estava sóbrio que neste labirinto da vida, dá o mesmo haver branco ou trinto.

Nas adegas, alumiadas por lamparinas de azeite, os homens discutiam política, embora a verdadeira política só fosse reservada aos patrões, os mais ricos como António Magalhães, que era professor, o Padre, o Presidente da Junta ou pelo menos o Regedor, porque a política dos outros como eles, era saber se podiam trabalhar na jorna mais que dois ou três dias por semana, pois o trabalho na adega era mais mal pago, do que à chuva ou ao vento. O pior analfabeto é o analfabeto político, sentenciava o Manuel da Joaquina, que tinha feito a quarta classe em Alpedriz. E acrescentava doutoralmente, com uma enorme convicção, que o analfabeto não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos, não decide. O analfabeto político afinal, é tão burro que se orgulha e enche o peito dizendo que odeia a política e a polémica.
Mas do alto da sua fanfarronice, Manuel da Joaquina esquecia que aquele a quem chamava depreciativa e malevolamente de analfabeto político, referindo-se a muitos dos seus conterrâneos, bem sabia até talvez melhor que ele o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, dos sapatos e dos remédios. Afinal aquilo que interessa na vida. Uma vez houve uma reunião da União Nacional (Alcobaça) numa adega da Castanheira. Manuel da Joaquina lá foi bem engravatado e a determinado momento alguém comentou para ele, a meia voz, o que é que aqueles estão para ali a dizer. Com paciência, repetiu professoralmente para o seu vizinho, a matéria dada, até que no fim lhe perguntou se tinha compreendido bem. Sim compreendi muito bem, mas são todos iguais, o que eles querem é tacho.

O trabalho no campo era na lavoura e nos pinhais (resina). Empregos, ninguém
sabia o que tal era. A ocupação que a maioria dos homens da zona de Alpedriz e Pataias tinha, além da agricultura, vinha e pomares, era a resinagem dos pinheiros. Saíam eles de manhã levando consigo o ferro ou a lata e a espátula, que eram os instrumentos de trabalho para renovar as sangrias e colher a resina, bem como o saco da merenda preso à cintura. O resineiro faz parte da cultura portuguesa, sendo cantado em alguns Grupos de Cantares, Ranchos Folclóricos e Zeca Afonso.
Resineiro engraçado, engraçado no falar//Resineiro engraçado, engraçado no falar//Ó i ó ai, eu hei-de ir à terra dele//Ó i ó ai, se ele me quiser levar.
Já tenho papel e tinta, caneta e mata-borrão//Já tenho papel e tinta, caneta e mata-borrão//Ó i ó ai p’ra escrever ao resineiro//Ó i ao ai, que traga no coração.
Resineiro, é casado, é casado e tem mulher//Resineiro, é casado, é casado e tem mulher//Ó i ó ai vou escrever ao resineiro//Quantas vezes eu quiser.

Os pinheiros com porte suficiente para poderem ser sangrados, eram visitados pelos resineiros que colhiam a resina para uma lata que uma vez cheia era despejada numa barrica colocada num local onde pudesse ser carregada, em tempos mais recuados em carros de bois e mais recente já em camionetas.
Quando a fome apertava, fazia-se uma pausa para a merenda, normalmente broa e sardinha. Terminado este trabalho duro e difícil, o resineiro ainda ia ter com a mulher que andava na horta, por vezes com os filhos ainda pequenos, ajudando na sobrevivência da família.

Esta foi, sem dúvida, uma profissão de gerações e de sobrevivência da nossa gente. Mas a profissão de resineiro morreu, como outras. A resina foi uma fonte de riqueza na nossa região. Agora vem do Oriente. Com o calcorrear dos resineiros de um pinheiro para outro com o farnel à cinta porque trabalhava de sol a sol, o mato não crescia como agora.

Na agricultura não havia semana inglesa, muito menos americana de que nunca se ouvira falar, que seria sempre considerada uma modernice, sem viabilidade no nosso país. Só não se trabalhava ao Domingo, pois de manhã havia que ir à missa. Domingo não era Domingo sem missa em latim e sermão, ameaçando com as penas do Inferno, como se na terra ele já não o houvesse. A realidade (ruralidade) era tão dura que a Igreja parecia ajudar a esconder períodos difíceis dos mais necessitados. Como poderia haver castigo depois da morte?, interrogavam-se alguns mais arrojados. Liberdade//Tu tens a vontadinha//Que não eu.//Quero a minha//E não a que me prometes//Lá no céu, como dizia o velho Edmundo Bettencourt.

Sem pretender entrar em terrenos complicados, somos mesmo de opinião que, neste século XXI, Inferno e Paraíso são metáforas, pois não cremos que Deus na sua infinita sabedoria, tenha criado um Universo em que coexistem domínios ultra-terrenos. Não é possível compatibilizar Fé com um Deus que anula o Homem. Esse Deus não põe existir. Também discordamos que seja entendido, proposto pela Igreja ou Sacerdotes, que a vida é uma peregrinação rumo a Deus, como entenderia Dante (mas isso foi na Idade Média), se bem o interpretamos. Passe aqui um breve parêntesis. A pretensa relação com Deus, decorre de uma pessoa que se assume ou supõe religiosa, não tanto necessariamente no sentido de pertencer a esta ou aquela confissão, mas porque a ideia de Deus parece óbvia. Quem pode rejeitar que as religiões (sem exclusão do Cristianismo) trouxeram ao mundo um rol de babaridades, supertições, guerras e mesmo infantilismo?
Mas não, o mundo não seria possível, nem mesmo melhor, sem religiões, pois a indignidade não está nelas, mas nos seus crentes ou agentes que delas se servem de modo rasteiro, nalguns casos blasfemo mesmo, pelos propósitos desumanos.

O Domingo era ainda motivo para tomar banho, vestir roupa lavada, ver e ser visto, os rapazes ou mesmo os homens feitos, lançar olhares sequiosos ao mulherio.
Da parte de tarde, os homens lá voltavam à taberna, onde é que havaria de ser? para entre uns copos de branco ou tinto, por a conversa em dia, jogar o chinquilho ao perde-pagas. Se o vinho atrapalhava o negócio deixava-se este, como sentenciava o Domingos Felizardo. Talvez isso, tivesse criado a fama de ninguénm ter mais sede que ele. Claro que quando apanhava uma boa carraspana eram depois três dias da semana, como sabiam por experiência o patrão e a mulher que no princípio ficava desesperada e depois se habituou. As muheres aproveitavam a tarde para tratar da lide da casa. Bailes, quase só pelo Carnaval, Santos Populares ou Santa Marta estando as moças muito vigiados pelas mães. Se se pensar bem, os sentimentos que hoje em dia tanto atrapalham a felicidade, também existiam, mas o Regime encarregava-se de paternalmente conferir aos acontecimentos as devidas proporções, como se não houvesse capacidade individual ou colectiva para digerir momentos difíceis. Sem dúvida que se vivia, lado a lado, com perguntas para as quais nãoera dada resposta, mas deveria haver. Como muitos portugueses na sua pouca instrução, Machado não sabia exprimir, por palavras, todo um turbilhão de sentires, e se o conseguisse ou soubesse fazer, era mais que normal que o Poder (com quem nunca privou) não lhe desse grande relevância ou dedicasse um vago olhar distraído.

Beber vinho é contribuir para o pão de um milhão de portugueses, era o slogan integrado na campanha ao consumo de vinho, patrocinada pela JNV, pelo Grémio dos Armazenistas de Vinho e com o apoio publicitário do governo. Essa campanha continha todavia algumas contradições, nunca resolvidas a contento. Desde há tempos, havia um conflito entre a opção pão e vinho. A questão não era pacífica, pois se no pão seria necessário aumentar a produção de modo a satisfazer as necessidades do país, no vinho a colheita normalmente ultrapassava as necessidades internas, acarretando um problema cuja solução não era fácil, isto é, o destino dos excedentes.
Na zona de Montes, Cós ou Alpedriz, o vinho era quase tinto. Não havia cooperativas. O branco era de bica aberta.Isto é, em fins de Setembro ou Outubro, expremiam-se as uvas no esmagador. O mosto (só ele), ia depois para uma vasilha grande, a fim de fermentar, onde ficava até Março, altura em que era transferido para uma outra vasilha limpa. O vinho aparecia então claro, limpo, e com bastante graduação (por vezes 18º), o que impunha que fosse desdobrado. Este vinho era frequentemente aproveitado para água-pé, que também chegava a atingir uns bons 14º.

Nas vindimas, num ambiente quase festivo, trabalhava toda a gente da terra, as mulheres na apanha das uvas, os homens a carregar os cestos para os carros de bois, com eixos das rodas e chumaceiras de madeira, até às tinas das adegas. Até há alguns anos, a Adiafa era a festa popular do fim das vindimas ou das colheitas, uma época em que trabalhadores e patrões confraternizavam, após uma boa campanha. Hoje em dia, a Adiafa é uma mera recordação ou não mais que uma promoção turística de uma região, uma manifestação para ajudar a manter a memória da cultura e os antigos costumes que teimam em persistir à mudança constante dos valores sociais. Alguns proprietários mais importantes, faziam a Adiafa, com um jantar melhorado com o pessoal, aonde estavam presentes a carne de porco, retirada da salga, e filhoses.

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