quinta-feira, 13 de maio de 2010

D. MAUR COCHERIL, W. BECKFORD E A COZINHA DE ALCOBAÇA (Parte I) NOTA PRÉVIA

NOTA PRÉVIA

Este texto foi publicado pela primeira vez, no jornal regional REGIÃO DE CISTER, no ano de 1994.

A versão que agora se apresenta, corresponde fundamentalmente à primeira, embora num ponto ou noutro, corrigida e actualizada.

NOTA INTRODUTÓRIA

William Beckford, mais que o próprio monge cisterciense de Alcobaça, é sem dúvida a personagem que perpassa destacadamente ao longo da obra que ora apresentamos pela primeira vez em português, da autoria de Dom Maur Cocheril, intitulada no original WILLIAM BECKFORD ET LA CUISINE D'ALCOBAÇA (Porto-1969).

Para os menos conhecedores, diremos que William Beckford foi um incansável viajante e escritor romântico, nascido em Inglaterra, no seio de uma família muito rica, de nobreza recente, mas muito bem relacionada, de origem colonial e que faleceu em 1844.

Mas não só.

Todas as actividades a que se dedicou, como a arquitectura e o coleccionismo de objectos de arte, conferem-lhe um lugar de relevo na cultura inglesa do tempo.

A sua obra literária, vasta, interessante e variada, levanta problemas que revelam a multiplicidade de facetas do século em que surgiu e onde Portugal representa um papel de importância. O nome de W. Beckford está ligado, à história da sociedade portuguesa dos fins do século XVIII, que descreveu, de forma pitoresca, teatralizada, exagerada talvez, o que originou forte irritação e animosidade, nomeadamente nos meios políticos, religiosos e pretensamente intelectuais do nosso País.

Temos algumas dúvidas se as críticas a W. Beckford, designadamente as aduzidas por Dom Maur Cocheril, como veremos adiante, são de todo correctas e ajustadas.

Beckford de facto, serviu durante muito tempo à maledicência e à lenda, que se manteve quase até aos nossos dias, e que veio a destruir a sua reputação e a pôr fim a uma carreira, que poderia ter sido brilhante. Em contrapartida, ganhou-se no nosso entender, um autêntico escritor. Veio por três vezes a Portugal.

A primeira, de Março a Novembro de 1787, deu origem ao que veio a ser publicado, entre nós, com o título de DIÁRIO DE WILLIAM BECKFORD EM PORTUGAL E ESPANHA (1). Foi, de certo modo, por acidente que o inglês, então com 27 anos de idade, chegou a Portugal, já que isso se deveu ao facto de ter enjoado fortemente durante os nove dias que durou o percurso marítimo entre Falmouth e Lisboa, escala do seu destino à Jamaica, onde iria visitar plantações de açúcar da família.

Da segunda vez, entre Novembro de 1793 e Outubro de 1795, redigiu um diário que, 4O anos mais tarde, desenvolveu e publicou em Inglaterra sob o título RECOLLECTIONS OF AN EXCURSION TO THE MONASTERIES OF ALCOBAÇA AND BATALHA, que muitos consideram a sua melhor obra. Pelo menos, a mais conhecida.

Da terceira visita a Portugal, não consta que tenha escrito qualquer obra. Parece útil observar aos nossos leitores, acerca da obra de W. Beckford e em especial a Excursão... que o seu valor histórico não pode ser exaltado em demasia, nem pura e simplesmente rejeitado como uma mera fantasia. A obra de Beckford, considerada como menor, por críticos de rigorosa e limitada formação histórica, tem de ser apreciada numa perspectiva mais ampla de ficção narrativa. Neste sentido, não acompanhamos um compatriota de Beckford, Rose Macaulay, ao escrever em THEY WENT TO PORTUGAL (2) que, aquele, não tinha pejo de mentir, desde que a mentira pudesse concorrer para, de alguma forma, fazer realçar os coturnos em que se manifestava a sua personalidade sem escrúpulos, perversa, fátua, mentirosa e corruptora da juventude.

É pois, com os devidos cuidados que tem de ser lida a obra de W. Beckford, de modo a que os seus escritos não sejam rejeitados, por interpretados à letra ou com grandes preconceitos de rigor. Salvo melhor opinião, Dom Maur Cocheril não conseguiu evitar de todo esta postura, como iremos tentar benevolamente demonstrar.

W. Beckford foi uma personalidade complexa e possuída de vincado inconformismo. Nas suas contradições e contrastes é, sem dúvida, representativo da época de transição que viveu, os fins do século XVIII, os excessos da Revolução Francesa e os princípios do século XIX. Algumas das suas amizades e reacções em público, conduziram muito especialmente que a sua família e a conservadora sociedade inglesa, o considerassem um proscrito, que se impunha marginalizar. Não foram indiferentes a esta reacção, as críticas aceradas, a pessoas e a instituições, bem como o seu relacionamento íntimo e algo equívoco, apesar do casamento, com um jovem efeminado e belo, bastante mais novo, que veio a ter influência importante na sua vida.

Seja como for, estamos perante alguém extremamente dotado, que nos deixou, no que ora mais interessa, quadros vivos da sociedade portuguesa dos fins do século XVIII, boémia, nobre ou religiosa, que conheceu calorosamente, mas nem sempre com a intimidade que quis aparentar nos seus escritos.

A corte portuguesa de D. Maria I, revelou-se como o baluarte que só caiu após forte resistência, graças aliás aos esforços denodados do jovem Marquês de Marialva e com a oposição firme do Embaixador de Inglaterra.

Frequentemente, na literatura portuguesa e estrangeira, W. Beckford é acusado de manifesto cinismo religioso. Dom Maur Cocheril, não anda longe destes críticos. Beckford, foi com as suas virtudes e defeitos, o que poderíamos apelidar de um homem do mundo, sem rejeitar a sua inconfundível origem britânica. Rico, educado, relacionado, viajado e tolerante, não evitava sacrificar eventualmente um amigo, a troco de uma boa piada ou para desenvolver através da escrita um conceito estético.

A Excursão..., tornou-se com o tempo e especialmente em Portugal, um clássico da literatura de viagens. Além da célebre descrição da recepção e do banquete que lhe foram oferecidos pelos monges, em 7 e 8 de Junho de 1794, ponto de partida para pequena obra de D. Maur Cocheril, no que diz respeito a Alcobaça, W. Beckford escreveu com alguma ligeireza e graça acerca das laranjeiras do Claustro D. Dinis, da maior coelheira do mundo, duma bela cantora, outrora algo leviana, chamada Francisca, que trocara Queluz por este obscuro retiro, agora sob a direcção espiritual do Dom Abade Geral e, de uma representação teatral sobre a vida e morte de Inês de Castro. Para nossa surpresa, quiçá espanto, de portugueses cultos e sérios, diz ter assistido, escrita por um italiano, a uma cruciante tragédia de Dona Inês de Castro e do cruel assassinato daquela adorável dama e de seus inocentes filhos. Será representada no palco. O papel de Dona Inês é feito pelo Senhor Agostinho José.

Na nossa opinião, nenhum destes apontamentos retira interesse à Excursão... e cremos que por isso, ou apesar disso, não desdenhou Dom Maur Cocheril fazer a pequena obra que agora apresentamos e pretende ser também a defesa da Ordem de Cister.

As descrições da vida portuguesa feitas por Beckford, com os trajes, dança, música, luxo, gastronomia, procura de prazer nas classes elevadas e no clero, revelam o paradoxo entre o fervor religioso que aparentam ou não excluem, e as dificuldades com que se debatia o povo, e que ele bem compreendeu.

Vejamos, de novo, o caso da representação teatral de Inês de Castro, drama por demais conhecido, e tido como assistido por Beckford. Ocorrida ou não como a descreveu, não ficam dúvidas que o autor inglês introduziu na sua obra um elemento cómico apreciável, decorrente da sua qualidade de fino escritor que era. Admitimos que representação teatral pode ter-lhe sido sugerida não só pelo que leu, mas pelo que conhecia também da vida portuguesa e o Mosteiro de Alcobaça não deixava de se encaixar no quadro que pintou. Aliás, antes e depois de Beckford, outros autores referiram com liberdade o episódio de Inês de Castro nos seus textos. Músicos e mais tarde cineastas, nacionais e estrangeiros. Não nos repugna defender, contra alguma corrente mais ortodoxa, que esta descrição pode não ser o relato fiel de uma representação ou um acontecimento, mas uma peça inspirada em várias fontes e com a liberdade criativa permitida a um autor.

Para nós, as características da obra de Beckford, que a tornam aliciante, decorrem do sentimento de que mesmo quando critica, o faz sem maldade, alguém que aponta defeitos com compreensão e algum desvelo. O exagero da crítica depreciativa, aceitou como bom, mas sem razão, o pressuposto da inexistência de ambientes extravagantes, irregulares ou até fantásticos que no clero em geral e em Alcobaça em particular, seriam fruto apenas da imaginação fértil do autor inglês.

Vieira Natividade e o Gen. Lúcio Lobo foram autores em 1914 de uma versão livre daquela obra, no que diz respeito a Alcobaça e Batalha e que não chegou a entrar no mercado. A Semana Alcobacense publicou alguns excertos daquela tradução. O jornal O Alcoa, também publicou da Excursão ... a parte que diz respeito à recepção e banquete nos números 1748 e seguintes, numa versão nossa (3). Outras e meritórias edições já surgiram à luz do dia.

Somos de opinião que Dom Maur Cocheril, seguiu de perto as críticas, algo preconceituosas, que Vieira Natividade e Lúcio Lobo desde logo fizeram ao texto de Beckford, o que não é de todo de estranhar, dado o relacionamento que tinha com a Família de Natividade mas, principalmente, pela sua filiação na Ordem de Cister, de que era indefectível defensor.

Já Natividade havia referido, desfavoravelmente, que Beckford não assumiu a responsabilidade da sua crítica e por isso, só publicou o seu livro em 1835, após a extinção das ordens religiosas entre nós. Ainda Natividade e Lobo, em notas à citada tradução, censuram as referências lendárias e inverosímeis e apontam a ironia atroz do livro de Beckford, a que atribuem mero valor etnográfico. Rebelo da Silva, que adiante voltaremos a referir, ao escolher Beckford como protagonista do seu romance Lágrimas e Tesouros, apercebeu-se que este não era um viajante inculto, despreocupado ou brincalhão, mas alguém que se integrava razoavelmente no ambiente e reagia, com as devidas reservas, quase como um... português.

Fidelino de Figueiredo, também escreveu que William Beckford não tem a vulgar psicologia atribuída aos ingleses, é bem o português do século XVIII, como o conhecia Rebelo.

Talvez aqui se filie uma das razões da popularidade, ainda que contraditória, que a obra de Beckford atingiu em Portugal.

Hoje em dia, não se pode falar da história da Ordem de Cister em Portugal e dos Monges Brancos, sem invocar Dom Maur Cocheril. William Beckford e a Cozinha de Alcobaça é um mero intervalo na vasta e importante obra que deixou e, como tal, tem de ser entendido. Todavia, tem interesse e uma curiosidade muito própria para os alcobacenses, estudiosos ou meros curiosos de Cister, o que nos levou a decidir apresentá-la agora em português, também em versão livre e com algumas notas da nossa autoria, intercaladas no texto. Dom Maur Cocheril, no prefácio ao seu trabalho, refere que confessamos sentir um certo embaraço ao trazer uma nota discordante a tal concerto de elogios.

Por sua vez, Veríssimo Serrão, no prefácio a Alcobaça-Abadia Cisterciense de Portugal, de Dom Maur Cocheril, enquadrou bem a personalidade e a formação deste, para compreendermos o sentido do seu embaraço.

Sob as arcadas góticas do venerando mosteiro, deslumbrado pela imensidão das naves, pela elegância do claustro e pela harmonia do refeitório, vivia ele o sonho de uma ordem religiosa que se cumpria na realização de um nobre ideal de vida (4).

Nascido em 1914 em França e falecido em 1982 na Abadia Cisterciense de Notre Dame de Port-du-Salut (Mayenne), onde professara 40 anos antes, Dom Maur Cocheril dedicou muito tempo da sua vida, também aventurosa, ao estudo da Ordem de Cister em Portugal. Nós, que privilegiadamente ainda chegamos a conhece-lo, notámos, com facilidade, a sua verdadeira paixão pela nossa terra, a quem deu o seu melhor e aonde gostaria de ser enterrado. Isso não aconteceu ainda.

A Câmara Municipal de Alcobaca, numa singela homenagem, atribuiu o nome de Dom Maur Cocheril à antiga Travessa da Cadeia. Trata-se da artéria que liga a hoje chamada Praça 25 de Abril, às Ruas Eng. Duarte Pacheco e Miguel Bombarda. Chamava-se Travessa da Cadeia, obviamente, por ter existido ali a prisão da Vila, que era nos números 49 e 50 do prédio que também serviu de Paços do Concelho. Em 7 de Julho de 1915, recebeu o nome de 14 de Maio e em 9 de Dezembro de 1918 o de Rua 1º de Dezembro, passando novamente a designar-se por Rua 14 de Maio, em 1 de Junho de 1923 e Travessa da Cadeia em 27 de Maio de 1928.

Alcobaça minha abadia, os frades partiram tu permaneces solitária no teu vale, erguendo as tuas duas torres para o céu fechado, para o céu da Estremadura, que já não te ouve (5).

Ao tomarem a defesa dos absolutistas, os monges de Alcobaça foram atingidos pela queda de D. Miguel. O medo fez fugir os monges, o edifício foi assaltado e pilhado pela população, conseguindo-se salvar muitos dos livros e manuscritos para a Torre do Tombo e Biblioteca Nacional.

Foi na Colecção de Manuscritos do Fundo Geral da Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice 1814, fls.181 e seguintes que José da Cunha Saraiva, encontrou a muito interessante Relação Da Vinda De El-Rey O Sr. D. Miguel A Este Real Mosteiro De Alcobaça.

Achamos oportuno transcrever a seguinte passagem referente à última visita real a Alcobaça, em 1830, na fase de decadência monacal e pouco antes da extinção das ordens religiosas:

Sahio S. Magd.e do seu quarto acompanhado dos m.mos que lhe tinhão assistido ao Beijamão, acrescendo mais aos asistentes o M.e D.or Fr. Fortunato de S. Boaventura, e se deregirão a Igreja, vendo primeiro o Altar de S. Miguel, e S. Sebastião, e os da Charola, subio atrás do Altar Mor para ver a Igreja em quanto a Comunid.e estava a vésperas, foi a Caza dos Tumullos, que admirou, e disse que havia de mandar compor o de D. Beatriz, para a outra vez que viesse, dahi foi ao Tranzito de N.S.S. Bernardo, a Capella de S. Pedro, a Sachrestia, aonde viu o Cálix d'ouro, a Custódia, e o mais digno de se ver, entrou no Sanctuário , Capella do S.r. dos Passos, e foi ao Claustro, Capitolo, Refeitório, o Caldeiro da Batalha d'Aljubarrota, a Cozinha, e fazendo em todas as partes varias perguntas a que satisfez o M. e Fr. Fortunato, foi a Livraria, e vio com curiosidade, os manos screptos, e Biblias, que m.m gostou de ver, e no quarto dos poribidos, mostrandolhe od.o P.e Mestre os Padres de Pavia, e dizendo lhe que era a nossa ruina e que na Alemanha estavão prohibidos também ca hade suceder o m.mo, desceu ao Cartório, vio, e leo nos Livros Dourados, e quando lhe apresentarão as Doaçaens nos pergaminhos, disse, agora me sento Eu e assim o fez em huma cadeira que estava, e vio miudam. te tudo, e fez várias perguntas e reflexoens.

Em 30 de Maio de 1834, foram extintos os mosteiros e expulsas de Portugal as ordens religiosas. Os Monges Brancos, os Bernardos, abandonaram definitivamente Alcobaça e a Ordem de Cister, tão intimamente ligada ao passado de grandeza ou até de dor do nosso País, deixou de ter, desde então, representantes entre nós. Noutros países, sobreviveu a convulsões políticas e sociais, constatando-se que nalgumas partes do mundo, desde o Japão, à Europa e Estados Unidos, ainda existem cistercienses que praticam, com fervor e até intransigência, os mesmos Usos e Costumes dos fundadores de Tarouca e Alcobaça.

A Igreja de Alcobaça era ornamentada com quadros a óleo, em ricas molduras de talha dourada, tendo sido despojada de uma grande parte, bem como das alfaias para o culto e ornato, após a supressão das ordens religiosas.

Olhando todos os dias o Mosteiro de Alcobaça, sentimos a mágua que decorre de termos, pouco mais que um belo edifício, restaurado e conservado é certo, património mundial, a maior Igreja que os cistercienses eregeram em Portugal à glória de Deus e que povoaram durante 7 séculos. A Ordem que em Portugal deu a medida de sua capacidade, desapareceu de um dia para o outro, e com ela todos as outras comunidades irmãs e dependentes e quase a sua memória. Foi uma morte real, definitiva mesmo.

Muitas vezes temo-nos interrogado porque razão este império, poderosamente civilizado, tão (des)conforme a exigência ou dimensão humanas, pereceu assim e não mais se reconstituiu. Seria interessante concluir que tal se deveu à vitória do cristianismo. Cremos que é errado. Assim, sugerimos a procura de várias causas, ainda que contraditórias, mesma que a soma delas apresente um resultado inclusivo. A Ordem de Cister, em Portugal, desintegrou-se, minada por uma desagregação interna, sequência de querelas intestinas, invasões não detidas, rancores acumulados, vinganças sociais, despertares com sobressaltos.

Entendemos, que seria interessante trazer ao nosso Mosteiro um pouco de vida e calor humano. E sem que legitimamente se possa concluir que os últimos anos dos monges em Alcobaça, com a sua lassidão ou bonomia, nos fazem esquecer os séculos de virtude, recordaremos aqui o relato de um episódio que, embora não sendo especialmente notável ou fidedigno, tem a marca dos frades que eram, sempre essencialmente, humanos e vulgares mortais.

Dom Maur Cocheril, o primeiro monge cisterciense a rezar missa no Mosteiro de Alcobaça após a extinção das ordens religiosas, tal como Beckford bem merece esta pequena homenagem.

(CONTINUA)

Sem comentários: