A GUIDA FugIu COM UM RAPAZOLA
OU
O PÉ DA LUIZINHA CARNEIRO
FLeming de OLiveira
Uma noite destas, em Coimbra, depois do jantar com
uns casais em casa de uns amigos, enquanto se bebia mais um copo ia passando um
telejornal, dando conta (como é habitual) dos horrores e desastres do mundo, entrecortados
com apartes de aborrecimento e ar pesaroso dos circunstantes, um atentado
suicida matara não sei quantos em Cabul, um terramoto matara duas mil pessoas
na China, Puigdemont continua com mandato de captura, um grande incêndio está a
lavrar na Galiza, etc., etc.
A Leonor, muito expansiva, sobre quem normalmente
mais convergem as atenções, de súbito levou as mãos à cabeça: Quem diria!!! Surpresos, olhamos
atentos. E ela, na sua emoção explicava: A
Guida, deixou o marido e fugiu com um rapazola que podia ser seu filho. Pelo menos em termos de idade. Mais ou
menos…
A sala inteira alvoroçou-se. Todos nós conhecíamos a Guida, linda
menina de minissaia, colega de curso dos anos 60, mas ninguém se interessava,
de todo, por essas calamidades no mundo.
No dia seguinte, já em Alcobaça na esplanada
do Bibi, ao voltar a página do jornal rápida e indiferentemente, sem ler propriamente
o texto da notícia que referia em título os mais de 40 mortos no atentado
suicida no Afeganistão, lembrei-me de Eça de Queirós (in Cartas Familiares e Bilhetes de Paris) e pensei para mim: Será que
estou conquistado pela síndroma do “Pé da
Luisinha Carneiro”?
Mas quem é a “Luisinha Carneiro”? Para explicar a associação de ideias, mal
cheguei a casa fui reler o meu predileto Eça de Queirós.
"Bem recordo uma noite em que,
numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais
radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da
mesa, outras senhoras costuravam. Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou
quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas
janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das
roseiras.
No
jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma
dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos
homens se desencadeia o mal sobre a Terra.
Ela lia
as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno
e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias,
matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o
fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer
se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no
mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas,
searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido
bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito
calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de
operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro
mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já
mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!...
Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu,
enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma
então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira,
um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta
emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na
fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam
portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas
poltronas, gozando a nossa segurança.
A
leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava
noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno... E, de repente,
solta um grito, leva as mãos à cabeça:
– Santo
Deus!...
Todos
nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
– Foi a
Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou (torceu) um pé!
Então a
sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.
As
senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e
todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor
que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara (torcera) um pé! Já
um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que
ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo
negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
Dois mil
javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando
crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo
desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa
Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a
Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a
grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume”.
Bom caros
leitores, é um tal primor a descrição queirosiana, que fico quase sem ânimo de
acrescentar um comentário.
Mas o que Eça sustenta,
com graça e alguma malícia, tem uma grande parcela de verdade. Quer dizer, se a
afetividade começa pelos mais próximos, é natural que sintamos mais o que
acontece em relação aos circunstantes.
Depois, sendo certo que a sensibilidade é algo que se
impressiona com o que passa pelos sentidos, também o são as coisas que atingem
a sensibilidade e causam uma impressão maior. Mas devemos distinguir a
impressão, de um juízo. Por exemplo, se eu vir um automóvel passar por cima de
um cão e o matar, o sangue jorrar até mim e os miolos aos meus sapatos,
evidentemente isso causa-me uma sensação de destruição maior do que saber que a
essa hora está a sair para o cemitério o enterro de um homem que conheço
vagamente.
Quero enfim dizer, que
isto é razoável, está na minha estrutura. Mas é razoável também que o ser
humano qualquer dotado de razão e que conhece as limitações e contingências de
sua estrutura, saiba restabelecer, na medida do necessário, a escala dos
valores.
Mas verdade, verdadinha seja dita, os meus “chineses”, foram os afegãos mortos em
Cabul, entretanto sepultados pela minha indiferença. E “Luisinha
Carneiro” está, com o seu pé dorido, ansiosamente a aguardar tal como nós, a
novidade picaresca que alguém traga da Guida.
Este é o mundo que temos e que nunca muda muito.
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