domingo, 26 de novembro de 2023

AS GRAVURAS NÃO SABEM NADAR

Fleming de Oliveira

1995 foi o ano em que a luta pela preservação das gravuras do Vale do Côa levou a melhor sobre a construção de uma barragem da EDP, pese embora há muito conhecidas pelas pessoas da região, sobretudo os pastores ou os moleiros que trabalhavam nas margens do rio.  As gravuras do Vale do Côa, foram identificadas pela primeira vez em 1991, pelo arqueólogo Nelson Rebanda, que acompanhava a construção da barragem do Côa. Tornada pública em 1994, a descoberta provocou forte discussão académica e popular pois, a construção da barragem, provocaria a submersão da área.

Foz Côa fez manchetes do “Expresso”, exemplares que fui reencontrar no meu arquivo, agora em profunda reestruturação. A primeira, ocorrida em fevereiro, assinalava que o “Último relatório da UNESCO admite afundar Foz Côa”.

Nas ruas e não só, crescia um movimento contra a barragem, a favor das gravuras. Gritava-se que “as gravuras não sabem nadar”, num slogan a partir do grupo português “Black Company”, criador do que é considerado o primeiro êxito do hip-hop português, o tema “Nadar”.

Em abril escreveu-se “Foz Côa adiada sine die”. E duas semanas depois, Mário Soares, Presidente da República, declarou ao “Expresso” que “As obras devem parar”. Tendo em conta a opinião dos especialistas sobre a importância artística e científica das gravuras, o governo português decidiu abandonar a construção da barragem em 1996.

O assunto voltou à primeira página do “Expresso”, em junho, quando noticiou que EDP secará o Côa para os técnicos do IPPAR poderem estudar as gravuras, em agosto, quando se soube da descoberta de utensílios paleolíticos na zona, e em novembro, quando o novo Governo, encabeçado por António Guterres, realizou um mini Conselho de Ministros em Foz Côa de modo a justificar a decisão de trocar a construção da barragem pela criação do parque arqueológico.

Os sítios do Vale do Côa, constituem uma bastante rara concentração de arte rupestre, datadas do Paleolítico Superior  (22.000 –10. 000 a.C.), situada ao longo das margens do rio Côa. O Vale do Côa apresenta mais de 1.200 rochas, distribuídas por 20.000ha. com manifestações, em que predominam as gravuras paleolíticas.

Entre 2010 e finais de 2017, cerca de 19.000 pessoas visitaram o Parque Arqueológico do Vale do Côa e tendo em conta que, desde 2018, a Arte do Côa (que inclui o Museu e Parque Arqueológico do Vale do Côa) passou a integrar o “Itinerário Cultural do Conselho da Europa”, onde estão representados sítios tão relevantes como Lascaux, Chauvet, Niaux (França), Altamira (Espanha) ou Valcamónica (Itália), foi determinante para eu lá fazer uma visita, aliás não muito cómoda, por razões óbvias. Eu, que tenho acompanhado, doravante apenas à distância mas com interesse alguns desenvolvimentos do Vale do Côa, sugiro aos leitores uma visita na primavera ou verão.

No ano passado, arqueólogos puseram a descoberto a gravura de uma cabra montesa numa placa de xisto com cerca de “apenas” 12.000 anos, A placa  encontra-se queimada e, segundo um amigo amante destes assuntos que já lá se deslocou estudou o assunto e consultei, apresenta a representação dos quartos dianteiros do que parece ser uma pequena cabra montesa, que segue um animal de maiores dimensões, cuja cauda, curta e encurvada, sugere tratar-se de um veado ou de uma cerva, mas ao qual falta a cabeça, graças à fratura do suporte. Estas figuras exibem corpos muito geometrizados, são gravadas por incisão, e o seu interior encontra-se preenchido por linhas igualmente incisas, a que os arqueólogos e especialistas como o meu amigo chamam “preenchimento estriado”.

O Vale do Côa é o único local no mundo a apresentar manifestações artísticas de diversos momentos da Pré-História, Proto-história e da História, sendo o mais importante conjunto de arte paleolítica ao ar livre até hoje conhecido.

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