quarta-feira, 23 de março de 2022

Tempos muito censurados de Fleming de Oliveira - comentário de Rui Rasquilho

 

O ÚLTIMO LIVRO DE FLEMING DE OLIVEIRA

por Rui Rasquilho

 

Um livro é sempre uma interpretação do mundo, uma vereda interior alinhada entre muros. O livro de Fleming de Oliveira não é, todavia, um romance, é antes um exercício de investigação e observação local.

Após haver estudado e refletido sobre duas vertentes sociais nacionais, dois caminhos que contribuíram a seu modo e a seu tempo para o atraso português, a Inquisição e a Censura, escreveu «Tempos muito censurados, a Inquisição e o Estado Novo».

É um título benévolo para um texto que aborda fórmulas pouco moderadas de castigo arbitrário e controle social, duas vertentes dramaticamente persecutórias ao serviço de objetivos de poder, em épocas históricas diferentes.

No seu 16º livro Fleming de Oliveira circula com atenção por estes dois modelos repressivos registando os seus ecos, alinhando-os em documentos e testemunhos, criando histórias várias que estimulam a continuidade da leitura cuja projeção narrativa depende da nossa atenção.

O livro é escrito na linha habitual do autor, o tratamento da história regional, uma lente sobre a nacional, de dois períodos dos dois programas condicionantes da liberdade e construção de medo social e violência.

Fleming incentiva-nos ao exercício da memória sobretudo quando confrontamos o livro com a guerra arbitrária que vai destruindo o nosso quotidiano. Sorte temos hoje a vivermos pela informação, através da palavra e da imagem, do relato e do testemunho.

Entre outros casos o autor debruça-se sobre o Judaísmo, referindo a política cínica de D. Manuel e a perseguição atroz imposta aos refugiados que se acolheram a Portugal após a sua expulsão pelos seus sogros, os Reis Católicos de Espanha. Cuidadosamente o autor evoca a Bula de Sisto IV, de 1478, que cauciona a sua desastrada política dezanove anos depois.

São cinco os capítulos da parte primeira do livro que nos falam, entre outras vilezas humanas, da “humilhação pública, elemento fundamental nos autos de fé”. Alcobaça naturalmente está sempre presente e essa viagem deixo-a ao leitor.

Na parte segunda a estrela é o Estado Novo, mais cinco capítulos, estes com conteúdo muito mais próximo de nós, onde a narrativa e o testemunho se entrelaçam criando mais emoção, por tudo estar mais perto de nós e percorrer o território com descrições saborosas, a maioria delas desconhecidas dos leitores.

Os relatos do reviralho à bomba, o MUD/Alcobaça, os apontamentos dos alcobacenses sobre a passagem do comboio de militares a caminho da Marinha Grande e o consequente atentado de 13 de Janeiro de 1931 para derrubar os postes de telégrafo e desalinhar os carris (km 137,960).

O livro de Fleming de Oliveira é um extraordinário filme ou, melhor ainda, um notável álbum fotográfico do século XX.

Vamos então ler o livro com a recomendação do autor que o escreveu bem. “Uma história cria estereótipos. O problema não é que sejam mentiras (…) são incompletos. Fazem uma história tornar-se a única história”.

 

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