O ÚLTIMO LIVRO DE FLEMING DE OLIVEIRA
por Rui Rasquilho
Um livro é
sempre uma interpretação do mundo, uma vereda interior alinhada entre muros. O
livro de Fleming de Oliveira não é, todavia, um romance, é antes um exercício
de investigação e observação local.
Após haver
estudado e refletido sobre duas vertentes sociais nacionais, dois caminhos que
contribuíram a seu modo e a seu tempo para o atraso português, a Inquisição e a
Censura, escreveu «Tempos muito censurados, a Inquisição e o Estado Novo».
É um título
benévolo para um texto que aborda fórmulas pouco moderadas de castigo
arbitrário e controle social, duas vertentes dramaticamente persecutórias ao
serviço de objetivos de poder, em épocas históricas diferentes.
No seu 16º
livro Fleming de Oliveira circula com atenção por estes dois modelos
repressivos registando os seus ecos, alinhando-os em documentos e testemunhos,
criando histórias várias que estimulam a continuidade da leitura cuja projeção
narrativa depende da nossa atenção.
O livro é
escrito na linha habitual do autor, o tratamento da história regional, uma
lente sobre a nacional, de dois períodos dos dois programas condicionantes da
liberdade e construção de medo social e violência.
Fleming
incentiva-nos ao exercício da memória sobretudo quando confrontamos o livro com
a guerra arbitrária que vai destruindo o nosso quotidiano. Sorte temos hoje a
vivermos pela informação, através da palavra e da imagem, do relato e do
testemunho.
Entre
outros casos o autor debruça-se sobre o Judaísmo, referindo a política cínica
de D. Manuel e a perseguição atroz imposta aos refugiados que se acolheram a
Portugal após a sua expulsão pelos seus sogros, os Reis Católicos de Espanha.
Cuidadosamente o autor evoca a Bula de Sisto IV, de 1478, que cauciona a sua
desastrada política dezanove anos depois.
São cinco
os capítulos da parte primeira do livro que nos falam, entre outras vilezas
humanas, da “humilhação pública, elemento fundamental nos autos de fé”.
Alcobaça naturalmente está sempre presente e essa viagem deixo-a ao leitor.
Na parte
segunda a estrela é o Estado Novo, mais cinco capítulos, estes com conteúdo
muito mais próximo de nós, onde a narrativa e o testemunho se entrelaçam
criando mais emoção, por tudo estar mais perto de nós e percorrer o território
com descrições saborosas, a maioria delas desconhecidas dos leitores.
Os relatos
do reviralho à bomba, o MUD/Alcobaça, os apontamentos dos alcobacenses sobre a
passagem do comboio de militares a caminho da Marinha Grande e o consequente
atentado de 13 de Janeiro de 1931 para derrubar os postes de telégrafo e
desalinhar os carris (km 137,960).
O livro de
Fleming de Oliveira é um extraordinário filme ou, melhor ainda, um notável
álbum fotográfico do século XX.
Vamos então
ler o livro com a recomendação do autor que o escreveu bem. “Uma história cria
estereótipos. O problema não é que sejam mentiras (…) são incompletos. Fazem
uma história tornar-se a única história”.
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