segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Somos um povo de Boas Pessoas





Somos um povo de boas pessoas

FLeming de OLiveira



Salvo erro foi Eça de Queirós quem escreveu que “somos um povo de boas pessoas”.
No meu tempo de estudante em Coimbra e na casa onde vivia e estudava, formávamos um grupo que passava horas a discutir tudo e nada, com aquela segurança e certeza que só existem na juventude. Abordávamos temas tão importantes como “saber se há vida depois da morte”, “como é a melhor tática de meter conversa/engatar uma pequena” ou mesmo “se a Académica tinha condições para ganhar no domingo ao Sporting”.
Neste grupo havia um que se destacava por ser muito especulativo como nos dizíamos, capaz de encontrar os argumentos menos previsíveis ou criar as situações mais insuspeitas ou divertidas. Era o Lopes que também gostava de escrever uns artigos para o jornal lá da terra e que terminado o curso na Faculdade de Letras enveredou pelo jornalismo com sucesso. Hoje em dia é diretor de uma revista, mas então era um rapaz com opiniões e soluções tão consistentes como as nossas.
Numa noite que se prolongou pela madrugada, interrompida para ir beber uma cervejinha ao “Mandarim”, o Lopes tentou convencer-nos que o povo português é essencialmente “socialista”, somos todos bons rapazes e que ninguém fica indiferente em ver uma situação de desconforto, penúria ou de sofrimento.
Dizia o Lopes para valorizar a sua tese “quero evitar equívocos, eu sou so-cia-lista!”. Olhou em redor da mesa, e perante o nosso espanto, repetiu com força: ”Eu sou socialista! So-cia-lista! Levantou-se, cruzou os braços sobre o peito, bebeu mais um trago de brandy, ergueu a face congestionada, e repetiu: “Abaixo o Salazar, eu sou so-cia-lis-ta”. A discussão em torno desta inflamada declaração de princípios foi vivíssima, sem que pudesse haver acordo quanto ao que seria realmente um socialista há 40 e tal anos. Para a encerrar entendeu-se questionar o próprio Lopes.  E soltou: "Quero uma nova conceção da Propriedade, do Trabalho, do Casamento, da Educação, etc... em oposição às soluções dadas pela Igreja e as instituições que as realizam e nos governam...”
Eu, pelo menos eu, fiquei sem saber concretamente o que era um socialista, como ainda pior fiquei com o remate do Cardoso: "Então, mais ou menos, somos todos socialistas..."
Claro que por espírito de contradição e agitar o debate, discordamos perentoriamente dessa tão generalizada opinião e a partir de certa altura na falta de melhores argumentos ficamos por aí, sem pensar mais no assunto, salvo o Lopes.

Resultado de imagem para fanUm dos “bons” hábitos que tínhamos, Lopes incluído, era ir assistir ao domingo, pelo meio dia, ao “santo sacrifício da saída da missa”, na Igreja de Santa Cruz.
Num determinado domingo o Lopes, sem nos avisar, arranjou um miúdo, vestiu-o com roupa velha e usada, sujou-lhe a cara, recomendou-lhe para por o ar mais infeliz que soubesse e foi sentá-lo num degrau à porta da Igreja, com um pires de plástico para receber moedas. No chão e em frente colocou um cartão em que dizia numa letra irregular: “Tenho fome, fui abandonado pelos meus pais”.
Quando saímos no fim da missa, passamos por um catraio a pedir esmola, tendo já no respetivo pires algumas moedas, a que o Lopes para nosso espanto (até pecava por ser algo forreta) acrescentou mais uma.
O Lopes sem se denunciar, sugeriu atravessarmos a rua e vermos melhor a saída. Claro que assim também víamos a forma como o rapaz se comportava. O Lopes esperou um bocado até o ir buscar. Quando chegou à sua beira, encontrou-o muitíssimo contente, pois naqueles minutos da saída da missa, tinham caído varias moedas e até uma nota de 20 no pires de plástico, de tal modo que o catraio disse que já não saia dali.
Tinha recolhido mais de trinta escudos, pelo que o Lopes teve de o tirar à força e levá-lo por uma orelha num meio de grandes protestos até nós, que não estávamos ainda a perceber bem a cena.

Resultado de imagem para keep calm eu tenho fomeNão pretendo fazer o papel de moralista, mas a pequena moral que se pode tirar, é que no tempo do Eça, há quarenta e tal anos, éramos como hoje “um povo de boa pessoa”, mas que se não se puser a pau é aldrabado.
Creio que esta historia, que juro ser verdadeira, podia repetir-se hoje se fosse possível por uma criança a pedir à porta do nosso Mosteiro. Também não quero entrar no comentário politico, mas sabendo-se que não votei no Costa, penso que de há quatro anos para cá também andamos a ser aldrabados e não obstante alguns discursos mais elaborados, receio mesmo que nos levem os poucos anéis que ainda restam, como um turismo não consistente, uma saúde e de transportes ferroviários em rutura ou uma indústria (pelo menos em Alcobaça) que não recupera.
Caro Senhor Diretor Joaquim Paulo, e prezados Leitores ou deixamos de ser mesmo boas pessoas ou temos de mudar “isto”.

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