Somos
um povo de boas pessoas
FLeming de OLiveira
Salvo erro foi Eça de
Queirós quem escreveu que “somos um povo
de boas pessoas”.
No
meu tempo de estudante em Coimbra e na casa onde vivia e estudava, formávamos
um grupo que passava horas a discutir tudo e nada, com aquela segurança e
certeza que só existem na juventude. Abordávamos temas tão importantes como “saber se há vida depois da morte”, “como é a
melhor tática de meter conversa/engatar uma pequena” ou mesmo “se a Académica tinha condições para ganhar
no domingo ao Sporting”.
Neste
grupo havia um que se destacava por ser muito especulativo como nos dizíamos, capaz
de encontrar os argumentos menos previsíveis ou criar as situações mais
insuspeitas ou divertidas. Era o Lopes que também gostava de escrever uns
artigos para o jornal lá da terra e que terminado o curso na Faculdade de
Letras enveredou pelo jornalismo com sucesso. Hoje em dia é diretor de uma revista,
mas então era um rapaz com opiniões e soluções tão consistentes como as nossas.
Numa
noite que se prolongou pela madrugada, interrompida para ir beber uma
cervejinha ao “Mandarim”, o Lopes
tentou convencer-nos que o povo português é essencialmente “socialista”, somos todos bons rapazes e
que ninguém fica indiferente em ver uma situação de desconforto, penúria ou de
sofrimento.
Dizia
o Lopes para valorizar a sua tese “quero
evitar equívocos, eu sou so-cia-lista!”. Olhou em redor da mesa, e perante
o nosso espanto, repetiu com força: ”Eu
sou socialista! So-cia-lista! Levantou-se, cruzou os braços sobre o peito, bebeu
mais um trago de brandy, ergueu a face congestionada, e repetiu: “Abaixo o Salazar, eu sou so-cia-lis-ta”.
A discussão em torno desta inflamada declaração de princípios foi vivíssima,
sem que pudesse haver acordo quanto ao que seria realmente um socialista há 40 e tal anos. Para a
encerrar entendeu-se questionar o próprio Lopes. E soltou: "Quero uma nova conceção da Propriedade, do Trabalho, do Casamento, da
Educação, etc... em oposição às soluções dadas pela Igreja e as instituições
que as realizam e nos governam...”
Eu,
pelo menos eu, fiquei sem saber concretamente o que era um socialista, como
ainda pior fiquei com o remate do Cardoso: "Então, mais ou menos, somos todos socialistas..."
Claro
que por espírito de contradição e agitar o debate, discordamos perentoriamente
dessa tão generalizada opinião e a partir de certa altura na falta de melhores
argumentos ficamos por aí, sem pensar mais no assunto, salvo o Lopes.
Um dos “bons” hábitos que tínhamos, Lopes
incluído, era ir assistir ao domingo, pelo meio dia, ao “santo sacrifício da saída da missa”, na Igreja de Santa Cruz.
Num
determinado domingo o Lopes, sem nos avisar, arranjou um miúdo, vestiu-o com
roupa velha e usada, sujou-lhe a cara, recomendou-lhe para por o ar mais infeliz
que soubesse e foi sentá-lo num degrau à porta da Igreja, com um pires de
plástico para receber moedas. No chão e em frente colocou um cartão em que
dizia numa letra irregular: “Tenho fome, fui
abandonado pelos meus pais”.
Quando
saímos no fim da missa, passamos por um catraio a pedir esmola, tendo já no
respetivo pires algumas moedas, a que o Lopes para nosso espanto (até pecava
por ser algo forreta) acrescentou mais uma.
O
Lopes sem se denunciar, sugeriu atravessarmos a rua e vermos melhor a saída. Claro
que assim também víamos a forma como o rapaz se comportava. O Lopes esperou um
bocado até o ir buscar. Quando chegou à sua beira, encontrou-o muitíssimo
contente, pois naqueles minutos da saída da missa, tinham caído varias moedas e
até uma nota de 20 no pires de plástico, de tal modo que o catraio disse que já
não saia dali.
Tinha
recolhido mais de trinta escudos, pelo que o Lopes teve de o tirar à força e
levá-lo por uma orelha num meio de grandes protestos até nós, que não estávamos
ainda a perceber bem a cena.
Não pretendo fazer o
papel de moralista, mas a pequena moral que se pode tirar, é que no tempo do
Eça, há quarenta e tal anos, éramos como hoje “um povo de boa pessoa”, mas que se não se puser a pau é aldrabado.
Creio
que esta historia, que juro ser verdadeira, podia repetir-se hoje se fosse
possível por uma criança a pedir à porta do nosso Mosteiro. Também não quero
entrar no comentário politico, mas sabendo-se que não votei no Costa, penso que
de há quatro anos para cá também andamos a ser aldrabados e não obstante alguns
discursos mais elaborados, receio mesmo que nos levem os poucos anéis que ainda
restam, como um turismo não consistente, uma saúde e de transportes
ferroviários em rutura ou uma indústria (pelo menos em Alcobaça) que não
recupera.
Caro
Senhor Diretor Joaquim Paulo, e prezados Leitores ou deixamos de ser mesmo boas
pessoas ou temos de mudar “isto”.
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