segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Ainda Há Homens de Barba Rija


AINDA HÁ HOMENS DE BARBA RIJA

Fleming de Oliveira


Gosto de colaborar com o “Região de Cister”, o que acontece quase a partir do momento em que saiu a público pela primeira vez. Nessa altura, a apresentação gráfica era muito incipiente e os textos vinham com inúmeras e desesperantes gralhas. Mas era um desafio estimulante.
Ao tempo a sede, era perto do Centro de Emprego.
Bem sei caro Senhor Diretor e pacientes Leitores, que este tipo de crónicas/ apontamentos periódicos a que aqui me dedico, são tão frágeis, como a pena que esvoaça ao sabor da brisa do momento. São mesmo voláteis e salvo nas mãos de persistentes guardadores de cacos, essas palavras fugidias, vadias mesmo, assumem-se como restos ou ossos de um mundo em extensão, esfumam-se sem deixar rasto e nem passam à história. São fogos-fátuos, calendarizados e temporais.
Por isso, talvez a melhor maneira de lhes dar sentido de os não ver amarrados ao passado e ao esquecimento onde amanhã jazem, é compilá-las e publicá-las em livro.
Pode ser que um dia me dedica a essa “tarefa por coisa nenhuma”, se a minha Mulher não entender que é uma forma tola de gastar dinheiro.

Naquela tarde encontrava-me no supermercado junto às prateleiras que vendem artigos de barbear, enquanto a minha Mulher andava na faina das compras.
Ele aproximou-se devagarinho e de forma discreta, pondo-se de lado a olhar para mim, como que estivesse na dúvida “se era eu ou não”. Era um individuo com cerca de oitenta anos, de estatura mediana, usando um casaco escuro de corte tradicional, usado, mas bem escovado e calçando botas rurais. Depois de perceber que era mesmo eu, perguntou cautelosamente se eu me recordava dele.
Na verdade, embora a cara fosse vagamente conhecida, não fazia nenhuma ideia quem era ele, mas todavia por uma questão de cortesia, retorqui que “sim, obviamente sabia muito bem quem era”. Foi meu cliente, há anos, num assunto que não me deixou qualquer impressão relevante.
Estabelecidos estes laços de confiança, perguntou-me sempre delicada e cautelosamente se eu lhe indicava um “creme” adequado a sua barba e idade. Explicou que não estava habituado a fazer este tipo de compras (é o filho que normalmente se encarrega disso) e até me adiantou a marca muito conhecida que usa, “com um preço muito em conta”, mas que embora já a tivesse procurado nas prateleiras não encontrava.
Expliquei-lhe, “doutoralmente”, que as espumas de barbear estão divididas para peles sensíveis e para peles normais e não sabendo o seu caso perguntei-lhe se me permitia que eu escolhesse.
Pensando bem e tendo conta a sua aparência fisionómica, cara enrugada e algo envelhecida, sugeri-lhe uma marca muito conhecida (que aliás não é a sua usual) que anunciava uma hidratação de peles sensíveis.
Quando lhe expliquei a minha opção e a característica do produto, o homem pareceu ligeiramente aborrecido, retorquindo que “não queria creme para mulher que não quer perder sinais de juventude, mas sim um produto para um homem de barba rígida e de saúde”.
Engoli em seco, disse que tinha razão balbuciei qualquer coisa de circunstância, mas ele acabou por aceitar a minha sugestão.   


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